Diagnósticos rápidos, diminuição de filas, democratização da cirurgia: Como a IA está mudando a medicina

Tecnologia ‘não vai substituir o médico’, mas já ajuda a reduzir fila de atendimentos e melhorar diagnósticos.

No Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, os profissionais de saúde conseguem prever se uma pessoa ficará internada entre 20 e 30 minutos depois de ela dar entrada no pronto-atendimento. Também têm a capacidade de saber se o estado de um paciente da unidade semi-intensiva vai se deteriorar oito horas antes de as condições piorarem. E são alertados sempre que uma intercorrência acontece em um dos 700 leitos da instituição, o que inclui desde uma arritmia até um remédio que não foi administrado na hora certa.

Em todos os casos, o motor das novidades é o mesmo – a inteligência artificial. Não que a tecnologia seja novidade nos hospitais de referência no país. No Einstein, alguns desses algoritmos estão em funcionamento há três anos ou mais. Mas é consenso que, com o rápido avanço da IA generativa – capaz de criar textos, imagens, vídeos e softwares, entre outras funções -, a inteligência artificial está prestes a abrir um novo capítulo na história da medicina.

“Nenhuma instituição moderna pode prescindir da inovação como um de seus pilares”, diz o professor Giovanni Cerri, presidente dos conselhos dos Institutos de Inovação (InovaHC) e de Radiologia (InRad) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). “Existe muito potencial para o uso da inteligência artificial na medicina, especialmente em áreas como radiologia. Dificilmente se fará atendimento de saúde de qualidade no futuro sem IA.”

Boa parte dos algoritmos de IA estão sendo aplicados às áreas de gestão e qualidade dos hospitais, que antecedem consultas, exames ou cirurgias. Mas, mesmo nesses casos, há benefícios para os pacientes, ainda que não sejam tão perceptíveis. No Einstein, o algoritmo que ajuda a identificar as chances de a pessoa ficar internada permite reservar e preparar o leito antes que o médico peça a internação, o que reduz em 15% o tempo de espera para o paciente.

Outro algoritmo ajuda a maximizar o uso das salas de cirurgia. O sistema leva em conta vários fatores, incluindo a velocidade média de cada cirurgião para aquele procedimento, os instrumentos que serão utilizados, a complexidade da intervenção, em que parte do hospital está internado o paciente etc. Em uso desde 2019, o algoritmo permitiu abrir de quatro a cinco vagas por dia nas salas cirúrgicas, sem que o hospital precisasse ampliar a infraestrutura.

“Costumo dizer que o médico que tiver medo de ser substituído pela IA será substituído pelo médico que usa IA”, afirma Sidney Klajner, presidente do Einstein. Cirurgião do aparelho digestivo, ele diz que o conhecimento médico tem dobrado a cada ano. Nesse ritmo, para se manter atualizado, o profissional de medicina teria de ler 28 artigos por dia. “O cérebro humano está ficando incapaz de lidar com tanto conhecimento sem ajuda para transformar tudo isso em algo útil para o paciente”, observa. “A IA é um motivo para se comemorar.”

A rápida evolução da IA generativa nos últimos meses e a disseminação dos chatbots despertaram o receio de que, daqui a algum tempo, a máquina venha a substituir o ser humano em atividades básicas – como o professor em sala de aula. Na medicina, em especial, o temor generalizado é de que, com a automatização crescente, o tratamento fique “menos humano”. Ninguém quer entrar no consultório e se deparar com um robô do outro lado da mesa.

Na gestão dos hospitais, no entanto, a expectativa é que a adoção equilibrada da tecnologia vá aumentar, em vez de reduzir, o caráter humano da assistência médica. Ao assumir tarefas repetitivas, a inteligência artificial pode liberar mais tempo para que médicos, enfermeiros e técnicos se dediquem ao paciente.

“A IA não vai substituir o médico”, diz Cesar Nomura, superintendente de medicina diagnóstica do Hospital Sírio-Libanês e presidente da Sociedade Paulista de Radiologia. É preciso ter cautela com as promessas de que a IA, sozinha, será suficiente para tratar as pessoas, alerta o especialista. “Há muito hype em torno disso, muito exagero. O médico será o curador do que é oferecido pelos algoritmos. Por isso, não se pode abrir mão da qualidade do profissional. Ele precisa ter um olhar atento para a tecnologia. Não precisa ser o primeiro a adotar uma novidade, mas não pode andar com o freio de mão puxado.”

No Sírio-Libanês, um dos principais usos da IA é na área de diagnósticos, principalmente no campo da ortopedia. O tempo necessário para fazer exames de ressonância magnética, que levavam de 30 a 40 minutos em média, está sendo reduzido entre 30% e 50% com ajuda da IA, sem perda de qualidade, ressalta Nomura. Uma ressonância de tornozelo, hoje, dura apenas cinco minutos.

Como as máquinas de ressonância ficam ligadas o tempo todo, a redução no tempo do exame permite atender mais pessoas e maximizar o uso do equipamento, com ganhos como economia de energia. Pessoas com claustrofobia, que precisam ser sedadas para entrar na máquina de ressonância, têm a chance de dispensar a anestesia. “A IA funciona em prol da experiência do paciente, da rentabilidade e da sustentabilidade”, afirma Nomura.

Para os hospitais, a IA impõe a tarefa de atualizar as políticas de uso e os parâmetros técnicos de adoção da tecnologia, selecionar as bases de dados, testar os algoritmos, definir os critérios de implementação dos sistemas, estabelecer parcerias científicas. É um trabalho crescente – e contínuo.

“No Einstein, temos uma área de tecnologia da informação bastante robusta, que daria uma outra empresa”, diz Klajner. O hospital tem um comitê estratégico que faz recomendações sobre as prioridades em termos de recursos e investimentos em tecnologia, e, desde 2014, conta com uma diretoria de inovação. Ao longo do tempo, a ideia de estabelecer um centro de inovação para que os colaboradores pudessem desenvolver e testar seus protótipos, deu origem a algo maior – o Eretz.bio.

Em funcionamento há seis anos, o Eretz.bio é um espaço onde empreendedores têm acesso à infraestrutura do hospital para criar produtos na área de saúde, dentro de um ecossistema de inovação. “Eretz” é a palavra em hebraico para “terra”. Até agora, 145 startups passaram pelo programa de aceleração de negócios da Eretz.bio e mais de 200, de 20 países diferentes, receberam apoio para seus projetos. Entre os casos recentes estão a Pangea Botanica, do Reino Unido, que usa IA para criar opções terapêuticas para doenças neurológicas, e a argentina Radbio, que desenvolve uma molécula para tratar a fibrose ideiopática, uma doença pulmonar. O Einstein criou até um fundo de “corporate venture capital” para investir em companhias iniciantes.

“Talvez o maior benefício [desse movimento] seja uma transformação cultural da organização, que permite a qualquer profissional pensar numa solução inovadora para gargalos na gestão e na assistência médica”, afirma Klajner.

As oportunidades na área de saúde indicam como pode ficar, no futuro, o mapa geral da inteligência artificial. A previsão é que as “Big Techs” vão dominar os chamados grandes modelos de linguagem, usados para fins gerais, como o ChatGPT (da OpenAI, apoiada pela Microsoft) e o Gemini (do Google). Mas há uma infinidade de aplicações com finalidades bem específicas que serão desenvolvidas por companhias especializadas, como edutechs (para educação), agrotechs (agronegócios), fintechs (finanças) e assim por diante.

No caso das healthtechs, de saúde, existem 520 empresas ativas no país, segundo o estudo “Startup Landscape: Health Techs”, elaborado pela Liga Ventures, uma plataforma que conecta startups a grandes empresas, e a consultoria PwC. Entre janeiro de 2022 e junho do ano passado, o segmento captou R$ 1,3 bilhão em investimentos, de acordo com o relatório. No mundo, as healthtechs vão movimentar em torno de US$ 504 bilhões até 2025, prevê a consultoria Global Market Insights.

O radiologista Bruno Aragão é um exemplo de como a IA pode estimular o empreendedorismo na medicina. Em 2018, ele se juntou a três colegas – dois cientistas de dados e um geneticista – para fundar a MaChiron. A startup criou um algoritmo de inteligência artificial que ajuda a identificar casos suspeitos de câncer de fígado, um tumor silencioso e agressivo que, dependendo do caso, pode demandar quimioterapia e até transplante a partir do diagnóstico de imagem. “Isso torna o resultado do laudo ainda mais importante”, diz o especialista.

Em geral, um radiologista leva de 40 a 50 minutos para avaliar uma tomografia e identificar sinais da doença. A triagem é feita por ordem cronológica, ou seja, os exames feitos antes são examinados primeiro. O algoritmo da MaChiron analisa as imagens em 30 segundos e classifica os casos de acordo com as chances de o paciente estar doente. O índice de acerto é de 95%. “A IA não substitui em hipótese alguma o trabalho humano. A acurácia não é perfeita, mas nos casos em que identifica o tumor, o benefício para o paciente é grande”, diz Aragão.

A MaChiron usou 700 exames para treinar sua plataforma de IA, que está em teste no InRad-HC, onde Aragão atua. A startup recebeu R$ 800 mil do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e é uma das companhias do InovaHC, ecossistema de inovação pelo qual já passaram cerca de cem empresas iniciantes. Atualmente, 30 startups participam da iniciativa, que oferece laboratórios, suporte legal e conexões com investidores.

“Como os ciclos de desenvolvimento [tecnológico] são longos, o incentivo de organizações é fundamental. No nosso caso, se não fosse pelo InovaHC e a Fapesp, a pesquisa não teria saído do papel”, diz Aragão. “Mas uma vez que o produto esteja validado, os investidores prestam atenção.”

No Sírio-Libanês, algoritmos de IA auxiliam na gestão do hospital, com indicações de quantos dias o paciente ficará internado, o que melhora o fluxo de leitos. O relacionamento com os planos de saúde – principais pagadores na área da medicina privada – é outro ponto importante. É preciso calcular cada item usado, desde medicamentos e material cirúrgico até exames e eventuais refeições de acompanhantes.

“São milhares de itens, que você não consegue controlar a olho nu”, diz Ailton Brandão, diretor de inovação do Sírio. “Com os algoritmos é possível saber até que agulha e fio de sutura foram usados. Se algum item é rejeitado [pela operadora], você usa outro material. O controle da cadeia proporciona mais eficiência.”

Em 2019, o Sírio criou o DataLab ao integrar as áreas de tecnologia, produtos digitais e cibersegurança. “Analisamos as ferramentas [de inteligência artificial] disponíveis no mercado e desenvolvemos [internamente] aquilo que não existe”, explica Felipe Veiga, coordenador do DataLab.

Dificilmente se fará atendimento de saúde de qualidade no futuro sem IA”
— Giovanni Cerri

Uma das primeiras criações do DataLab foi uma agenda inteligente para prever a probabilidade de um paciente faltar a um exame. O algoritmo leva em consideração variáveis como o lugar onde a pessoa mora, profissão, tipo de exame etc. Ao detectar um risco alto de absenteísmo, a IA aciona um profissional de saúde, que entra em contato com o paciente para estimular sua vinda e evitar que o equipamento fique ocioso. Outros conjuntos de algoritmos em uso no hospital preveem as chances de alguém não seguir o tratamento recomendado. Nos casos mais graves, o médico é acionado. Ameaças de infecção hospitalar e de superdosagem de remédios também são alvos da IA.

“A pergunta inicial [da pesquisa em IA na medicina] deve ser ‘quantos pacientes eu consigo impactar?’”, diz Veiga. Os passos seguintes são validar a hipótese com a área de especialização, reunir os dados necessários e, então, traçar o plano de ação. Feito isso, é treinar e testar o algoritmo. A princípio, afirma Brandão, 80% do trabalho estava concentrado em buscar dados e 20% em criar algoritmos. Hoje, essa proporção já se inverteu.

O Sírio-Libanês deu início a seu programa de incubação de startups com uma empresa de inteligência artificial, a Sofya AI. A startup calcula que um terço do tempo dos profissionais de saúde é consumido pela papelada digital, o que contribui para o esgotamento da equipe e o crescimento do número de erros médicos, uma das maiores causas de morte nos Estados Unidos. O sistema da Sofya reduz em 60% o tempo para registrar informações do paciente, com a identificação de problemas, queixas, medicamentos que estão sendo tomados etc. A atendente só precisa revisar os registros.

A regulamentação da IA, que está em estudo em vários países, inclusive no Brasil, e é um tema polêmico, não preocupa muito os gestores de saúde. O entendimento no setor é de que a aplicação da tecnologia na medicina precisa de regras, como em qualquer área de atividade, mas que o setor já conta com vários tipos de regulação, que contemplam de alguma maneira as inovações que podem ser trazidas pela inteligência artificial. Além disso, os hospitais que investem em pesquisa e desenvolvimento desenvolveram códigos de regras e procedimentos para testar e validar novas tecnologias antes de disseminar seu uso.

Existe, no entanto, outro desafio no horizonte da IA: o risco de que a tecnologia aprofunde o abismo digital ao ficar restrita a uma parcela reduzida da população, que pode pagar por seus benefícios.

Para reduzir essa ameaça, hospitais públicos e filantrópicos estão desenvolvendo projetos para estender o uso da tecnologia à rede pública de saúde. No semestre passado, o Einstein venceu o prêmio Grand Challenges, da Fundação Bill e Melinda Gates, com um projeto identificado pela sigla SAMPa, que vai auxiliar no acompanhamento pré-natal de mulheres da região Norte, a começar por unidades do Amazonas. O sistema de IA generativa “ouve” as queixas da paciente e faz sugestões de perguntas para que o profissional de saúde avance no atendimento. O SAMPa foi um dos quase 50 projetos premiados entre os mais de 1,3 mil inscritos.

A instituição também está estabelecendo um “hub” de inovação em Manaus que vai reproduzir um programa dirigido ao público infantil que já funciona em São Paulo. Com recursos de IA e realidade aumentada, o modelo diminuiu em 60% o uso de sedação em crianças na hora de fazer tomografias e ressonâncias magnéticas. Os pacientes se distraem com aplicativos enquanto fazem o exame. Outro trabalho, de Big Data – o tratamento e a análise de enormes volumes de dados -, está sendo feito com quase 200 UTIs de hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) para colher informações sobre superbactérias e criar cartilhas de prevenção e tratamento das doenças.

No Sírio-Libanês está em andamento o projeto Regula+ Brasil, que funciona no âmbito do Programa de Apoio ao Desenvolvimento do SUS (Proadi-SUS). O projeto de telemedicina visa reduzir as filas de consultas com especialistas, que podem demorar meses na rede pública. A IA examina o prontuário dos pacientes e, dependendo do caso, recomenda o atendimento pelo próprio médico do posto de saúde, para quem envia material informativo e abre uma linha de conversa remota com um especialista. Ficam na fila apenas os pacientes cujo tratamento requer, de fato, a participação direta do especialista.

No Brasil, com um território tão extenso e marcado pela desigualdade regional, a combinação da IA com outras tecnologias, principalmente a telemedicina, pode levar recursos sofisticados a pontos mais pobres e distantes, ressaltam especialistas. Um dos projetos desenvolvidos pelo HC é um programa de 5G – o mais rápido e recente padrão de comunicação móvel – aplicado à saúde na região amazônica. “A saúde digital só anda bem com boa conectividade”, diz Cerri.

Nos grandes centros, combinações desse tipo podem contribuir para a mobilidade urbana, afirma Nomura. A primeira consulta provavelmente continuará a ser feita presencialmente, para que o médico possa examinar o paciente mais detalhadamente, identificar pontos de dor etc. Mas, com o avanço da tecnologia, a perspectiva é que as consultas de acompanhamento sejam feitas a distância. Também compõem esse quadro o desenvolvimento de sensores e outros dispositivos com recursos de monitoramento da saúde, como smartwatches, podem ajudar a formar esse quadro, e o prontuário eletrônico unificado, em que as informações médicas serão propriedade do paciente, mas poderão ser compartilhadas on-line com as instituições e profissionais que ele quiser.

A fronteira final da IA será a democratização da cirurgia, diz Klajner, do Einstein. Com recursos avançados de telemedicina e conexões velozes, uma cirurgia por robô poderá ser acompanhada por médicos de diferentes países sob a orientação de um preceptor virtual. A cada movimento, o algoritmo vai munir o médico com informações em tempo real para ajudá-lo a tomar uma decisão, como “80% dos cirurgiões neste momento escolhem esse procedimento”, além de emitir alertas do tipo “cuidado, porque existe uma artéria a um milímetro de onde você está trabalhando”, afirma o médico. Mesmo que o robô esteja segurando o bisturi e a IA sopre conselhos ao ouvido, a decisão repousará em mãos humanas.

FONTE: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2024/02/23/diagnosticos-rapidos-diminuicao-de-filas-democratizacao-da-cirurgia-como-a-ia-esta-mudando-a-medicina.ghtml