Cientista quer usar edição genética para eliminar todos os mosquitos do mundo

A tecnologia para acabar com as doenças transmitidas por mosquitos já existe, diz Tiffany Vora, da Singularity University. Mas, para que isso aconteça, é preciso que cientistas, governos e organizações cheguem a um consenso

PARA TIFFANY VORA, É PRECISO DAR UM FIM A DOENÇAS COMO DENGUE, ZIKA, FEBRE AMARELA E MALÁRIA (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Imagine um mundo em que não haja mosquitos para transmitir doenças como Zika e febre amarela. Hoje já é possível fazer isso. Basta mudar o seu DNA, para que eles não sejam capazes de se reproduzir. Em um ano, todos os mosquitos seriam exterminados”, diz Tiffany Vora, chefe de departamento e vice-diretora de Medicina e Biologia Digital na Singularity University.

Edição genética, dispositivos de IA que controlam sua saúde, biologia digital: essas são algumas inovações tecnológicas que vão impactar a medicina nos próximos anos. “As mudanças vão acontecer mais cedo do que imaginamos. Por isso, é preciso que governos, cientistas e a população se reúnam para tomar agora as decisões que vão moldar o nosso futuro”, diz Tiffany.

A especialista estará no Brasil no dia 11 de junho para participar do evento Singularity U Brazil Summit, onde falará sobre as oportunidades e desafios para combinar tecnologia e saúde. Confira abaixo os principais trechos da entrevista que ela concedeu a Época NEGÓCIOS.

Em que áreas da medicina a tecnologia está causando mais impacto?
Um dos segmentos que está mudando muito rapidamente é a edição genética, ou tecnologia Crispr/Cas9. Tivemos um grande avanço, ou um grande escândalo, dependendo do ponto de vista, no ano passado, quando o pesquisador chinês He Jiankui declarou ter criado os primeiros bebês geneticamente editados do mundo [as meninas gêmeas Lulu e Nana, que supostamente tiveram seu DNA modificado para serem resistentes ao vírus HIV]. Acho que ninguém estava pronto para isso.

Existe comprovação de que os bebês realmente foram editados geneticamente?
Não existe nenhuma verificação independente. Ninguém teve acesso aos bebês. E não houve nenhuma publicação em revistas científicas. Mas o anúncio mudou tudo. Porque, embora soubéssemos que a edição de bebês era tecnicamente possível, havia um acordo global segundo o qual ninguém faria esse tipo de procedimento. Quer dizer, os cientistas sempre formaram uma comunidade autorregulada, que se reunia para discutir quais experiências seriam feitas e como. O dr. He quebrou todas as regras. E a reação negativa foi muito forte, dentro e fora da comunidade científica. Então a experiência chinesa deixou claro que esse tipo de decisão terá que ser tomada com a participação de outros players.

Além de mudar o DNA de bebês, o que pode ser alcançado com a edição genética?
Em teoria, você poderia editar genes para apagar o câncer, por exemplo. A técnica seria usada diretamente nas células cancerosas. Outra possiblidade é eliminar doenças como a retinoblastoma: a criança nasce com um tumor que, com o tempo, a deixará cega. Com a edição genética, você pode impedir que isso aconteça. Também é possível usar a técnica para editar o DNA de um mosquito e garantir que ele jamais transmita Zika para uma mulher grávida, evitando assim a microcefalia. Podemos usar a mesma técnica para combater febre amarela, malária, dengue. Seria incrível.

Para a especialista, é preciso controlar a maneira como as empresas terão acesso aos dados médicos dos clientes (Foto: Divulgação)

Já é possível fazer isso?
Sim, as técnicas já existem. Uma opção seria mudar o DNA do mosquito para que este não fosse mais capaz de transmitir a doença. Outra, mais eficiente, seria mudar o DNA para que ele não fosse capaz de se reproduzir. Na prática, seria como programar os mosquitos com um botão de autodestruição. Potencialmente, poderíamos eliminar todos os mosquitos da face da Terra em pouco mais de um ano. Há quem seja contra, porque acredita que não devemos eliminar uma espécie. Mas o homem vem eliminado espécies do planeta há 100 mil anos. A diferença é que, nesse caso, seria algo controlado. Caso houvesse algum problema, poderíamos parar com o processo a qualquer momento. E daí trazer os mosquitos de volta, usando larvas congeladas. A minha questão é: quem decide isso? Acho que é preciso ser honesto e transparente, e ter tantos olhos quanto possível observando tudo.

Até que ponto a ética é um fator decisivo para as relações entre medicina e tecnologia?
A ética tem que acompanhar necessariamente os avanços no setor. Praticamente todas as tecnologias que estão sendo desenvolvidas envolvem questões éticas. Uma das razões por que isso se tornou tão importante é que agora, por meio da tecnologia, todos podem dar sua opinião sobre o assunto. Não são mais só os cientistas que estão discutindo essas questões. Agora os pacientes têm uma voz. E pessoas que podem se transformar em pacientes também têm uma voz.

Como a IA vai influenciar os cuidados com a saúde?
À medida que mais informações sobre nossos corpos forem digitalizadas, todos esses dados poderão ser usados para personalizar a medicina. E daí a inteligência artificial vai te dizer o que comer, quando fazer exercícios, quando tomar remédios etc. Isso está prestes a acontecer. Mas existe um risco nessa história. Veja bem, a Amazon está investindo muito agora na área da saúde. Agora vamos supor que, de posse dos seus dados, a Alexa veja que o seu nível de glicemia está baixo, e daí diga: “Por que não compra esse produto e resolve o problema?” Algumas pessoas podem achar essa ideia bem perturbadora. Quer dizer, eles estão usando meus dados para me ajudar a cuidar da saúde ou para me vender produtos? Como você constrói um mundo com medicina personalizada, mas sem ferir a privacidade das pessoas?

Privacidade e uso indevido de dados são temas muito discutidos hoje. Como evitar que dados médicos não sejam manipulados para outros fins?
Eu acredito que está havendo uma reação global contra gigantes da tecnologia como Google e Facebook, que têm feito uso indevido dos dados das pessoas, com resultados inesperados, como interferência nas eleições e ameaças à democracia. Talvez esse movimento dê origem a um novo modelo: em vez do Facebook ter acesso ilimitado aos seus dados, eles terão que pagar cada vez que usarem informações suas. A mesma coisa pode acontecer com os seus dados médicos: você vai controlar exatamente o que pode ser usado por empresas farmacêuticas ou do varejo.

FONTE: ÉPOCA NEGÓCIOS