“China conta com inteligência artificial para se tornar primeira potência”

O investigador francês Charles Thibout veio a Lisboa falar sobre inteligência artificial e como as grandes potências como China e EUA disputam a liderança neste setor.

Em Lisboa para participar no colóquio Combater os Medos, na Fundação Gulbenkian, Charles Thibout garante que as séries e filmes ajudam a explicar o receio que a inteligência artificial provoca nas pessoas. Investigador no Institut de relations internationales et stratégiques (IRIS), o francês lembra que até 2022 a França vai gastar 1,5 mil milhões de euros em AI. A China já gasta 22 mil milhões de dólares (quase 19 mil milhões de euros) por ano.

Quando pensamos em inteligência artificial, pensamos logo em robôs que vão roubar os nossos empregos. Porquê este medo?

É o medo comum dos seres humanos em relação à tecnologia. Mas depende muito da cultura. Este medo existe mais na Europa e menos nos EUA, onde a tecnologia é vista como um instrumento de emancipação dos homens.

Os filmes, as séries, têm culpa destes medos?

Sim, claro. Tudo parte de uma representação negativa da inteligência artificial, do robô, de tudo o que gira em torno da tecnologia e que poderia um dia destruir o ser humano. Esta impregnação do medo tecnológico na cultura é muito antiga. Podemos recuar até Frankenstein para explicar a ideia de que a criação humana pode escapar totalmente das mãos do seu criador e virar-se contra ele. Séries como Black Mirror, filmes como o Exterminador Implacável participam também desse receio.

Podemos recuar até Frankenstein para explicar a ideia de que a criação humana pode escapar totalmente das mãos do seu criador e virar-se contra ele

Mas é redutor, a inteligência artificial é muito mais do que os robôs…

É muito mais. A inteligência artificial não é física. Está no éter. Está sobretudo no domínio cibernético: na internet, na cloud. No domínio imaterial. É aí que a inteligência artificial é mais usada. São robôs, mas robôs virtuais. Por outro lado, há mesmo robôs que existem e sobre os quais temos de nos interrogar. Podem talvez aumentar o desemprego, as desigualdades, os riscos de guerra também. Diria que temos de ter uma visão moderada da tecnologia, da inteligência artificial, porque como qualquer outra tecnologia não é boa nem má em si. Depende do que fazemos com ela.

O seu trabalho centra-se nas consequências geopolíticas e estratégicas da inteligência artificial. A AI mudou a forma de fazer política?

Ainda não. Se olharmos para as últimas presidenciais em França, só um candidato falou de inteligência artificial: o socialista Benoît Hamon e teve 6% dos votos. Não é um assunto que neste momento mobilize as pessoas ou que seja um objetivo em termos de sociedade a ponto de votarmos no candidato que tem a melhor solução para este eventual problema. Pelo menos na Europa continua ser uma coisa secundária. Mas em certos países – estou a pensar sobretudo na China – está a tornar-se um assunto importante. Os chineses contam com a inteligência artificial para se tornarem a principal potência tecnológica do mundo. Até mesmo para se tornarem a primeira potência mundial. Ponto final. E, como reflexo, interessa também muito aos EUA. Este veem os chineses investir quantidades colossais de dinheiro na inteligência artificial, arriscando tirar-lhes o lugar de primeira potência. E pensam que têm de apostar tudo na AI. É por isso que nas últimas semanas, nos últimos meses, vemos representantes do governo americano vir dizer que estão a investir todos os fundos necessários na inteligência artificial. Precisamente para manter o avanço que têm em relação aos adversários.

E os americanos têm razão de recear o domínio da China?

Ah sim. Estamos perante uma tendência a longo prazo em que vemos a China despertar e tornar-se cada vez mais rica, mais poderosa e mais capaz em termos tecnológicos. Capaz de atrair talentos, de atrair empresas americanas para o seu território, mesmo quando se trata de empresas muito ligadas ao governo americano. E num momento em que as relações entre Pequim e Washington estão tão tensas, quando vemos estes gigantes tecnológicos – Google, Facebook, Microsoft, Apple, … – investir em massa na China enquanto estão ligadas ao governo americano percebemos que há um objetivo maior. Essas empresas investem na China sobretudo em inteligência artificial.

É muito mais uma luta económica e política do que militar?

Claro que há um aspeto militar. Económico, sim, mas também militar. Vemos a China criar uma estratégia de fusão militar-civil. Eles compreenderam que hoje as inovações em inteligência artificial vêm do setor civil e que era necessário que essas inovações fossem transpostas o mais rapidamente possível para o domínio militar. E isso com inúmeros objetivos: para ajudar os soldados no terreno, mas também os comandos a tomarem decisões de forma mais fácil e rápida, para detetar alvos mais rapidamente, etc. E podemos mesmo pensar em armas autónomas.

Uma forma de tirar a imprevisibilidade humana da guerra, portanto?

Sim. Os defensores das armas autónomas dizem que com a sua introdução vai haver menos mortes. Primeiro porque são robôs mas também porque são mais precisas e capazes de determinar se uma pessoa é um inimigo ou não porque têm um enorme conjunto de sensores e conseguem tratar as informações que recebem de forma muito rápida. Terão uma capacidade de discernir o bem do mal, se posso falar assim, muito mais rápido do que um ser humano.

E a Europa, está preparada para este cenário?

Olhe, posso dar-lhe os números. O país mais na vanguarda em termos orçamentais é a França. Até 2022 conta gastar 1,5 mil milhões de euros no desenvolvimento da inteligência artificial. Os EUA gastam três mil milhões de dólares [2,5 mil milhões de euros] por ano. A China gasta 22 mil milhões de dólares. Que passarão para 60 mil milhões em 2025. Acho que explica bastante bem a situação em que estamos hoje. A Europa não está de todo em posição favorável na corrida à inteligência artificial. Sobretudo porque quando temos algumas empresas que emergem um pouco, que propõem produtos inovadores, são logo compradas pelas grandes empresas americanas. Amanhã, talvez, pelas chinesas. E por isso não conseguimos hoje criar um ecossistema suscetível de fazer emergir uma potência europeia da inteligência artificial. Não existe ainda e podemos pensar que vai levar alguns anos até chegarmos a esse resultado.

FONTE:  DIÁRIO DE NOTÍCIAS