Músico baiano cria ficção científica que envolve vídeos, games e realidade aumentada

A prática de descartar as fantasias após os desfiles  de Carnaval nas escolas de samba é criticada pelo músico e produtor Nikima, ex-vocalista do grupo baiano Lampirônicos, que, no início dos anos 2000, teve sucesso local e uma repentina  projeção nacional. Segundo ele, “a gente não sabe manter os mitos”. Na sua mente inquieta  e criativa, às vezes  “desviante”,  uma escolha  menos efêmera  e mais produtiva tanto do ponto de vista cultural como  econômico  seria guardar o material num contêiner e levar ao mundo como conteúdo nacional para  exportação.
“Criamos no Brasil uma relação inflacionária com os nossos ativos (culturais) e não construímos uma mítica moderna”, diz, explicando algumas de suas  principais reflexões nos últimos anos, que interligam experiências e interesses em  criação  artística, produção, economia criativa e  marketing.
Tais pensamentos se desdobraram, recentemente, no Auss & Auss,  projeto de narrativa transmídia (em várias plataformas), uma ficção científica que envolve música, ilustrações, vídeos, games, realidade aumentada, camisas, textos e outros produtos. “A ideia foi criar algo que fosse um  ativo permanente”, afirma.
Atualmente vivendo em São Paulo, após passar por Brasília, atuando como assessor de Gilberto Gil no Ministério da Cultura (Minc), e   Lisboa, em um período de imersão no universo da música eletrônica, nos livros de filosofia e de  “literatura canônica”, parou em Salvador para uma temporada. Num final de semana de novembro, fez show e montou a  tenda do Auss & Auss  no festival Zona Mundi, no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM).
“Quando comecei a criar  o Auss & Auss, liguei   vários pontos da minha  trajetória. Pensei que era possível desenvolver um conteúdo interativo, seriado, que eu pudesse licenciar e ter a música como um  elemento articulador. Auss & Auss é uma franquia de conteúdo e   uma franquia de produtos”, afirma.  O material está espalhado no site oficial (www.aussnauss.com), em plataformas digitais, em aplicativos   e nas páginas em redes sociais. Ao todo, doze  capítulos já foram disponibilizados.
Na apresentação oficial  do projeto, explicita-se o mote para a construção de todo o enredo: “Como sobreviver ao fim do petróleo e aos efeitos nefastos  de uma guerra nuclear sem precedentes? Caos, radioatividade, miséria, violência, frio… tudo poderia ser ainda pior se não existisse a Auss  & Auss”.
Na narrativa, Auss & Auss é um conglomerado dos   irmãos gêmeos da família Auss que sobreviveu a uma tragédia nuclear na terceira guerra mundial e detém todos os meios de produção.   Com o fim do petróleo, eles inventaram um sistema, o  Acephalous,  que gera energia a partir das experiências e emoções humanas com música e realidade virtual. “ É um universo narrativo  que se  transversaliza  por mídias diferentes de modo  complementar”, ressalta.
Pulga atrás da orelha
Durante o final  do período  que morou em  Lisboa,  entre 2008 e 2012,  logo depois da saída da assessoria do Ministério da Cultura e de uma fase de  trabalho com produção na Cinemateca Brasileira, Nikima tinha dúvidas, em seus termos,  uma  “pulga  atrás da orelha”, sobre   como retomaria  o   processo  de criação artística.   “Estava muito envolvido com produção de política pública e  a minha  visão interna era muito forte. Já não pensava a música da mesma forma”.
Duas exposições foram  decisivas nos seus passos profissionais na direção do projeto atual. A primeira, referente à obra do   diretor de cinema Akira Kurosawa, impressionou pela construção dos personagens e pelas fantasias  de samurai –  daí a ligação com as escolas de samba. O pensamento a respeito da  inter-relação  entre   mitos gregos (dos  clássicos), as interrogações  sobre os mitos  contemporâneos e  a necessidade de ter  “ativos culturais permanentes” começou a ganhar um melhor contorno,  menos confuso.
“Fiquei encantado com as roupas dos samurais. Tinha algo ali que não se perdia. E lembrei que    Hitchcock   fazia a crítica de como Hollywood não sabia aproveitar as suas produções mais caras  para  gerar cenários para a produção de filmes B.   O pensamento dele  questionava: você vai montar  uma superestrutura e depois vai jogar tudo fora?”.
Depois, uma sala da  Hello Kitty, numa exposição sobre animes japoneses, chamou a atenção. “Eram muitos produtos de uma única personagem (chaveiro, escova de dente etc.), que não tem uma história tão bem  definida e consegue faturar bilhões”,  explica.
Nikima avaliou que não necessariamente era  preciso fazer algo  tão agressivo para absolver as qualidades do modelo comercial. “Lembrei que a minha  secretaria no Minc  tinha várias Hello Kittys   na mesa do trabalho.  Pensava: ‘Como uma pessoa de 30 anos gosta  tanto de um produto como esse?’. E isso me marcou. Há um engajamento aí. Uma dimensão lúdica, psicológica”, opina.
Colaborações
De volta ao Brasil, Nikima se estabeleceu em São Paulo e, de 2012 para cá,  tem  circulado por diferentes cidades brasileiras  em busca de parcerias. “Conversei com muitos agentes, de cada área, da música, do mundo editorial, da moda, do game. Você pode disparar o projeto   de várias formas”.
Em Recife, por exemplo, Nikima construiu parceria com empreendedores do Porto Digital, onde o Auss & Auss serviu como case para desenvolvimento de games, aplicativo de realidade aumentada, experiência em realidade virtual, modelagem de figurinos e  outros produtos. “Estabelecemos uma relação institucional com o Porto Digital e com o projeto técnico Nave Oi Futuro”.
A temática,  de ficção científica,  foi escolhida com base na sua visão das relações de troca contemporâneas.  “Fiquei  pensando num certo distanciamento entre as pessoas. E a  ficção científica torna possível trabalhar com clichês  para produzir pensamentos críticos”, afirma o multiartista.
Vínculo
Quem acompanhou a cena musical  soteropolitana do início dos anos 2000 provavelmente conheceu a banda Lampirônicos, da qual Nikima era vocalista.  O grupo estourou em 2001, com a canção Pop Zen, que chegou a ficar entre as 10+ da MTV e, na época, tocou muito nas rádios.  De acordo com Nikima, a  curva ascendente foi tão rápida quanto a decaída.
“Fomos a primeira contratação do presidente Eboli  (José Antonio Eboli) que estava assumindo a Sony para tentar reestruturar a gravadora diante das transformações do mercado.  Diria que comecei na era pré-internet. Quem começou no início dos anos 2000 não teve o mesmo volume de investimento para sustentar o trabalho”.
Em 2003, saiu da    banda  para experimentar  projetos  solo. Fundou então o Tabuleiro de Mídia, com a linguagem do  soundsystem, “numa época em que ninguém fazia”, e depois o Casarão Santa Luzia, no Comércio, onde produziu os primeiros shows de Mombojó e BNegão na cidade.
Os  caminhos  recentes em Salvador se  abriram para o Auss & Auss   no  Festival Zona Mundi, realizado pelo músico e  produtor Vince  Athayde,  com o qual  Nikima  mantém parceria  criativa há mais de duas décadas.  Vince, inclusive,  assumiu o posto de vocalista  com a  sua saída do Lampirônicos.
“Nikima sempre   planeja tudo muito bem antes de qualquer coisa. Quando entrou no Lampirônicos, foi um divisor de água. Ele  estudou administração e tem uma mania de organização imensa. Organizou a vida da banda nas questões executivas”, relata Vince.      Até a apresentação  no Zona Mundi, Nikima estava  há 12 anos sem fazer show em Salvador – exceto participações  com Ramiro Mussotto (1963-2009). “O último tinha sido com o Scambo, em 2006”, lembra.
Os shows de Auss & Auss vão circular pelo Brasil, mas o repertório varia  a cada apresentação. Como sublinha  o músico, “as músicas   também  integram   a  narrativa. No Zona Mundi, foi a greve dos neurogeradores  da Auss & Auss”.
FONTE: A TARDE