Cuidado, a IA pode assumir o papel da liderança

O colunista Claudio Garcia alerta para a redefinição dos processos de gestão em função da nova tecnologia.

Se vocês têm dúvidas sobre como será a nossa relação com a inteligência artificial, vocês precisam conhecer a história da Eliza, um simples programa conversacional (o que chamamos de bot) criado a partir de processamento natural de linguagem.

Eliza simulava um psicoterapeuta que faz perguntas formuladas com base nas palavras usadas pelo próprio paciente. O criador da Eliza, Joseph Weizenbaum, pesquisador do MIT, ficou assustado porque pessoas estavam atribuindo reações emocionais ao programa, incluindo sua secretária, que um dia quis ter uma conversa sozinha com Eliza em uma sala isolada.

Eliza foi criada em 1964, muitos anos antes de o computador pessoal se tornar algo “familiar”. Desde então, vimos crianças se desesperando nos anos 90 pela morte dos seus tamagotchis – “bicho” virtual de estimação, do tamanho de um chaveiro, que requeria atenção regular de seus donos – e adultos preocupados por xingarem a Alexa, a assistente virtual da Amazon, por estarem dando mal exemplo aos filhos.

Antropomorfização é um subproduto do nosso processo evolutivo. Quando era difícil distinguir uma rocha escura de um urso, durante a noite, acreditar que era um urso ampliava nossas chances de sobrevivência. Pesquisadores acreditam que ao longo de milhões de anos situações semelhantes nos levaram a exagerar características humanas em animais, objetos, deuses, etc. A tecnologia tornará a antropomorfização dos objetos algo bem real. Com o rápido advento da IA generativa e sua integração com assistentes eletrônicos (Siri, Alexa, Google, etc), conversaremos com objetos de forma bem mais frequente e não só muito melhor do que com a Eliza, mas, em breve, melhor do que com muita gente. Assim como uma rocha, a IA não sente nem compreende – mas será impossível sermos inertes emocionalmente a ela.

As implicações são imensas. Além de servir como uma inteligência ampliada, a IA preencherá muito aspectos corriqueiros das nossas vidas. Imagine a indústria da saúde. Uma amiga, professora de uma escola de negócios, recentemente relatou que dados mostram que muitos indivíduos já consultam mais os seus assistentes virtuais sobre sua saúde do que buscam médicos, com suas consultas cada vez mais curtas, pressionados por um sistema de saúde cada vez mais caro. Se, por um lado, o acesso indiscriminado a dicas de saúde representa riscos enormes, quando se parte de soluções bem pensadas, ele pode representar oportunidades ainda maiores para uma população que está vivendo cada vez mais e tem dificuldades de encontrar profissionais de saúde, cuidadores e companhias.

Já existem pesquisas que mostram impactos relevantes de robôs sociais na redução de ansiedade, solidão e aumento da qualidade de vida de idosos. Sem contar que são super confiáveis para lembrar de medicamentos, estimular atividades físicas e monitorar condições de saúde. Isso antes mesmo do advento da IA generativa.

A realidade para gestão e mesmo sobre o que entendemos como organização dificilmente será a mesma. Ao mesmo tempo que a lista das características “humanas que jamais serão substituídas por máquinas” fica rapidamente menor, pesquisas do MIT mostram que será cada vez mais difícil identificar quem produzirá o que e com quem estamos interagindo. Se imaginarmos que em empresas como Uber, Amazon e iFood, entre várias outras, milhões de trabalhadores já recebem instruções diretas de algoritmos, não fica difícil imaginar que, em uma realidade ainda se estruturando, liderança, um conceito abstrato, ainda é uma área em total redefinição. Concluindo: apertem os cintos.

Claudio Garcia é presidente da Outthinker Networks e ensina gestão global na Universidade de Nova York

FONTE:

https://valor.globo.com/carreira/coluna/cuidado-a-ia-pode-assumir-o-papel-da-lideranca.ghtml