Moedas digitais ganham o mundo, mas ainda esbarram em desafios

Em torno de 130 países estão trabalhando na criação de suas moedas digitais, o equivalente a 98% do PIB global; garantir maior adesão e anonimato são alguns dos obstáculos enfrentados.

A inovação no mercado financeiro cresce a cada ano e vem transformando a maneira de realizar transações e o modo de operar das instituições da área. Depois da entrada no mercado das fintechs, do crescimento do uso do blockchain e do avanço das criptomoedas, uma nova era começa a se moldar com o desenvolvimento do CBDC, sigla para Central Bank Digital Currency, ou Moeda Digital emitida pelo Banco Central, em tradução livre. Segundo estudo feito pelo Atlantic Council, há em torno de 130 países trabalhando na criação de CBDCs, o equivalente a 98% do PIB global. Para se ter uma ideia do avanço, em maio de 2020, esse número era de apenas 35.

Dos locais em estágio mais avançado, há 19 países, incluindo o Brasil, mas apenas alguns implementaram de fato suas moedas digitais. Além da China, país pioneiro no tema, estão nessa lista Bahamas, Jamaica, Nigéria, Índia e, recentemente, Zimbábue, onde uma CBDC lastreada em ouro foi lançada para tentar controlar a inflação da moeda local. O motivo é simples: em geografias com populações menores, a implementação é menos complexa, como explica Eliseu Tudisco, sócio da PwC Brasil. “A necessidade de criar soluções escaláveis e eficientes para um lançamento mais massificado é um dos desafios enfrentados por vários países”.

Além da dimensão populacional, o sucesso de um projeto desse tipo depende de fatores como tecnologia, aplicação, estágio de desenvolvimento da indústria local, motivadores e definição do modelo. Neste caso, há dois possíveis: o CBDC de varejo, destinado ao uso por consumidores e empresas no cotidiano, e o CBDC de atacado, voltado para o uso por bancos centrais e instituições financeiras. Essa escolha, segundo especialistas, tem ligação direta com o êxito da iniciativa.

Atacado x varejo

Entre os desafios comuns da jornada, estão possuir uma legislação que suporte a nova operação, a coordenação de todos os agentes do mercado financeiro e, claro, a adoção dos cidadãos. “Um grande ruído que existe ao redor do tema é o surgimento de um tipo de ‘big brother’, o que gera uma reação de desconfiança”, ressalta Courtnay Nery Guimarães, CTO para mercado financeiro da Avanade. Na prática, isso acontece com a implementação do modelo de varejo, já que dá ao governo a possibilidade de “espionar” todas as transações financeiras dos cidadãos, assumindo controle sobre esses dados. O termo começou a ser usado em 2022, durante uma entrevista feita pelo empresário Robert Kiyosaki, autor de “Pai rico, pai pobre”, com Jim Rickards, ex-consultor da CIA e do Pentágono, numa comparação com o livro “1984”, escrito por George Orwell na década de 1940. Durante a conversa, eles citaram o caso da China.

Por lá, o Yuan Digital, como a moeda é conhecida pelo mundo, começou a ser implementado em 2014 e, ao que tudo indica, é uma das mais avançadas. No entanto, o modelo usado no país asiático é o de varejo, dando ao governo a centralização das informações. “Dessa forma, há uma vigilância e um acompanhamento direto do que é gasto pela população, podendo gerar problemas, até do ponto de vista de direitos constitucionais protegidos”, afirma Thamilla Talarico, sócia-líder de blockchain e ativos digitais da EY Brasil.

Na Nigéria, onde o modelo adotado também foi o de varejo, a eNaria (nome da moeda digital) implementada em 2021, tem gerado duras críticas da população, que ressalta o maior controle governamental, a falta de anonimato, regras e acessos desiguais de pobres e ricos, e a restrição ao dinheiro físico. Em 2022, alguns bancos limitaram o acesso ao dinheiro e, em 2023, protestos tomaram as ruas e alguns grupos atearam fogo em veículos, agências bancárias e comércios. Este ano, para tentar reverter esse cenário, o Banco Central do país iniciou trabalhos em parcerias com fintechs e empresas de tecnologia. A ideia é aumentar a inclusão financeira, melhorar a funcionalidade e promover a inovação financeira.

Um mix dos modelos

Outro projeto em fase mais avançada é o da Índia. A e-rúpia, nome dado ao CBDC por lá, começou a ser implementada em dezembro de 2022 como uma alternativa digital ao dinheiro físico e desenvolvida com o uso de tecnologia de contabilidade distribuída. O país está conduzindo projetos com os dois modelos de CBDC. Um é focado em aplicações de varejo para transações diárias com a utilização do UPI, sistema de pagamentos instantâneo que segue a linha do Pix, em funcionamento em 15 cidades e com mais de 12 bancos parceiros. O outro é baseado em atacado, com a moeda digital sendo usada nas transferências de depósitos bancários entre instituições financeiras. Em dezembro do ano passado, as transações processadas chegaram a mais de 1 milhão em apenas um dia. No entanto, de acordo com informações da agência de notícias Reuters, o recorde foi atingido porque alguns dos bancos que participam dos testes depositaram fundos e benefícios de seus empregados usando a CBDC, em vez de usarem as contas salariais tradicionais. E não há informações se os números continuaram subindo. Os bancos indianos também estão oferecendo incentivos para transações em CBDC.

No Brasil, o Banco Central iniciou os testes do Drex no segundo semestre de 2023 em parceria com instituições financeiras como Banco do Brasil, Bradesco, BTG Pactual, Caixa Econômica Federal, Itaú Unibanco, Nubank, Santander, Sicredi, Sicoob, Banco Original e Banco Inter. A ideia, a princípio, é trabalhar com os dois modelos. Como fazer transações anônimas já faz parte da cultura brasileira, tanto que o Banco Central do Brasil já se posicionou, trabalhando em uma aplicação com caráter offline para manter a privacidade das transações, o sucesso da iniciativa parece mais viável. O Pix resolveu o lado transacional, deixando para o Drex, por exemplo, o desenvolvimento dos serviços inteligentes, além de contribuir para a evolução do sistema financeiro para viabilizar as transações como empréstimo, crédito e transferência de propriedades.

Parcerias e troca de conhecimento

Segundo especialistas ouvidos por Época Negócios, é muito cedo para falar de sucesso ou fracasso de CBDCs, pois a maioria dos projetos está em fase inicial e os mais avançados seguem fazendo ajustes. Entre os desafios comuns a todos está a regulamentação. Guimarães, da Avanade, recomenda a aposta em equipes multidisciplinares e um laboratório intenso de casos de uso, de preferência operando em modelos de open innovation (com várias iniciativas em paralelo, sejam privadas, públicas, na academia ou em ideathons e hackathons abertos). “O Banco Central tem feito isso nos últimos anos por meio dos programas LIFT e via Fenasbac [Federação Nacional de Associações dos Servidores do Banco Central], no Aceleração Next”, exemplifica.

A colaboração é, inclusive, uma prática que vem ganhando espaço. “Começamos a ver países que já estão trabalhando em seus projetos de CBDC se unirem a outros locais para desenvolver ações. É o caso do Projeto Mariana, uma parceria entre o BIS Innovation Hub (BISIH), o BC da França (Bank of France), o banco central de Singapura (Monetary Authority of Singapore, MAS) e o banco central suíço, o Swiss National Bank”, afirma Thamilla, da EY. A ideia é usar novos conceitos de tecnologia de finanças descentralizadas (DeFi) em uma blockchain pública.

Projetos como esse apontam um possível caminho para uma transformação global importante no sistema financeiro mundial, graças a uma tecnologia que permite transações sem se importar com fronteiras ou fusos horários. Entretanto, para que essa transformação aconteça é preciso colocar todos os países envolvidos na mesma página. É necessário, por exemplo, alinhar conhecimentos e expectativas dos atores envolvidos, como governos e sistemas financeiros, como explica Thamilla. “Alguns países tenderão a impor um controle maior em relação a um risco que não pode ser visto por ouitro”, diz. Apesar disso, esses projetos internacionais são importantes para começar a gerar massa crítica.

Até lá, cada país vai lidando com seus avanços e obstáculos, como a velocidade de adoção. A compreensão e aceitação do público em relação ao modelo e seus objetivos e aplicabilidade também são obstáculos que devem ser superados. Termos como blockchain, carteira digital e open finance ainda são desconhecidos para muitos, o que pode gerar uma desconfiança maior e retardar significativamente a adesão em massa. Além disso, questões regulatórias emergem, especialmente em relação à privacidade e à conformidade com a LGPD. A escolha de uma plataforma tecnológica open source, originalmente não projetada para esse propósito, adiciona complexidade. A customização e testes são imperativos para garantir a eficácia da solução.

Outra preocupação pertinente é a capacidade do governo de bloquear e invalidar transações, mesmo que atualmente essa funcionalidade seja limitada ao ambiente experimental. Essas questões levantam preocupações sociais que precisam ser consideradas, e a expectativa é de que sejam alvo de revisão em um futuro próximo.

FONTE:

https://epocanegocios.globo.com/futuro-do-dinheiro/noticia/2024/05/moedas-digitais-ganham-o-mundo-mas-ainda-esbarram-em-desafios.ghtml