Tecnologias podem tratar transtornos mentais sem assistência humana

Mulher com os óculos de realidade virtual usado no tratamento e o cenário de um dos desafios que os pacientes tiveram que enfrentar na terapia, caminhar sobre uma plataforma a vários andares de altura Foto: Divulgação/Oxford VR/KEITH BARNES

O avanço da tecnologia está abrindo oportunidades para o tratamento de transtornos mentais que vão do desenvolvimento de novas estratégias de terapia ao enfrentamento de um dos maiores empecilhos no acesso à saúde mental: a limitada disponibilidade de profissionais capacitados. Antes restritos a ambientes de pesquisa, recursos como a realidade virtual — que já se mostrou eficaz no tratamento de fobias — começam a chegar aos consultórios. Um exemplo disso é um estudo pioneiro publicado ontem no periódico científico “The Lancet Psychiatry”.

Em experimento inédito, pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, compararam o uso de um sistema automatizado de realidade virtual no tratamento da acrofobia, o medo exagerado de alturas, com a abordagem clínica usual do problema no país: simplesmente não tratá-lo. Isso, em geral, por causa da falta de tempo dos profissionais de saúde mental disponíveis, alocados para cuidar de pacientes com distúrbios considerados mais graves. A acrofobia é a mais comum das fobias, com uma em cada cinco pessoas relatando ao menos um episódio de medo irracional de altura ao longo de suas vidas. Uma em cada 20 se encaixa nos critérios para diagnosticar a condição. Para o estudo, os pesquisadores recrutaram cem pessoas clinicamente diagnosticadas com acrofobia moderada ou severa mas que não recebiam tratamento para o problema ou qualquer outro transtorno mental, apesar de sofrerem com o distúrbio por, em média, 30 anos. Eles foram então divididos aleatoriamente em dois grupos.

O primeiro passou pelo tratamento de realidade virtual com um avatar digital em seis sessões de meia hora cada ao longo de duas semanas. O segundo serviu de controle, apenas recebendo intervenção psicoterápica. Utilizando um óculos de realidade virtual, os pacientes são guiados pelo avatar, programado para dar informações básicas sobre o medo de alturas e encorajá-los a enfrentarem seu medo. Eles “entram” virtualmente num complexo de escritórios virtual de dez andares com um grande átrio. Lá, participam de atividades que os fazem gradualmente desafiar os limites impostos por sua acrofobia, desde observar o lento rebaixamento de um guarda-corpo numa beirada até caminhar por uma plataforma sobre uma altura bem maior. Também são estimulados a ensaiar ações como resgatar um gato de uma árvore.

Ao mesmo tempo, o “terapeuta digital” vai explicando o que deveriam aprender de cada uma destas atividades, estimulando-os a encarar situações similares na vida real entre as sessões. Ao todo, os pesquisadores ofereceram o tratamento de realidade virtual a 49 pessoas, com 47 delas realizando ao menos uma sessão e 44 completando as seis prescritas, com duas abandonando a terapia por acharem o sistema muito difícil de lidar e uma alegando não poder mais comparecer às sessões. Em entrevista de acompanhamento quatro semanas depois do fim do tratamento, 34 dos integrantes deste grupo, ou 69% dos 49 iniciais, não mais se encaixavam nos critérios diagnósticos de acrofobia ao menos moderada que os levaram a ser selecionados para o experimento. Já as 51 pessoas que compuseram o grupo de controle, como esperado, não relataram qualquer alteração no seu nível de medo de alturas, sendo posteriormente oferecidas a oportunidade de tentar a terapia virtual.

— As terapias de realidade virtual imersiva que não precisam da presença de um terapeuta têm o potencial de aumentara dramaticamente o acesso a intervenções psicológicas – resume Daniel Freeman, professor da Universidade de Oxford e líder do estudo. — Precisamos de um número maior de terapeutas capacitados, não menos, mas para atender à crescente demanda por tratamentos de saúde mental também vamos precisar de poderosas soluções tecnológicas. Como mostrado em nosso ensaio clínico, tratamentos de realidade virtual têm o potencial de serem eficazes, e mais rápidos e atraentes para muitos pacientes do que as terapias tradicionais cara a cara. Com nossa terapia automatizada usando a realidade virtual temos a oportunidade de fornecer tratamento de alta qualidade para muitas pessoas a custos mais baixos. Nosso estudo é um importante primeiro passo, e estamos conduzindo outros testes clínicos para saber se o tratamento psicológico automatizado com realidade virtual também funciona no caso de outras desordens de saúde mental. Em comentários sobre o tratamento incluídos no estudo, os pacientes também elogiaram a eficácia da terapia, assim como agradeceram a oportunidade de terem acesso a uma intervenção psicológica após sofrerem com o problema durante anos.

“Tenho 60 anos e sofri com o medo de altura, um medo extremo de altura, durante toda minha vida. Vim para o centro (de pesquisas), fiz três sessões de RV (realidade virtual) e já superei tudo que imaginava que poderia. Não achava que seria capaz de chegar no que (os pesquisadores) chamam de nível 2, mas consegui. Estou totalmente confiante de que vou avançar vários outros níveis nas próximas semanas. Para mim, embora não seja fácil e não possa dizer que meu medo de altura passou, certamente posso dizer que estou melhor, e minha confiança também está maior. Até agora, tudo bem”, disse um deles.

Após este primeiro passo, os pesquisadores de Oxford agora conduzem outros testes para saber se o tratamento também funciona em outras desordens mentais. O potencial destas ferramentas é tamanho que elas foram tema de uma concorrida mesa-redonda na 15ª edição do congresso de neurociências Cérebro, Comportamento e Emoções (Brain 2018), realizado recentemente em Gramado, Rio Grande do Sul. Moderador do encontro, o neuropsicólogo e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Christian Kristensen vê na tecnologia não só uma auxiliar nas terapias como eventual substituta de profissionais de saúde mental em algumas situações.

Segundo ele, a ubiquidade dos smartphones oferece meios de acompanhamento em tempo real dos pacientes, permitindo à terapia ir além das sessões regulares, bem como recursos de automonitoramento e autointervenção, como aplicativos de registro de emoções e pensamentos ou relaxamento e meditação, que ajudam a melhorar e acelerar o processo terapêutico. Já a queda nos preços de equipamentos de realidade virtual, alvo de investimentos de gigantes da tecnologia como Google, Samsung e Facebook, nos últimos anos deverá finalmente disseminar seu comprovado e eficaz uso no combate a fobias e outros distúrbios nos consultórios. — Muitos destes recursos ainda estão restritos a ambientes de pesquisa, mas acho que sua disseminação para o ambiente clínico vai acontecer ao longo desta próxima década, com seu uso crescendo muito rápido e de forma irreversível — diz.

FONTE: GAZETA ONLINE