Venda reforça a fragmentação da internet no mundo

A decisão dos EUA de obrigar a chinesa TikTok a vender a sua operação nos EUA para uma empresas americana, por motivos de segurança nacional, reforça a tendência de criação de várias internets regionais
Por Financial Times

Pode parecer inusitado que um aplicativo conhecido principalmente por coisas como vídeos de passos de dança e sátiras engraçadas publicados por adolescentes desperte preocupações com a segurança nacional. Mas, na história do mundo online, a venda forçada da unidade americana do TikTok – o primeiro empreendimento de mídia social chinês a se tornar um fenômeno mundial – para uma empresa dos EUA é um marco. Isso acontece depois que vários países ocidentais rejeitaram a tecnologia de 5G da Huawei e ressalta que a divisão da internet- na verdade, sua fragmentação em várias internets regionais – não só é inevitável, como já é uma realidade. A venda reflete as preocupações específicas dos EUA e de outras democracias ocidentais com a possibilidade de que o regime autoritário da China tenha acesso a dados mantidos por empresas chinesas. Afinal, as leis de segurança nacional da China exigem que todas as suas empresas obedeçam a ordens de seu aparato de segurança. A proprietária do TikTok, a ByteDance, insiste que nunca entregaria informações de usuários e acrescenta que os dados referentes aos usuários americanos são armazenados nos EUA. Mas essas garantias não reduziram a preocupação do governo de Donald Trump. A Comissão sobre Investimento Estrangeiro nos EUA (Cfius) determinou que a ByteDance venda a sua unidade americana. Alguns dos jovens usuários ocidentais do TikTok não se importam e tratam como um fato óbvio que aplicativos acessem e utilizem seus dados pessoais. Mas os EUA e seus aliados têm motivos para se preocupar com os usos que o Estado de vigilância da China pode fazer dessas informações. O secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, já indicou o potencial que o aparato de segurança chinês tem de usar sua competência na área de reconhecimento facial para criar bancos de dados sofisticados de características pessoais, endereços, números de telefone, amigos e conexões dos usuários. O TikTok, que o site TechCrunch chamou de o “Instagram para a era dos vídeos para celular”, tornou-se ainda uma plataforma para jovens ativistas políticos e sociais. O Ministério das Relações Exteriores da China declarou que a decisão do governo americano “expõe a típica duplicidade de critérios dos EUA”. Por mais lamentável que seja a medida dos EUA para aqueles que cultivam a ideia do espaço cibernético como uma zona sem fronteiras, ela é apenas um espelho do que acontece faz muito tempo na China. Pequim proibiu ou impôs condições rejeitadas por serem inaceitáveis por Facebook, Google, Twitter e outros. O país tem leis rigorosas sobre localização de dados. Os comentários do governo Trump são um eco da própria noção da China de soberania digital. Além disso, este não é só um fenômeno que envolve apenas EUA e China. A Índia proibiu recentemente 59 dos maiores aplicativos da China, incluindo o TikTok e o WeChat, sob o argumento de que eles representam uma ameaça à segurança do país. A venda do TikTok nos EUA para uma empresa americana é de longe preferível à proibição que Trump sugeriu na sexta-feira – embora os motivos para a intervenção do presidente sejam nebulosos. Uma venda para a Microsoft, se for adiante, seria justa comercialmente, por permitir que a ByteDance recupere seu valor. Também preservaria a empresa para seus milhões de fãs e como uma concorrente de plataformas como o Facebook. Embora possa ser inevitável, o desmembramento da internet – e, consequentemente, do setor mundial de tecnologia – em uma série de áreas fechadas é algo lamentável. É provável que isso desacelere a inovação ao levar a duplicações desnecessárias e padrões concorrentes. De um ponto de vista ideal, mesmo que os países adotem regras próprias sobre privacidade e armazenamento de dados e sobre quem pode operar dentro de suas fronteiras online, seria preferível que eles desenvolvessem uma estrutura mundial – uma espécie da Organização Mundial do Comércio (OMC) do espaço cibernético. Mas como a OMC propriamente já passa por dificuldades, essa noção tem poucas chances de sair do papel sem que haja uma mudança de liderança em algumas das maiores economias do mundo.

FONTE: https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/08/04/venda-reforca-a-fragmentacao-da-internet-no-mundo.ghtml