Muito ‘Black Mirror’? Você pode acabar banido de uma loja por reconhecimento facial

O uso da tecnologia de reconhecimento facial pela polícia tem sido amplamente discutido nos últimos anos, mas sua aplicação por empresas privadas tem recebido menos atenção.

Simon Mackenzie, segurança da QD Stores, rede de lojas de varejo nos arredores de Londres, estava sem fôlego depois de perseguir três ladrões que tinham roubado vários pacotes de sabão em pó. Antes da chegada da polícia, entrou em uma sala nos fundos para executar uma tarefa importante: capturar o rosto dos culpados.

Usando um computador antiquado, acessou a gravação das câmeras de segurança, pausando para ampliar e fazer uma foto de cada ladrão. Em seguida, recorreu a um programa de reconhecimento facial chamado Facewatch, usado pela loja para identificar ladrões. Na próxima vez em que esses indivíduos entrarem em qualquer loja próxima que disponha do Facewatch, os funcionários vão receber um alerta. “É como se alguém dissesse: ‘Aquela pessoa que você pegou semana passada acabou de voltar'”, disse Mackenzie.

O uso da tecnologia de reconhecimento facial pela polícia tem sido amplamente discutido nos últimos anos, mas sua aplicação por empresas privadas tem recebido menos atenção. Agora, à medida que a tecnologia melhora e seu custo diminui, os sistemas estão se tornando mais presentes. O reconhecimento facial deixou de ser exclusividade de agências governamentais e está sendo cada vez mais usado para identificar ladrões de lojas, clientes problemáticos e oponentes judiciais.

Varejistas de todo o país, frustrados com crimes de pequeno porte, recorrem à empresa britânica. Facewatch, Por uma mensalidade de apenas 250 libras (cerca de US$ 320), oferece acesso a uma lista de vigilância personalizada compartilhada por lojas próximas umas das outras. Quando o programa da Facewatch detecta um rosto presente na lista, um alerta é enviado para um smartphone na loja, onde os funcionários decidem se devem monitorar a pessoa ou pedir que vá embora.

Mackenzie informou que inclui na lista um ou dois rostos novos por semana, principalmente pessoas que roubam fraldas, mantimentos, artigos para animais de estimação e outros produtos de baixo custo. Comentou que costumava sentir empatia pela dificuldade econômica delas, mas que o número de roubos saiu do controle, tornando necessário o uso do reconhecimento facial. Normalmente, pelo menos uma vez por dia, o Facewatch avisa que alguém da lista de vigilância entrou na loja.

A tecnologia de reconhecimento facial vem proliferando à medida que os países ocidentais lidam com os avanços trazidos pela inteligência artificial. A União Europeia está elaborando regras que proibiriam muitos dos usos do reconhecimento facial, enquanto Eric Adams, prefeito da cidade de Nova York, incentiva os lojistas a testar a tecnologia para combater o crime. A MSG Entertainment, proprietária do Madison Square Garden e do Radio City Music Hall, usou o reconhecimento facial automatizado para impedir a entrada de advogados cujo escritório processou a empresa.

Entre as nações democráticas, a Grã-Bretanha está na vanguarda do uso do reconhecimento facial em tempo real, contando com a aprovação de tribunais e órgãos reguladores. A polícia de Londres e a de Cardiff estão testando a tecnologia para identificar criminosos procurados enquanto eles andam pelas ruas. Em maio, foi usada para monitorar as aglomerações durante a coroação do rei Charles III.

Mas seu uso por varejistas tem sido criticado como uma solução desproporcional para crimes menores. As pessoas têm pouca chance de saber que estão na lista de vigilância, ou de contestar sua inclusão. No ano passado, a organização da sociedade civil Big Brother Watch entrou com um processo no qual chamou essa prática de “extremamente orwelliana”.

‘Não dá para contar com a polícia’

A Facewatch foi fundada em 2010 por Simon Gordon, proprietário de um popular bar de vinhos do século XIX no centro de Londres, conhecido por seu interior semelhante a uma adega e por atrair batedores de carteira.

Na época, Gordon contratou desenvolvedores de software para criar uma ferramenta on-line que compartilhasse as gravações de câmeras de segurança com as autoridades, esperando que isso poupasse o tempo da polícia com o preenchimento de boletins de ocorrência e resultasse em mais prisões.

A ideia não despertou muito interesse, mas despertou o fascínio de Gordon pela tecnologia de segurança. Ele acompanhou os avanços do reconhecimento facial e teve a ideia de criar uma lista de vigilância que os varejistas pudessem compartilhar e ajudar a compilar. Era como as fotos de ladrões de lojas que são mantidas ao lado da caixa registradora, mas transformadas em um banco de dados coletivo para identificar os infratores em tempo real.

Em 2018, Gordon percebeu que a tecnologia estava pronta para uso comercial. “Temos de nos ajudar, não dá para contar com a polícia”, disse.

A Facewatch, que licencia o software de reconhecimento facial criado pela Real Networks e pela Amazon, agora está presente em quase 400 lojas na Grã-Bretanha. Baseados em milhões de fotos e vídeos, os sistemas capturam as informações biométricas do rosto de uma pessoa quando ela entra em uma loja e as comparam com um banco de dados de indivíduos sinalizados.

A lista de vigilância do Facewatch está sempre aumentando, à medida que as lojas enviam fotos de ladrões e clientes problemáticos. Uma vez incluída, a pessoa permanece ali por um ano antes de ser excluída.

‘Erros são raros, mas acontecem’

Em outubro, uma mulher que estava comprando leite em um supermercado em Bristol, na Inglaterra, foi abordada por um funcionário que lhe pediu que saísse da loja, alegando que tinha sido barrada porque o Facewatch a identificara como uma ladra.

A mulher, que pediu que seu nome não fosse divulgado por questões de privacidade, e cuja história foi corroborada por materiais fornecidos por seu advogado e pela Facewatch, afirmou que deve ter havido um engano. Quando entrou em contato com a Facewatch alguns dias depois, a empresa se desculpou, dizendo que se tratava de um caso de erro de identificação.

Depois que a mulher ameaçou levar o caso aos tribunais, a Facewatch vasculhou seus registros e descobriu que ela tinha sido incluída na lista de vigilância por causa de um incidente dez meses antes, envolvendo um valor equivalente a 20 libras em mercadorias. Segundo a Facewatch, “o sistema funcionou perfeitamente”.

Mas, embora a tecnologia tenha identificado corretamente a mulher, houve pouca oportunidade para a intervenção humana. Nem a Facewatch nem a loja onde ocorreu o incidente entraram em contato com a mulher para informá-la de que estava na lista de vigilância e perguntar o que havia acontecido.

A mulher afirmou não se lembrar do incidente e negou ter furtado qualquer loja, mas admitiu que pode acidentalmente ter saído de um quiosque de autoatendimento sem perceber que o pagamento com cartão de débito não fora concluído.

De acordo com Madeleine Stone, diretora jurídica e de políticas internas da Big Brother Watch, a Facewatch estaria “normalizando verificações de segurança semelhantes às dos aeroportos para atividades cotidianas, como comprar um litro de leite”.

Gordon se recusou a comentar o incidente em Bristol, afirmando apenas: “Em geral, os erros são raros, mas acontecem. Se isso ocorrer, reconheceremos nosso erro, pediremos desculpas, excluiremos todos os dados relevantes para evitar que isso ocorra novamente e ofereceremos uma compensação adequada.”

Aprovado pelo órgão regulador da privacidade

Organizações de defesa das liberdades civis levantaram preocupações em relação ao programa da Facewatch e sugeriram que sua implantação para evitar delitos de menor gravidade pode ser considerada ilegal de acordo com a lei de privacidade britânica, que exige que as tecnologias biométricas tenham um “interesse público substancial”.

O Gabinete do Comissário de Informação do Reino Unido (ICO, na sigla em inglês), o órgão regulador de privacidade, passou um ano investigando a Facewatch. Em março, concluiu que o sistema da empresa era admissível perante a lei, mas só depois que esta fizesse alterações em sua operação.

Stephen Bonner, vice-comissário de supervisão regulatória do ICO, afirmou que uma investigação resultou em mudanças nas políticas da Facewatch: a empresa deveria instalar mais sinalização nas lojas, compartilhar com elas apenas as informações sobre os infratores mais graves e violentos, e somente enviar alertas sobre infratores reincidentes. Isso significa que as pessoas não serão incluídas na lista de vigilância depois de um único delito de menor gravidade, como foi o caso da mulher em Bristol.

FONTE:

https://noticias.r7.com/tecnologia-e-ciencia/banido-das-lojas-pelo-reconhecimento-facial-09072023