A PRESENÇA INTELIGENTE DAS MÁQUINAS NO TERRITÓRIO MUSICAL

Assumindo funções criativas na área, elas anunciam os novos tempos

“Mezzanine”, obra de Robert del Naja em colaboração com Mick Grierson e Andrew Melchior, é exibida como parte da exposição “AI: mais do que humano” no Barbican, centro de arte em Londres. Foto: Divulgação / Barbican Centre

Em 2017, a cantora e youtuber Taryn Southern, que fizera parte do programa American idol , ganhou enfim seu bom quinhão de celebridade ao anunciar que tinha gravado o primeiro álbum musical feito inteiramente com inteligência artificial (IA): I AM AI . De lá para cá, o que pertencia ao território da ficção científica entranhou-se ainda mais no cotidiano, e o que se vê em 2019 é uma enxurrada de exemplos de como as máquinas podem assumir tarefas criativas que desafiam os limites até mesmo dos mais talentosos e capacitados músicos de carne e osso — e não só no pop.

 Com a ajuda de um programa de IA que roda em seu telefone celular chinês Huawei, o compositor de trilhas para cinema Lucas Cantor, radicado em Los Angeles, conseguiu terminar e mostrar em maio aSinfonia nº 8 que o compositor austríaco Franz Schubert (1797-1828), um gênio da música, havia abandonado em 1822, após escrever apenas seus dois primeiros movimentos. O aparelho “estudou” toda a obra de Schubert para “entender” seu pensamento e prever melodias que ele poderia usar.

Por outro lado, o projeto Magenta, do Google — uma das iniciativas de ponta no uso de IA para fazer música, ao lado do Flow Machines da Sony e da startup britânica Jukedeck —, apresentou em março um artifício visual e musical muito especial para celebrar o aniversário de um dos pais da música ocidental, Johann Sebastian Bach (1685-1750): quem tocasse uma melodia no teclado virtual da página de abertura do Google no dia 21 daquele mês poderia ouvi-la harmonizada como um coral bachiano. A máquina foi alimentada com mais de 300 obras do compositor para poder realizar com êxito a sofisticada e encantadora brincadeira.

“Nos últimos dois ou três anos, vimos numerosas conquistas sobre música e inteligência artificial sendo reivindicadas, como ‘a primeira música pop composta com IA’ e ‘a primeira obra de orquestra sinfônica escrita com IA’. Espero que já estejamos passando dessa fase, porque no fim não se trata de ser o primeiro, e sim de construir uma tecnologia duradoura”, defendeu, em entrevista a ÉPOCA, Douglas Eck, pesquisador de computação da equipe do Google Brain, que coordena o Magenta. “Estamos vendo essa experimentação acontecendo agora, com artistas como a banda pop de Los Angeles YACHT. Eles passaram muito tempo trabalhando com ferramentas do projeto Magenta e descreveram quanto gostaram de passar da etapa ‘novidade’ — ‘Isso é estranho e legal’ — para a fase de ‘domínio’ — ‘Essa é uma ótima ferramenta para fazer música’.”

Enquanto o Google ia por um lado, o professor de computação da Goldsmiths University of London Mick Grierson trabalhava na criação de um sistema com o qual pudesse treinar uma inteligência artificial a fim de que ela gerasse novas gravações a partir de coleções de gravações existentes.

Holly Herndon se apresenta em Atenas. “Nós somos sensores incríveis”. Foto: Chris McKay / Getty Images
Holly Herndon se apresenta em Atenas. “Nós somos sensores incríveis”. Foto: Chris McKay / Getty Images

Um dos interessados no projeto foi o grupo inglês Massive Attack, um dos grandes nomes mundiais da música eletrônica, que confiou a Grierson um de seus álbuns mais famosos, Mezzanine , de 1998. O resultado, gestado pelo pesquisador e por Robert del Naja, integrante do grupo, está em exposição até o dia 26 de agosto no Barbican, centro de artes em Londres: é o Mimic, programa que usa IA para criar remix do disco.

“Nos primeiros dias de desenvolvimento, tudo que saía soava como ruído branco”, contou Grierson a ÉPOCA. “Muito esforço foi feito para projetar uma IA que pudesse gerar um sinal de áudio em qualidade de CD — essa era uma ideia totalmente nova na época. Nossos primeiros experimentos eram muito barulhentos, semelhantes aos criados pelo Google e por outros. No entanto, trabalhando de uma maneira um pouco diferente, conseguimos melhorar muito a qualidade. Se você colocar Jimi Hendrix no gerador, vai sair algo como Mezzanine ’. Isso é bem legal, já que você pode, teoricamente, criar sua própria música e reconstruí-la por meio do som do Massive Attack.”

Idealizador, com o parceiro Oded Ben-Tal, do Folk-RNN — um gerador de música folclórica de uma rede neural recorrente (RNN) —, o estudioso Ben Strum contou que há quase 60 anos a inteligência artificial tem sido aplicada de várias maneiras à música. “Um dos primeiros exemplos é o concerto de cordas ( criado em 1957 por um supercomputador de uma universidade de Illinois e considerado a primeira composição de uma máquina eletrônica )”, ilustrou Strum para a ÉPOCA. “Como ferramenta, a IA traz diferentes possibilidades de expressão. Ela pode ser vista como um aspecto da prática mais ampla da ‘composição algorítmica’, em que a música é criada por meio da aplicação de procedimentos ou instruções computacionais.”

Que o diga a americana Holly Herndon, produtora de renome no pop experimental que chamou a atenção do mundo em maio deste ano ao lançar o álbum Proto , o primeiro no qual trabalhou com inteligência artificial. Artista que já abriu shows do Radiohead e que tem ph.D. em composição na Universidade de Stanford, ela construiu, com o especialista em computação Jules LaPlace, um sistema de IA chamado Spawn. Ele pode imitar, interpretar e desenvolver ideias musicais, muitas vezes revelando elementos em suas composições que ela mesma desconhecia.

“Trabalhar com IA me fez apreciar o corpo humano; nós somos sensores incríveis. Nossos olhos e ouvidos e todas essas coisas que você não pode incluir em um arquivo de mídia… realmente fazem você apreciar seu próprio saco de carne”, comentou a artista em entrevista ao jornal inglêsThe Guardian . “Eu não quero recriar música, quero é encontrar um novo som e uma nova estética. A principal diferença é que vemos o Spawn como um membro do grupo, em vez de um compositor.”

 “A CRIAÇÃO ARTÍSTICA POR MEIO DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL LEVANTA NOVAS QUESTÕES: FAZ SENTIDO PLEITEAR PAGAMENTO DE DIREITO AUTORAL A UMA MÁQUINA OU A SEUS PROGRAMADORES?”
 Holly Herndon é muito crítica em relação às iniciativas comerciais voltadas para o uso de IA na música, como a alemã Endel, que neste ano se tornou o primeiro aplicativo a ser contratado por uma gravadora, a Warner Music. Ele cria paisagens sonoras personalizadas para os usuários, dependendo de suas necessidades, seja para relaxar ou se concentrar, usando dados como a hora do dia e o clima para direcionar os sons. “Aquilo é tipo: como faço para o sistema compor uma partitura de Hans Zimmer para mim, sem que eu precise pagar a um artista?”, disse Herndon ao Guardian .

Para Oded Ben-Tal, do Folk-RNN, a evolução da tecnologia fez com que hoje, pela primeira vez, as empresas possam ver oportunidades comerciais no uso da IA para produzir música. Mas, segundo ele, nem tudo o que sai dali é muito musical. “O que quero dizer é que, quando as pessoas veem o potencial, às vezes ignoram problemas significativos. Nem tudo que parece ou soa superficialmente como outras músicas é valioso”, advertiu Ben-Tal.

Há, porém, quem consiga dar a esse resultado pouco valioso de uma pesquisa séria um sentido bem-humorado. No YouTube, uma das sensações roqueiras deste ano é o Relentless Doppelganger, uma rede neural programada para gerar uma trilha de death metal 24 horas por dia, sete dias por semana. É o trabalho dos especialistas em tecnologia musical CJ Carr e Zack Zukowski, do projeto Dadabots, que vêm experimentando há anos como fazer com que uma IA produza música que soe consistente aos ouvidos. “Gêneros musicais como o metal e o punk parecem funcionar melhor com o gerador, talvez porque os estranhos resultados da síntese neural (ruído, caos, mutações grotescas da voz) são esteticamente agradáveis nesses estilos”, escreveram eles na teseGenerating albums with SampleRNN to imitate metal, rock, and punk bands ( Gerando álbuns com SampleRNN para imitar bandas de metal, rock e punk ). No último dia 13, os Dadabots lançaram Outerhelios, gerador de rede neural mais avançado, que produz uma trilha interminável de free jazz, a partir de Interstellar space , disco que o saxofonista John Coltrane gravou em 1967, ano de sua morte. “Alguns dos resultados soam como um massacre de bebês elefantes. Alguns são melodias próximas do álbum original. Alguns são longos solos de bateria. Alguns soam como gansos raivosos. Mas a variedade com curadoria faz com que ele seja melhor que o de death metal”, disseram CJ e Zack a ÉPOCA.

E, nesse ponto da evolução tecnológico-musical, surge uma questão importante, levantada em abril pela revista The Verge : Se a IA é capaz de fazer música, isso faz dela um artista também? Ou então: deveria o artista original, cujo estilo está sendo usado para treinar a máquina, ter direitos de propriedade intelectual sobre a gravação resultante?

Mick Grierson opinou: “Existe habilidade em treinar uma máquina, mas se você o faz usando o material de outra pessoa sem permissão, ela pode e deve reclamar seus direitos de propriedade sobre seu modelo”. E Oded Ben-Tal vai adiante: “Talvez a lei precise ser atualizada para refletir as mudanças tecnológicas. Mas vale a pena considerar qual é o propósito dos direitos autorais. Atribuir propriedade destina-se a permitir que o artista produza um trabalho de forma independente. Assim, não faz sentido conceder royalties à máquina! Os programadores certamente merecem ser pagos, mas não sei se os direitos autorais são o mecanismo correto para isso.”

Muito do que pode acontecer no futuro nas relações entre música e inteligência artificial ainda é um mistério. “Mas não acredito que as máquinas vão pensar ou tocar como músicos, pelo menos não em um futuro próximo”, arriscou Douglas Eck. “E por quê? Porque a música é uma forma de arte completa e, portanto, um reflexo de toda a profundidade e amplitude do conhecimento e da criatividade humana. Nosso objetivo principal é inventar maneiras interessantes de expandir nossa criatividade. Isso faz parte de uma longa história da tecnologia que permite a criação de música. Acho que em paralelo também veremos novas ferramentas para aprender a escrever e tocar música. Nós mal arranhamos a superfície do potencial da IA para ajudar novos músicos a aprender seu ofício.”

FONTE: ÉPOCA