Cortes da internet por motivos políticos afetam a economia digital da Índia

Os desligamentos da internet na Índia entre 2019 e 2022 custaram mais de US$ 4,8 bilhões à atividade econômica, de acordo com a Top10VPN, de Londres, que rastreia os cortes pelo mundo.

Quando autoridades indianas cortaram a internet de um remoto Estado no nordeste do país em maio, Amy Aribam conta que viu a receita mensal de sua firma de venda on-line de saris, de mais de US$ 9 mil, se desintegrar.

Passados quatro meses, Aribam voltou a ficar on-line, mas a internet continua fechada para muita gente, e dificultando a vida das mulheres que tecem a mão os saris de algodão e seda para a empresa dela. “Não conseguíamos nos comunicar com nossos clientes”, disse Aribam. “Nosso negócio é totalmente on-line”.

As autoridades indianas dizem ter desligado a internet para impedir a disseminação de rumores em meio à eclosão de distúrbios sociais no Estado de Manipur, governado pelo partido governista Bharatiya Janata, do premiê Narendra Modi. O governo federal da Índia vem optando de forma cada vez mais frequente por cortar a internet em resposta a uma série de problemas, como a insatisfação política, fugitivos da Justiça e até trapaças em exames.

Nove anos após a eleição de Modi, a democracia mais populosa do mundo é líder em cortes da internet, segundo contagens de grupos de direitos digitais. Em 2022, houve um total de 84 cortes em várias partes do país, o que supera a soma de todos os demais países, incluindo Irã, Líbia e Sudão, de acordo com o grupo nova-iorquino de direitos digitais Access Now. Desde 2016, quando o grupo começou a coletar os dados, mais da metade de todos os desligamentos no mundo foram na Índia.

Os cortes têm incomodado a vida de dezenas de milhões de pessoas num país onde nos últimos anos os serviços baratos de dados móveis e os esforços do governo para facilitar os pagamentos sem fio catapultaram números gigantescos de consumidores à era digital. Cerca de metade de 1,4 bilhão de habitantes da Índia agora está on-line e depende cada vez mais da conectividade para se comunicar com amigos e familiares, fazer compras, pagar contas de concessionárias e muito mais.

Defensores dos direitos digitais dizem que os cortes afetam os pobres de forma desproporcional, pois muitas vezes tornam mais difícil o recebimento de subsídios alimentares e de salários relativos a programas de emprego rural. Também levam à perda de empregos, afetam transações on-line e desencorajam investimentos estrangeiros. Isso desacelera o crescimento econômico e atrapalha startups, inclusive empresas de comércio eletrônico dos EUA, segundo pesquisadores.

O gabinete do premiê e o Ministério de Eletrônica e Tecnologia da Informação da Índia não responderam aos pedidos para comentar o assunto.

Os desligamentos da internet na Índia entre 2019 e 2022 custaram mais de US$ 4,8 bilhões à atividade econômica, de acordo com a Top10VPN, de Londres, que rastreia os cortes pelo mundo. Mais de 120 milhões de pessoas na Índia foram afetadas em 2022, segundo o grupo.

Os EUA têm expressado preocupação, mesmo enquanto aumentam a cooperação com a Índia como contrapeso estratégico à China. Em março, o Departamento de Estado dos EUA informou em relatório de direitos humanos que as restrições à liberdade na internet incluíram diversos cortes feitos pelas autoridades, em especial durante períodos de agitação política.

Em 2015, no ano seguinte à eleição de Modi, ele prometeu erigir uma “Índia Digital” conectando as massas do país. “A conectividade digital deve se tornar um direito básico, assim como o acesso à escola”, disse.

O número de usuários de internet na Índia subiu de 350 milhões para 692 milhões desde 2015, de acordo com a firma de consultoria digital Kepios. No entanto, os esforços do governo para fortalecer a conectividade são minados por esses cortes, de acordo com Raman Jit Singh Chima, diretor de políticas asiáticas do Access Now.

“Como você pode ter uma ‘Índia Digital’ com todos esses desligamentos?”, pergunta.

Entre os cidadãos mais afetados estão aqueles que entregam refeições e mantimentos ou trabalham em serviços de transporte por aplicativo. Em geral, eles não podem atender aos pedidos ou pegar passageiros sem acesso aos aplicativos de suas empresas.

Tofeeq Khan, um motorista da Uber de 32 anos que mora nos arredores de Nova Déli, no Estado de Haryana, disse não ter conseguido trabalhar por cerca de duas semanas em agosto em função de um corte da internet, imposto durante confrontos violentos entre hindus e muçulmanos. As autoridades informaram que a ação foi necessária para conter a disseminação de desinformação e evitar que multidões se organizassem.

Khan, que sustenta seus pais, esposa e dois filhos, disse ter perdido mais de US$ 300 de sua renda e ficado sem condições de pagar a mensalidade escolar dos filhos, comprar mantimentos ou honrar o crédito de seu carro.

“Sinto como se uma montanha de dificuldades tivesse desmoronado sobre mim e minha família”, disse. A Uber não quis comentar o assunto.

Em março, autoridades do Estado do Punjab, no norte, lar de mais de 27 milhões de pessoas, cortaram os serviços de dados móveis e de mensagens de texto por vários dias enquanto a polícia buscava um separatista sikh que defende a criação de uma pátria sikh independente. O desligamento teve como objetivo impedir que seus apoiadores expressassem apoio on-line ou coordenassem planos de fuga.

Em 2021, as autoridades cortaram a internet no Estado do Rajastão, onde vivem cerca de 80 milhões de pessoas, por até 12 horas para manter a lei e a ordem e prevenir a possibilidade de trapaças em um exame para selecionar professores para cobiçadas vagas em escolas públicas. Às vezes, cópias das provas se disseminam on-line antes de sua realização. Além disso, estudantes já foram pegos usando dispositivos proibidos durante exames.

Desde então, esse tipo de medida cresceu, com desligamentos durante a realização de provas em vários outros Estados, de acordo com o Software Freedom Law Center India, um grupo defensor da liberdade digital. Em 2022, o grupo entrou com uma ação de interesse público, argumentando que os cortes são arbitrários e ilegais.

A região da Caxemira, de maioria muçulmana, está sujeita a cortes mais frequentes. Em 2022, as autoridades indianas desligaram o acesso à internet 49 vezes na região, de acordo com a Access Now, mais da metade do total no país. As restrições começaram em 2019 sob o pretexto de que eram necessárias para manter a ordem pública diante da decisão de Nova Déli de acabar com o status especial da região. Empresas locais relatam que a economia da região está sofrendo.

“Antes, os desligamentos eram uma resposta a problemas, mas agora estão sendo usados de forma preventiva”, disse Namrata Maheshwari, assessora de políticas para a Ásia-Pacífico do Access Now.

Não está claro se os desligamentos ajudam a conter agitações sociais ou a evitar fraudes, segundo Maheshwari, e muitas vezes eles provocam ansiedade entre amigos e familiares que ficam incomunicáveis ou incapacitados de trabalhar.

Em Manipur, houve cortes da internet durante confrontos violentos entre dois grupos étnicos que resultaram na morte de mais de 100 pessoas.

Aribam encontrou uma solução cara para sua empresa de sáris. Nos últimos meses, o irmão, com quem ela administra a firma, voou várias vezes mais de 1,5 mil quilômetros para Nova Déli, carregando bolsas repletas de peças. Ele usou a conexão à internet do hotel onde fica para vendê-las on-line.

“Minha família e eu conseguimos sobreviver durante este período difícil porque somos privilegiados em certos aspectos”, disse ela. “No entanto, os tecelões, que vivem precariamente, têm dificuldades para chegar ao fim do mês.” (Colaborou Krishna Pokharel)

FONTE: https://valor.globo.com/mundo/noticia/2023/09/16/cortes-da-internet-por-motivos-polticos-afetam-a-economia-digital-da-ndia.ghtml