“A inteligência artificial é crucial para o ambiente de desenvolvimento”, diz Glauco Arbix

Professor do Departamento de Sociologia da USP, Arbix destaca que novas tecnologias têm promovido transformações poderosas na economia e se tornaram ativo essencial para o desenvolvimento.

Glauco Arbix, professor da USP e integrante do CDESS: “É preciso abrir a possibilidade de utilizar a criatividade dos jovens” — Foto: Carol Carquejeiro/ Valor

A inteligência artificial (IA) deve ser considerada uma prioridade na estratégia nacional de inovação, ou o Brasil vai ficar para trás na revolução tecnológica. Quem alerta é Glauco Arbix, professor titular do departamento de sociologia da Universidade de São Paulo (USP). Ele é membro do Observatório da Inovação e Competitividade (OIC), vinculado ao Instituto de Estudos Avançados (IEA) da instituição acadêmica. O pesquisador ressalta que as novas tecnologias digitais têm promovido transformações tão poderosas na economia, que elas passaram a ser consideradas um ativo essencial para o desenvolvimento dos países. Embora o Brasil tenha ilhas de excelência entre empresas, universidades e centros de pesquisa, a economia nacional ainda patina no baixo desempenho.

Arbix observa que as novas tecnologias são fonte de disputas de poder na geopolítica e estão reordenando o mapa mundial, com o pêndulo da inovação, atualmente, tendendo para a Ásia. Essa dança dos países se orienta por objetivos que vão além do preenchimento de lacunas de cadeias produtivas ou da redução de déficits comerciais – diretrizes predominantes no Brasil –, focando a inovação que realimenta o desenvolvimento.

Ele está convencido de que a IA é ingrediente-chave para criar um ambiente propício ao desenvolvimento, de modo que outras ferramentas e áreas da economia consigam inovar com eficiência.

Para uma melhor compreensão do quadro atual, o professor convida à reflexão sobre a história do país a partir dos anos 1960, quando a distância que separava o Brasil da ciência e da tecnologia de ponta era imensa, marcada por períodos de intolerância política que asfixiaram o ensino superior e pela ausência de referências legais sobre inovação.

“A mutilação da democracia, a censura e a intolerância, o encolhimento da política e a asfixia do ensino superior aumentavam as resistências das universidades, que não tinham a inovação como meta nem buscavam uma aproximação com as empresas para desenvolver tecnologia como parte de sua missão”, pontua Arbix.

“Nos anos 1970, os planos nacionais de desenvolvimento levaram ao fortalecimento de setores de bens de capital, energia, eletrônica pesada e infraestrutura, mas foram pouco efetivos na integração do Brasil à economia mundial e à conquista de novos mercados.”

Durante os dois primeiros mandatos do governo Lula, houve crescimento do apoio público à ciência e tecnologia, com melhorias no marco regulatório, como a aprovação da Lei da Inovação e da Lei do Bem, a criação dos fundos setoriais e a diversificação dos instrumentos de fomento. Contudo, na sua visão, é preciso recuperar o tempo perdido no último governo. Para isso, é necessário aproveitar sem demora as oportunidades que surgem neste período de mudanças.

A superação da defasagem em inovação demanda uma estratégia nacional que promova a colaboração ativa entre o poder público, o empresariado e a comunidade científica, defende o professor da USP. Para ele, um ponto central deve ser a criação de um ecossistema de inteligência artificial, pois a tecnologia abre possibilidades imensas para países como o Brasil, que precisa superar a pobreza e as enormes desigualdades sociais.

Ele assinala que essa mudança requer uma melhor conexão da economia brasileira com o mundo, por meio do fortalecimento da educação e de fortes investimentos em infraestrutura para viabilizar a criação de grandes rotas de fluxos de informação.

Em maio, Arbix foi nomeado membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável (CDESS), recriado recentemente pelo governo. O “Conselhão”, como é mais conhecido, tem a atribuição de assessorar o presidente da República na formulação de políticas e diretrizes sobre o tema, além de criar grupos de trabalho para fazer propostas de ações específicas. O sociólogo pretende levar suas sugestões sobre inovação à apreciação do governo.

Baixo desempenho

O Brasil está despreparado para lidar com o novo ciclo tecnológico. Nossa economia continua sendo de baixo desempenho e baixa inovação. E uma parte significativa dos empresários é responsável por isso pelo apoio dado ao governo anterior. Nos últimos cinco ou seis anos, regredimos quase 20 em termos de inovação. Voltamos atrás no que foi construído a duras penas. Uma parte do empresariado está disposta a inovar. O agronegócio, por exemplo, cresceu quando introduziu a automação nos seus sistemas e se transformou em referência mundial. Mas as empresas, majoritariamente, não são inovadoras. O sinal vermelho está aceso: ou o país acorda, ou vamos ficar ainda mais atrás das outras nações.

Sem prioridade

Ciência, tecnologia e educação nunca foram prioridades no Brasil. Essas atividades são movidas pela dúvida, curiosidade e liberdade de pesquisa, mas remavam contra a corrente desde o golpe militar de 1964. As universidades, que eram as principais fontes de formação de profissionais, estavam sitiadas pelo governo, se debatendo na busca da autonomia e da dignidade perdidas. Nessas circunstâncias, a produção de conhecimento novo se ligava ao esforço individual de pequenos grupos e raras instituições. A articulação de um sistema robusto de pós-graduação só começou a funcionar quando o governo reconheceu que não poderia ignorar a universidade se quisesse desenvolver o país. Isso aconteceu a duras penas e com alto preço, pago nas moedas da opressão, do corte de verbas e da cassação de professores. As metas sociais definidas pelos planos nacionais de desenvolvimento jamais foram alcançadas, e a indústria prevista por eles se mostrou descolada dos avanços mundiais, sem conexão com as novas tendências de produção e de serviços que se espalhavam pelas economias.

Estratégia desdentada

O calcanhar de Aquiles é o baixo nível de investimento das empresas em pesquisa e desenvolvimento, em comparação com a média internacional. Há um volume expressivo de investimentos em máquinas e equipamentos, o que acaba deformando um pouco os indicadores. O número de empresas mais competitivas ainda é muito pequeno, incapaz de puxar o rumo da economia. Somos o décimo segundo produtor de artigos acadêmicos sobre inteligência artificial e temos uma elite acadêmica bastante interessante, formada nas melhores universidades, mas não temos uma estratégia tecnológica à altura. Nossa estratégia é desdentada, sem objetivo e sem prazo.

Inteligência artificial

A inteligência artificial é um conjunto de tecnologias capaz de gerar outras tecnologias, novas metodologias e aplicações. Por isso, suas características são de natureza distinta de outras inovações que chegam ao mercado. Seu impacto no crescimento da economia e na melhoria da vida social é potencialmente muito maior do que outras inovações. É o que justifica a atenção especial que devem receber. Nem sempre governos e empresas conseguem identificar a emergência de tecnologias com essas características distintivas em tempo oportuno. Com isso, deixam de definir incentivos para a sua propagação, de decidir investimentos e de aproveitar as janelas de oportunidades.

O subinvestimento nessas áreas novas e sensíveis pode determinar seu avanço ou retração. Esse é o risco que corre o Brasil de hoje diante da inteligência artificial. A preocupação fica ainda mais forte quando se constata que os níveis de produtividade do trabalho nas economias avançadas são quase cinco vezes maiores do que no Brasil, onde os indicadores estão praticamente estagnados desde os anos 1980. Apesar de os estudos mostrarem a incorporação de tecnologia pelas empresas, inovação é fundamental para a elevação da produtividade, e desde 2015 o Brasil tem diminuído o investimento na área.

Se a OpenAI descesse hoje de avião no Brasil e nos desse todos os modelos de linguagem do ChatGPT, não teríamos computadores capazes de rodá-los. Os grandes modelos de linguagem exigem, para começar, em torno de 100 GPUs [Unidade de Processamento Gráfico, na sigla em inglês]. Aqui, o mais avançado que temos são os computadores da Petrobras, com 60 a 70 GPUs. Mesmo quando se consegue capacidade computacional razoável com o uso de computação em paralelo, ela ainda é muito baixa.

O Brasil está perdendo mais uma vez a oportunidade de trabalhar as novas tecnologias, especialmente as digitais e a inteligência artificial. Não há país hoje que possa avançar sem olhar para essas áreas. É fundamental que o governo crie condições para o desenvolvimento de um subsistema de inteligência artificial, que é diferente dos outros. As pequenas empresas funcionam muito bem em várias áreas, mas não em todas. No caso da inteligência artificial, o mercado é formado por corporações gigantes. Aqui temos grandes empresas de tecnologia, como a Totvs e a Stefanini, mas sozinhas elas não vão dar conta do desafio. A formação de recursos humanos é fundamental para o sucesso desse subsistema.

“O governo deve estimular a criação de novos cursos e disciplinas de inteligência artificial nas universidades, assim como fomentar programas e iniciativas que preparem crianças e jovens para uma nova era.”

Infraestrutura e colaboração

É preciso abrir a possibilidade de utilizar a criatividade dos jovens, com investimentos em uma infraestrutura adequada para que possam participar desse novo momento. É fundamental avançar na informatização das nossas escolas, na sua integração aos centros culturais e universidades. Não há como fazer indústria 4.0 se não avançarmos nas grandes rotas de fluxos de informação. Não peço o impossível, estou pedindo o mínimo: infraestrutura para que a gente tenha capacidade industrial de fazer fluir a informação. Nesse esforço, também é importante incluir milhões de pequenas empresas. A parceria das grandes corporações com startups é importante para oxigenar a indústria e fazê-la diferente.

Proposições

É importante que o governo abra o debate sobre a estratégia nacional de inovação, para decidirmos o que o Brasil quer ser. Precisamos de um pacto entre governo, setor empresarial e universidades para destravar a nossa energia, além de desenvolver os sistemas de financiamento públicos e privados. Os Estados Unidos, por exemplo, têm hoje uma política industrial muito avançada, combinando investimento em infraestrutura e energias limpas, com foco gigantesco no digital, tanto no software quanto nos semicondutores. Eles compreenderam que a tecnologia é a chave.

O Brasil deve manter o foco tanto na infraestrutura quanto nos setores em que temos potencial muito forte. A área de saúde, por exemplo, concentra mais de 30% dos investimentos no mundo e é vital para as necessidades nacionais, porque faz ponte com a área social, que precisa se desenvolver. Necessitamos de centros avançados de pesquisa que consigam desenvolver tecnologia em áreas como a de energia limpa para a transição energética.

Há um espaço enorme a ser explorado. O hidrogênio verde com base no etanol, por exemplo, é uma grande vantagem comparativa. Esses investimentos têm que estar ao lado do desenvolvimento de baterias. Um outro exemplo: o Brasil é um dos principais países do mundo em possibilidades de prospecção de terras raras, que são fundamentais para a indústria eletroeletrônica, e poderia se tornar um dos grandes players globais nessa área.

É certo que a criação de uma verdadeira cultura da inovação no Brasil avançou, mas também há muito o que aperfeiçoar, consolidar e construir.

FONTE: https://valor.globo.com/inovacao/noticia/2023/08/02/a-inteligencia-artificial-e-crucial-para-o-ambiente-de-desenvolvimento-diz-glauco-arbix.ghtml