Trabalho remoto agora é diferencial de poucas organizações

Enquanto 75% dos profissionais no Brasil valorizam o híbrido, 38% das companhias oferecem o modelo e 9%, o totalmente a distância.

Ronaldo Arregalo: “Não encaixa mais [na minha vida] ir ao escritório [diariamente].” — Foto: Gabriel Reis/Valor

Três quartos dos 3.476 profissionais brasileiros (75%) entrevistados em uma recente pesquisa afirmaram que o trabalho híbrido – aquele que pode ser feito alguns dias da semana no escritório e outros em casa – é o quesito mais relevante quando o assunto é flexibilidade. A porcentagem ficou ligeiramente acima da média global (72%), em um levantamento obtido pelo Valor e feito pela empresa de recrutamento PageGroup com cerca de 70 mil pessoas em 37 países entre novembro de 2022 e janeiro de 2023. Ainda segundo a pesquisa, 70% dos brasileiros consideram a carga horária flexível como o segundo fator mais importante para a flexibilidade no emprego.

A preferência do trabalhador, no entanto, parece não ter tanto peso assim na decisão das empresas sobre qual modelo de jornada seguir. Um outro levantamento, este da consultoria PwC, apontou que somente 38% dos entrevistados no Brasil estão trabalhando no modelo híbrido, menos que os 43% da pesquisa anterior. Na amostra atual, 53% indicaram que agora precisam estar fisicamente em seu local de trabalho o tempo todo – mais do que os 47% da pesquisa anterior. Apenas 9% dos brasileiros disseram trabalhar exclusivamente a distância – menos que os 12% da pesquisa anterior. O estudo da PwC, chamado Global Consumer Insights Survey, é feito semestralmente, e a última amostra coletou dados de 9 mil pessoas em 25 países em fevereiro deste ano.

O executivo Ronaldo Arregalo, diretor geral no Brasil da Megger, uma fabricante de produtos e soluções de ativos elétricos para a área de energia com cerca de 3 mil funcionários globalmente, é um exemplo de profissional que leva em conta o formato de trabalho antes de aceitar um emprego. No atual cargo desde agosto de 2023, ele recusou três ofertas anteriores porque as empresas se diziam atuando no modelo híbrido, mas ele, ao conversar com quem ali trabalhava, percebeu que não era bem assim. “Tomei a decisão de não arriscar”, afirma. “Não encaixa mais [na minha vida] isso de ir ao escritório [diariamente].”

Arregalo é pai de uma menina de sete anos e, no momento, além de buscar desafios profissionais, quer aumentar o tempo com a família, o que o remoto permite. Na atual função, em que precisa criar um plano estratégico de crescimento para o Brasil e lidar com o “board” executivo da companhia fora do país, ele atua totalmente a distância. O executivo comenta, no entanto, que esse formato não funciona para todos. “Acho que essa flexibilidade não cabe para todas as funções e pessoas”, diz. “É uma análise caso a caso.”

Aí está um grande desafio das empresas hoje. “O que eu acredito é que houve um excesso no passado, quando as organizações pendiam totalmente ao trabalho presencial. Veio a pandemia e esse cenário mudou em 100% para o remoto. Agora estamos buscando o equilíbrio”, comenta Ricardo Basaglia, CEO do PageGroup no Brasil. “É importante entender em que situações e para quais empresas, culturas, equipes e setores o trabalho remoto pode fazer sentido.”

A Serasa Experian, depois de ouvir seus 5 mil funcionários, adotou diferentes modelos de trabalho: totalmente remoto, totalmente presencial e híbrido. Cerca de 45% da empresa está a distância e 15%, totalmente presencial. Dos 40% que estão no modelo híbrido, 60% vão dois dias por semana ao escritório e os demais, três dias.

Flávio Balestrin, vice-presidente de recursos humanos da Serasa Experian para América Latina, explica que, após essa definição de modelos, a empresa listou quais eram as possibilidades para cada função. Sabendo de suas opções, cada funcionário apto a trabalhar de forma híbrida ou remota negociaria diretamente com seu gestor o melhor modelo. A nova política, na percepção de Balestrin, aumentou o sucesso dos processos de seleção e o engajamento das equipes. “A gente tem sucesso maior de recrutamento, não só de volume, mas de qualidade das pessoas que se candidatam, porque [o modelo] demonstra confiança na pessoa”, afirma. “E quando se tem esse modelo, espera-se que a pessoa seja madura e trabalhe de forma produtiva, então você atrai profissionais ‘self-driven’, que sabem ser produtivos, valorizam essa confiança depositada pela empresa.”

Ele comenta que via empresas que antes tiravam pessoas da Serasa, como os bancos, que voltaram ao presencial, e agora não tiram mais. “Muita gente se sentiu desrespeitada, não ouvida”, diz. Segundo Balestrin, há 18 meses o índice de perda de pessoas da companhia vem caindo, “o que significa que a gente melhora a retenção há 18 meses”.

Camila Cinquetti, sócia da PwC Brasil, afirma ser importante considerar que há impactos diferentes. “Tem situações que, dentro do mesmo setor, empresas podem tomar decisões diferentes”, diz. “Algumas estão aproveitando a oportunidade para transformar seus negócios e refletir qual modelo de trabalho melhor se enquadra na estratégia. Nesse sentido, um só modelo não vai se encaixar igualmente para todas as empresas.”

Na ClearSale, com 2,5 mil pessoas no Brasil, o modelo que se mantém é o “remote first”, que prioriza o trabalho a distância. Leonardo Ferraz, diretor de pessoas da companhia, é um dos que se beneficia desse formato. Ele concedeu a entrevista ao Valor de Londres, depois de uma temporada de dois meses na Espanha. “É a terceira vez, pós-pandemia, que faço essas temporadas fora”, diz.

Com a pandemia, a ClearSale mudou de escritório e no atual espaço cabem cerca de 200 pessoas. “Então não seria uma possibilidade voltar [ao presencial, todo mundo]”, afirma Ferraz.

A decisão foi tomada ouvindo os funcionários: mais de 86% não queriam retorno fixo ao escritório. Aliás, hoje, boa parte do time nem mora em São Paulo – o escritório da ClearSale fica em Barueri. Para Ferraz, o “remote first” ajuda a contratar e engajar as pessoas. “Em tecnologia, os profissionais se colocaram no centro da decisão, não vão mudar sua rotina por causa do trabalho”, comenta.

De toda forma, quem prefere trabalhar presencialmente tem o escritório à disposição. E pontos de contato, virtuais ou presenciais, são feitos de forma recorrente para manter a conexão entre as equipes e a cultura da organização. Do atual quadro de funcionários, 70% entraram na empresa depois da pandemia. Ferraz explica que ter um programa estruturado de onboarding, com uma área dedicada à cultura, um ciclo de acolhida de 12 semanas em que o colaborador tem contato com líderes da organização que dão suas visões de cultura e das suas áreas, é algo fundamental para o trabalho remoto funcionar. Até o programa de estágio, que teve 40 vagas abertas em maio deste ano, é remoto. “A confiança é um elemento forte na nossa cultura, e exige trabalhar maturidade do profissional, não importa onde você esteja. É um esforço constante”, admite. Mas afirma: “é uma vantagem competitiva diante desse [movimento de mercado de] ‘return-to-office’”.

Outra empresa que optou manter o trabalho remoto é a N5, de software para a indústria financeira e 323 funcionários globalmente, sendo 129 no Brasil. Maria Luz Pochettino, diretora de RH da N5, explica que a companhia nasceu com a cultura de trabalho remoto antes da pandemia. Para ela, esse formato abre um leque de opções em contratação, sem necessidade de restringir a uma única cidade. “Temos equipes atualmente em 15 países e essa mistura de culturas é fundamental para nós”, diz.

A empresa tem escritórios em alguns países, como Brasil, Argentina e Espanha, “que estão sempre abertos para os colaboradores irem presencialmente quando sentirem necessidade”, afirma a executiva. Com clientes como Mastercard, Santander e Zurich, a N5 anunciou recentemente 800 vagas totalmente home office, permitindo que pessoas de qualquer lugar do mundo se candidatem.

N5 e ClearSale vão na contramão do movimento de grandes empresas de tecnologia que anunciaram o retorno aos seus escritórios nos últimos meses. Uma delas foi a Amazon. Procurada, a companhia não quis comentar a política de volta ao presencial e, por meio de sua assessoria de imprensa, compartilhou a carta do CEO Andy Jassy sobre o assunto. Nela, ele diz que a colaboração e a inovação são mais fáceis quando se está no presencial. “A energia e as ideias uns dos outros acontecem com mais liberdade”, escreveu. Também justificou a volta ao escritório alegando que presencialmente é mais fácil fortalecer a cultura da organização e aprender com outras pessoas.

Sobre cultura, Balestrin, da Serasa Experian, diz que ela é facilmente mantida nos pontos de contato virtuais. “A cultura é mantida na interação virtual. Ela é a nossa maneira de se comportar, e isso tudo acontece no físico ou no remoto.”

Também procuradas pela reportagem, Icatu, Bradesco Seguros e XP não quiserem comentar sobre seus atuais modelos de trabalho.

“Se eu pudesse deixar uma recomendação para as empresas é o quanto estão preparando a liderança para atuar nos temas concretos”, afirma Basaglia, do PageGroup. “Se eu tivesse que destacar apenas uma capacidade que o líder precisa ter hoje é a escuta. Escutar para entender o que mais importa para o time dentro do que é possível oferecer de acordo com a realidade da empresa.”

Cinquetti, da PwC, comenta algo na mesma linha. “Os líderes devem prestar mais atenção à experiência geral que oferecem às pessoas e conseguir apontar seus pontos fortes e fracos para endereçar e mitigar”, diz. “Importante que os líderes se concentrem em tornar o trabalho mais satisfatório, nos aspectos que importam para suas pessoas. Fazer isso requer profunda empatia dos gestores e a capacidade de traduzir o propósito geral da empresa em ações e comportamentos específicos, para que as pessoas vejam como seu trabalho contribui para esse propósito.”

Carolina Zanotta, diretora jurídica da N5 desde agosto, trabalha no modelo remoto há cerca de cinco anos, quando se mudou com a família para os Estados Unidos. Para a executiva, essa possibilidade permite que ela siga trabalhando para o Brasil. “Chegaram a me sondar para trabalhos presenciais, mas não levei adiante”, comenta.

Quando deixou o emprego anterior, na Trybe, também remoto, quem assumiu seu posto foi uma pessoa que havia entrado na companhia como estagiário – uma prova de que é possível desenvolver profissionais em início de carreira mesmo a distância. Para Zanotta, reuniões “one to one”, de equipe e direcionamentos de como executar o trabalho ao longo da semana estreitam o contato com quem está começando e permitem o desenvolvimento e a execução das tarefas normalmente a distância. “O jovem que está iniciando precisa de referência, e aí entram os rituais para encaminhar o trabalho”, conclui.

FONTE:

https://valor.globo.com/carreira/noticia/2023/08/31/trabalho-remoto-agora-e-diferencial-de-poucas-organizacoes.ghtml