Shoshana Zuboff: “Big techs estão matando a inovação. E estão só no começo”

Conversamos com uma das principais economistas da era moderna, que critica a extração massiva de dados (até seu aspirador robô coleta informações da sua casa) e explica o conceito de ‘capitalismo de vigilância’.

As big techs estão matando a inovação. Se no início do terceiro milênio, Facebook, Apple, Amazon, Microsoft e Google atraíram capital e contaram com a boa vontade dos reguladores em nome do progresso tecnológico, hoje, essas mesmas corporações formam um oligopólio que sufoca qualquer nova solução ainda no berço por meio de aquisições. É o que explica a economista School Shoshana Zuboff, autora do best-seller “A Era do Capitalismo de Vigilância” (2018) e professora emérita da Harvard Business. Ela também escreveu, em 1988, “Na Era das Máquinas Inteligentes”, que previa que computadores mudariam as empresas como nenhuma outra tecnologia tinha feito até então.

“Este setor não é mais inovador”, diz a pesquisadora ao Pipeline. “Estamos falando de um oligopólio, que compra empresas ao invés de permitir que venham a mercado para competir. As cinco maiores big techs hoje essencialmente controlam toda estrutura global de mercado. Isso tem um custo de oportunidade incalculável para a sociedade, que é quem deveria estar se beneficiando dessa era tecnológica. Há tantas iniciativas de empreendedorismo e inovação no mundo hoje, mas enquanto as gigantes seguirem atraindo todo o investimento, é muito difícil que alternativas viáveis surjam.”

A próxima fronteira, nesse sentido, está ilustrada pelo desenvolvimento e aplicações de IA. A Microsoft, por exemplo, desembolsou bilhões — fontes próximas chegaram a afirmar a cifra US$ 10 bilhões — para adquirir a OpenIA, desenvolvedora do ChatGPT. O negócio foi fechado após décadas de pesquisas e investimento para desenvolver uma inteligência artificial competitiva dentro de casa, sem sucesso. É só um dos negócios, já em maior escala, que prova o que Zuboff nos descreve, sem considerar soluções e empreendedores ainda menores.

Pode parecer superlativo dizer que as big techs ainda detenham tanto poder (e capital) depois do 2022 que essas corporações viveram. Considerando somente as perdas das cinco maiores listadas em bolsa, as ações derreteram mais de US$ 3 trilhões em valor de mercado — sim, com “T” de tech. Somente o papel da Meta, dona do Facebook, Instagram e WhatsApp, mergulhou 65,5% de janeiro a dezembro de 2022. Não muito atrás, a Amazon perdeu 46,6% do seu valor de mercado na Nasdaq.

No mês passado, algumas dessas companhias deram início a uma gestão de crise, dirigindo a palavra a quem assina os cheques. Na divulgação dos resultados do último trimestre do ano passado da Meta, o fundador Mark Zuckerberg anunciou, oportunamente, um programa de recompra de ações de US$ 40 bilhões e corte de custos que animou os investidores e levou o papel a atingir a maior alta em 10 anos.

“O Sr. Zuckerberg é um homem muito inteligente. Durante a conferência com seus investidores, mostrou a produtividade, um balanço saudável, disse que vão recomprar as ações e, então, os preços sobem. Já vi esse ciclo tantas vezes”, conta Zuboff. “As manchetes nos mostram esse ‘aperto de cinto’ e nos parece que é um desastre divisor de águas para os grandes impérios da tecnologia. Mas quando Wall Street analisa esses mesmos fatos, eles veem algo muito diferente: um balanço forte, um grupo administrativo disciplinado. Então, as consequências para as empresas são muito diferentes tanto para o que imaginamos como público quanto para seus funcionários.”

De acordo com os cálculos da Fortune, cerca de 70 mil funcionários foram demitidos em layoffs das big techs desde o ano passado, em um movimento massivo ainda em curso. A Meta, que dispensou 13% de sua força de trabalho no ano passado, anunciou, junto com os resultados do quarto trimestre, que planeja demitir outros “milhares” em 2023. É um aceno ao mercado, que deseja ver negócios mais eficientes, e a quebra de uma promessa a esses profissionais.

Zuboff argumenta que, se as big techs passaram a controlar a tecnologia é porque foram capazes de atrair os melhores cientistas. E fizeram isso prometendo uma carreira sólida e astronômica, com remunerações que o meio acadêmico jamais poderia oferecer. Isso provocou, segundo ela, uma fuga de cérebros no meio da pesquisa e inovação aberta, em prol das sociedades e suas democracias, em todo o mundo. Agora, dispensam esses profissionais em nome da saúde do balanço.

Mas mesmo sofrendo com a pressão de investidores e o enxugamento de capital, as big techs estão longe de sair de cena. Na visão de Zuboff, é um novo sistema econômico que está apenas no início e deve perdurar por uma longa era, que ela define como “capitalismo de vigilância”. Baseado na extração e análise de dados para a manipulação do comportamento humano, o modelo é não só antiético como criminoso na avaliação da professora e de diversos ativistas dos direitos humanos e de privacidade.

Estamos sendo vigiados, lembra a professora. Desde a televisão ao robô aspirador de pó, passando pela máquina de lavar, sem mencionar o smartphone, nossos dispositivos estão coletando dados pessoais a todo tempo. São informações que serão monetizadas, aplicadas por algoritmos para direcionar publicidade, conteúdo político, ou mesmo para manter o usuário por mais tempo em determinado aplicativo ou rede social.

Apesar da crise momentânea nas companhias, estamos apenas o início de uma nova ordem econômica. A pesquisadora compara o momento difícil para as big techs, embora por razões completamente diferentes, ao que aconteceu com o Facebook em 2018, quando veio à tona o escândalo da Cambridge Analytica. A agência de pesquisa e análise de dados, contratada dois anos antes pela campanha do então candidato à presidência dos Estados Unidos, teve acesso a dados pessoais, sensíveis e identificáveis de mais de 87 milhões de usuários da rede social.

“Eu estava na fase final de conclusão da minha tese e algumas histórias começaram a aparecer na imprensa. Ainda tenho este gráfico impresso pelo The Wall Street Journal com a queda vertiginosa das ações. Naquele dia, muitos repórteres estavam me ligando. Então, assim como naquela época, volto a dizer: fique de olho na ‘big picture’. Estas empresas têm tantos dados e poder, que toma um certo tempo até para ter uma noção. Eles estão apenas no começo, não deixe que crises de curto prazo influenciem sua perspectiva”, diz. “Hoje em dia é até bobo pensar que a Cambridge Analytica destruiria o Facebook, ela apenas alertou o Sr. Zuckerberg para as ameaças e os riscos em seu negócio, assim como agora.”

Extração secreta e massiva de dados pessoais

Ativista no campo da privacidade da informação, Zuboff é uma grande crítica da extração secreta de dados humanos — informações coletadas de usuários sem que eles saibam ou sem que tenham escolha em concordar com isso — deveria ser abolida e não apenas regulamentada. Alguns apps só permitem acesso se o usuário concordar com os “termos de uso”, por exemplo. Sua tese — que mais tarde se transformou num aclamado livro de mais de 700 páginas e foi representada em diversos documentários, incluindo “O Dilema das Redes” —, foi pioneira em apontar como operam as grandes companhias de tecnologia nesse sentido, algo ignorado pelo grande público até então.

No contexto do surgimento e adoção da WWW, as democracias liberais, argumenta Zuboff, falharam em desenhar uma visão política do que seriam os próximos séculos na era digital. Eram ainda muito incipientes as discussões sobre regulamentação e responsabilidade quando se deu o atentado do 11 de Setembro. Os governos, então, em especial o americano, deram “carta branca” para que as big techs acessassem todo tipo de informação disponível sobre todos, para colaborar com a inteligência.

“Naquele momento, toda a conversa sobre privacidade morreu e se transformou em uma preocupação em conectar todos os pontos e ter todas as informações possíveis. É aqui que começa o problema. Primeiro, a democracia dos EUA entregou intencionalmente seus próprios dados para servir às grandes empresas de tecnologia e permitir que extraíssem informações secretamente e invadissem a privacidade [das pessoas] em nome da segurança pública”, explica Zuboff. “Isso deixou um vazio na democracia, que foi preenchido pelo capitalismo de vigilância. Agora estamos aqui, 20 anos, vendo os países finalmente mobilizarem uma nova camada de discussão global, hoje liderada pela UE, que não existia.”

Regulamentação e abolição

É por isso, explica Zuboff, que as discussões pertencem ao campo político. Está provado que a regulamentação é um caminho para reduzir a exploração dos cidadãos pelas big techs. Na União Europeia, um dos ambientes digitais mais regulados no mundo, o RTB do Google, sistema usado para direcionar publicidade, coleta cerca de 376 dados diários sobre cada usuário. Nos EUA, o número chega a 747 vezes por adulto. O volume cresce de forma inversamente proporcional ao rigor da legislação local de cada país.

A professora, que esteve recentemente no Chile, conversando com a comunidade acadêmica, enxerga o hemisfério Sul do mundo como a região mais vulnerável para a exploração das big techs, enquanto economias mais desenvolvidas avançam com os limites regulatórios. Com democracias mais frágeis — Zuboff cita Pinochet e o efeito das redes sociais que levou à reprovação da nova Constituição chilena em 2021, além do golpe militar e Bolsonaro no Brasil —, somos mais suscetíveis às gigantes da tecnologia. O Google, por exemplo, está investindo mais de US$ 30 milhões no Firmina, que será o maior cabo submarino do mundo, ligando a Costa Leste dos EUA ao Brasil, Uruguai e Argentina.

A discussão hoje é sobre responsabilidade. Ainda em curso na Suprema Corte americana, o caso Gonzales v. Google está retomando o debate sobre a isenção de culpa das big techs em relação ao conteúdo que propagam. A família da estudante Nohemi Gonzalez, de 23 anos, que morreu em um dos atentados terroristas de Paris, em 2015, está processando o Google pelo conteúdo sugerido pelo algoritmo do YouTube, que recrutou diversos usuários para ações do Estado Islâmico. Casos como este, diz a professora, podem jogar luz sobre o assunto, ainda que muito tardiamente.

“A regulamentação é importante, mas não é suficiente. Temos que simplesmente acabar com a extração secreta de dados humanos, que é a base de toda violência digital e a fonte de poder do capitalismo de vigilância. Temos que voltar ao início de tudo e dizer: a extração massiva e secreta de dados pessoais é ilegal. E é um crime. É roubo. Qualquer criança lhe dirá: tirar algo de alguém sem seu conhecimento ou permissão para seu próprio benefício é roubo”, defende. “Essa é uma evolução do pensamento político sobre o assunto: passar da regulamentação, que é importante, para a abolição.”

Ela compara com outras tentativas de regulamentações polêmicas. “Houve um tempo em que as pessoas tentaram regulamentar o trabalho infantil, reduzindo as horas semanais de trabalho. Mas então ficou óbvio que você não pode regular algo que é categoricamente imoral, errado e está em absoluta contradição com os ideais, compromissos e aspirações da democracia. Você não pode apenas regulá-lo, você deve aboli-lo. Hoje, na maioria das nossas sociedades, o trabalho infantil foi abolido. E as leis podem ser quebradas, claro, mas se você não tiver nem isso, não poderá nem sequer endereçar o problema.”

FONTE: https://pipelinevalor.globo.com/mercado/noticia/shoshana-zuboff-big-techs-estao-matando-a-inovacao-e-estao-so-no-comeco.ghtml