Uma inteligência artificial

As Forças Armadas fizeram ontem sua 19ª operação na cidade em sete meses. Dez traficantes que eram os principais alvos conseguiram fugir. Pelas redes sociais, moradores da Cidade de Deus alertaram que suspeitos saíram da favela de ônibus. Enquanto as megaoperações se multiplicam, sem resultados claros, o investimento em inteligência policial está limitado a R$ 2,3 milhões. O efetivo da Polícia Civil no estado é de 9,6 mil homens, e as vagas disponíveis passam de 13 mil. Um dia após o Rio chorar a morte de Emilly, de 3 anos, durante um assalto, e de Jeremias, de 13, atingido em um tiroteio, as Forças Armadas voltaram às ruas da cidade pela 19ª vez em sete meses. Cerca de 3 mil militares participaram ontem de operações integradas com agentes de segurança do estado em quatro comunidades: Nova Holanda (no Complexo do Maré), Morro da Covanca (em Jacarepaguá), Rocinha e Cidade de Deus. Quarenta e um suspeitos foram detidos, inclusive 15 menores de idade, mas dez traficantes que seriam os principais alvos das equipes de buscas conseguiram escapar.

Moradores da Cidade de Deus denunciaram, por meio de redes sociais, que, quando os militares começaram a chegar, por volta das 5h, vários bandidos fugiram de BRT. Muitos teriam embarcado na estação de Santa Efigênia. Outros, de acordo com os relatos, pegaram ônibus comuns em ruas do entorno da comunidade. Ficaram para trás algumas armas e drogas, e sobrou a certeza, por parte de representantes do Legislativo, do Ministério Público e de sindicatos de policiais, de que faltou investigação.

Enquanto as megaoperações se multiplicam, os investimentos naquela que é a maior responsável pela apuração dos crimes ocorridos no estado, diminuem. Um documento interno da Polícia Civil, obtido com exclusividade pelo GLOBO, mostra que 57,3% dos cargos previstos na Lei 3.586/2001, que reestruturou a corporação, estão vagos. São, no total, 13.256 vagas disponíveis, número maior que o efetivo atual, de 9.654 homens. Há ainda 216 postos suspensos ou reservados.

ESTE ANO, ORÇAMENTO DE R$ 2,3 MILHÕES Pela Lei Orçamentária, a Polícia Civil foi autorizada a gastar até R$ 1,8 bilhão este ano, mas R$ 1,69 bilhão deverão ser destinados a pagamentos de salários, abonos e pensões. Investimentos na rubrica “inteligência e segurança da informação” estão limitados a R$ 2,3 milhões. Os recursos minguam em vários setores, mas é nas unidades especializadas da corporação que o sucateamento se mostra mais latente. Um exemplo: em 2004, a Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas tinha um efetivo de 120 homens, e, naquele ano, registrou 4.174 casos. Em 2017, apenas 50 agentes ficaram responsáveis pelas investigações de 9.874 ocorrências.

A deputada estadual Martha Rocha (PDT), exchefe da Polícia Civil, afirma que as forças de segurança não conseguem conter a onda de roubos de cargas no Rio justamente porque falta um trabalho de inteligência. Segundo ela, não é apenas fazendo blitzes em vias expressas que o quadro vai mudar:

– Hoje, as grandes quadrilhas têm um braço especializado em roubos de carga. Em algumas regiões, esse tipo de crime vem dando mais lucro aos bandidos do que a venda de drogas. As áreas onde ocorrem mais ataques a caminhões já estão mapeadas, mas faltam agentes para concluir inquéritos, fazer trabalho de campo, identificar cada integrante das quadrilhas. A carência de recursos humanos atrapalha muito qualquer estratégia de segurança.

Embora o tráfico seja responsável por pelo menos 70% dos homicídios do estado, o efetivo da Polícia Civil encarregado de investigá-lo também é reduzido. Atualmente, a Delegacia de Combate às Drogas conta com 50 agentes para desbaratar quadrilhas que atuam nas cerca de 500 comunidades da capital. Antes chamada de Delegacia de Repressão a Entorpecentes, ela chegou a ter aproximadamente 300 homens nos anos 2000.

A situação da Desarme, que combate o tráfico de armas, é ainda pior: tem apenas 20 investigadores, segundo o Sindicato dos Delegados de Polícia do Rio de Janeiro (Sindelpol). Ela foi criada em 2017, após o estado passar seis anos sem uma delegacia especializada nesse tipo de crime. Quando foi extinta, em 2011, a Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos trabalhava com uma equipe de aproximadamente cem homens.

A promotora Andrea Amin, coordenadora do Grupo Especializado em Segurança Pública do Ministério Público estadual, diz que, devido à falta de pessoal nas delegacias, o órgão está sendo obrigado a assumir tarefas da Polícia Civil, como fazer notificações, ouvir depoimento de testemunhas e até investigar crimes:

– Segurança pública envolve inteligência. Realizar operações não garante a redução da criminalidade. A Polícia Civil vem perdendo sua capacidade de trabalhar, seu quadro está muito deficitário.

Hoje, a corporação tem 9.654 servidores, e um terço recebe o chamado abono permanência: isso significa que cerca de 3 mil já podem pedir a aposentadoria. Em 2001, quando a lei de reestruturação da Polícia Civil foi criada, apenas 92 servidores deixaram o serviço. Desde 2014, mais de 700 pediram as contas.

Em um estado que registrou 6.731 mortes violentas no ano passado, uma das maiores necessidades da Polícia Civil é a contratação de peritos legistas, fundamentais para a investigação dos homicídios. Hoje, a corporação tem 284 peritos, e, pelos cálculos do Sindelpol, precisa preencher 215 vagas. A promotora Andrea Amin se reuniu no mês passado com representantes da Casa Civil e pediu a realização de um concurso, em caráter de urgência, para a convocação de pelo menos cem.

TAMBÉM FALTAM EQUIPAMENTOS Além de agentes, a Polícia Civil precisa de equipamentos. Tem apenas dois helicópteros (o mais novo foi adquirido nove anos atrás). A Coordenadoria de Recursos Especiais conta com dois veículos blindados, e ambos estão parados por problemas mecânicos.

O presidente do Sindelpol, Rafael Barcia, lembra que, no ano passado, o sistema de informática que reúne todas as informações da Polícia Civil quase entrou em colapso por falta de pagamento a técnicos e falhas de manutenção:

– O crime organizado investe em tecnologia; a Polícia Civil, não. Bandidos já usam drones durante invasões de favelas, nós não temos nenhum, precisamos pegar emprestado. Criminosos só se comunicam pelo WhatsApp, há programas que permitem a interceptação de trocas de mensagens e de áudio, mas também não os temos.

Barcia destaca que o Exército tem avançados equipamentos de inteligência, que vêm sendo usados de forma pontual nas operações conjuntas. Ele defende uma integração maior das Forças Armadas com as polícias Civil e Militar, inclusive com o compartilhamento desses aparelhos.

Em nota, a Polícia Civil informa que, “assim como todos os órgãos do estado”, aguarda “a total recuperação fiscal do governo para que seja equacionada esta escassez de recursos, tanto de insumos como o pagamento do 13° salário de 2017, das gratificações, contratação de concursados, abertura de novas vagas e demais pendências financeiras com funcionários e empresas terceirizadas”.

MAIS PATRULHAMENTO O governador Luiz Fernando Pezão anunciou que o estado pagará amanhã R$ 13,8 milhões pendentes do Regime Adicional de Serviço (RAS) e R$ 8,4 milhões do Programa Estadual de Integração na Segurança (Proeis) das polícias Civil e Militar. Com isso, a expectativa é que o Rio tenha de 1.500 a 2 mil agentes a mais nas ruas já durante o carnaval.

Fonte: O GLOBO – RJ

Autor: ELENILCE BOTTARI E FÁBIO TEIXEIRA