Treinamento para o digital exige mais horas e inclusão de soft skills

Para especialistas, no Brasil é preciso investir mais na requalificação da mão de obra e ter foco além da tecnologia.

Hugo Tadeu, da Fundação Dom Cabral diz que no Brasil, na média, são 28 horas de treinamento digital por ano, nos EUA são 70 horas — Foto: Divulgação

A adoção de tecnologia e o aumento do acesso digital aceleraram as transformações digitais e passaram a exigir das empresas treinamentos que vão além das qualificações para inteligência artificial e big data. As habilidades necessárias para o corporativo digital incluem pensamento criativo, resiliência, flexibilidade, agilidade e pensamento analítico.

“O RH tem o papel de fazer também uma avaliação de perfil e incluir programas de treinamento e capacitação que o mercado agora chama de reskilling (requalificação) e upskilling (qualificação), casado com as metas”, recomenda Hugo Tadeu, diretor do núcleo de inovação e empreendedorismo da Fundação Dom Cabral. A instituição participou do relatório “O Futuro do Trabalho 2023”, elaborado pelo Fórum Econômico Mundial, apoiando as pesquisas de opinião executiva.

O professor destaca, no entanto, que nota certa incoerência entre o discurso sobre transformação digital e inovação e a prática nas empresas, a começar pelo número de horas dedicadas ao treinamento para a transformação digital no Brasil: na média, são 28 horas por ano, contra 70 horas por ano das empresas norte-americanas.

Na avaliação da executiva Aurea Imai, managing partner da Boyden Brasil, as empresas ainda estão aprendendo a lidar com a qualificação ou requalificação dos profissionais e procurando soluções internas e externas para tentar suprir a demanda. “Não adianta trazer uma pessoa altamente qualificada do ponto de vista técnico, mas que não consegue performar bem no corporativo. Tem que ter um combo”, observa. O grande desafio, aponta Imai, é pinçar em um pool de talentos o profissional com perfil de gestor e líder.

Por outro lado, é valido também escolher internamente um profissional engajado e com habilidades para liderar e dar a ele uma formação técnica. “Até que a empresa tenha um contingente de pessoas qualificadas para as novas funções, a requalificação é uma opção para a oferta reduzida”, afirma.

Para o sócio da Signium, Eduardo Drummond, o processo da transformação pode demorar anos porque não e só implementar uma tecnologia, mas sim fazer com que a organização pense de forma digital e toda a cultura seja voltada para o digital. “É preciso preparar as gerações futuras para que tenham as principais ‘skills’ que a empresa necessita”, afirma.

Um meio para isso é formar uma equipe diversa. “Algumas empresas estão colocando jovens recém-saídos da faculdade e cheios de ideias com alguém com 20, 30 anos experiência na mesma equipe. Em alguns momentos, pode dar conflitos culturais, mas é ótimo para a organização fazer a fusão entre experiência e inovação”, acredita.

O professor da Fundação Dom Cabral vai além e defende que a primeira agenda de treinamento é explicar para o conselho da empresa o que é inovação e tecnologia. “Quando falamos em competências do futuro, tem a ver com raciocínio crítico, com uso de tecnologia, com inovação, mas deveria começar pela alta administração e diretoria executiva para que entendam o que é a transformação digital. Depois, desdobrar para funções mais gerenciais e operacionais.”

As necessidades impostas pela transformação digital levaram entidades como a Associação Brasileira de Recursos Humanos de São Paulo (ABRH-SP) a investir na capacitação profissional, promovendo a Semana de Transformação Digital, que chegou à quarta edição este ano. “Esse tema já estava no radar das organizações, mas se acelerou com a pandemia. Este ano foi marcado pelo avanço da inteligência artificial, como o ChatGPT e outros recursos que estão tornando o uso da IA cada vez mais acessível. E isso tem impacto no mundo do trabalho, com projeções de eliminação de milhões de postos e, por outro lado, a criação de outros milhões de vagas”, comenta Luiz Drouet, presidente da ABRH-SP.

Segundo ele, as empresas têm atuado tanto na capacitação de pessoas que estão fora das organizações, formando profissionais para contratar, como investindo no desenvolvimento de habilidades de seus funcionários, para qualificação e requalificação, incentivando a transição na carreira. “É uma cadeia de formação contínua e, para ser bem-sucedido, o profissional precisa ter habilidades como agilidade de aprendizado, capacidade de se adaptar, facilidade de usar a tecnologia, e isso vale para qualquer carreira”, diz.

Outro desafio que as empresas estão enfrentando é para reter profissionais. Os jovens talentos não são atraídos por benefícios, mas sim por um pacote de remuneração e, de modo geral, almejam ser donos do negócio. “Em algumas empresas existem pessoas com menos de 30 anos recebendo salário de alto executivo e trabalhando com remuneração variada”, relata a executiva da Boyden.

O sócio da Signium acrescenta que uma das políticas adotadas para reter os executivos no médio prazo são bônus, condicionado a obrigatoriedade de ficar um determinado período na empresa. Se sair antes do prazo acordado, precisa devolver os valores. Para retenção no longo prazo, ganham ações da empresa, com as mesmas condições.

O corporativo digital exige não só a capacitação tecnológica, mas formação em gestão para que os profissionais consigam aliar o arcabouço técnico ao mundo de negócios e gerar resultado para a empresa.

Imai, da Boyden, destaca que muitas empresas têm optado pela compra de plataformas de treinamento, o que ela avalia como positivo, porque universaliza o acesso ao conhecimento a todos os funcionários.

“Antes, o treinamento presencial era focado em grupos. Agora, as empresas têm usado essas plataformas para treinar e mudar o mindset, e qualquer profissional que tenha interesse pelo tema pode acessar o conteúdo, se especializar e se tornar um influenciador no seu grupo de trabalho”, observa.

Há, também, empresas criando suas próprias plataformas, mais customizadas, e buscando pessoas de fora da companhia, com experiência e metodologia, para promover a transformação digital. Ou criando métodos para capacitação entre os próprios funcionários, utilizando técnicas como as de gamificação.

Outra experiência, relatada por Telma Luchetta, sócia na consultoria EY América do Sul, foi a criação de academias e a firmação de parcerias para programas de capacitação e formação de novos profissionais. Nesse processo, explica, houve uma inversão da pirâmide, com os nativos digitais na base, profissionais com perfil mais tecnológico no meio, e os especialistas já preparados em cloud e tecnologias emergentes no topo. “Com a inversão da pirâmide, formamos as academias e fizemos trilhas de conhecimento para diferentes perfis”, relata.

Luchetta acredita que a capacitação precisa ser constante, entre outras razões porque os ciclos das novas tecnologias são cada vez mais curtos. Ela observou que alguns clientes, como bancos e seguradores, passaram a criar uma estrutura chamada de gestão de tecnologia. “Não é necessariamente uma área de RH, mas sim de gestão de talentos, criada dentro das áreas técnicas, como as de tecnologia e inovação, para treinamentos diferenciados”, comenta.

Dependendo da área de atuação, a empresa vai exigir ou não qualificação. “A técnica não é deixada de lado, mas o comportamento passou a ter relevância maior e, se além do conhecimento técnico, o profissional tiver proatividade, ganha 20 pontos a mais. Hoje, ele precisa ter atitude, iniciativa e correr atrás”, recomenda Luchetta.

A sócia da Boyden considera que, mais do que a qualificação, as empresas avaliam a experiência anterior. “Um executivo mais maduro e que já tenha participado de algum projeto, vai saber quais as etapas que devem ser seguidas e, se precisar de algo mais técnico, ele vai buscar.”

Drummond, da Signium, reforça: quanto mais vivência esse executivo tiver e mais diversas forem essas experiências, será melhor para a organização. “Quanto mais dificuldades ele enfrentou, mais caminhos conseguirá desenvolver para criar atalhos quando tiver de encarar desafios”, defende.

Para o professor da Fundação Dom Cabral, nem todos precisam aprender a programar, trabalhar com computação avançada e saber técnicas de machine learning, por exemplo.

“Quem está no nível operacional tem que saber sobre tratamento de dados, IA, entender o dado do cliente, saber como monetizar isso e trazer benefício para a companhia. Para esse indivíduo, o entendimento da tecnologia é importante. Já para quem não é da área tecnológica, o raciocínio está mais para resiliência e adaptabilidade do que entender o princípio tecnológico”, acredita Tadeu.

Ele cita ainda o relatório do Fórum Econômico Mundial, que traz a necessidade de requalificação, mas também fala da necessidade das companhias ou dos jovens talentos entenderem que a tecnologia não é um fim, mas sim um meio.”

Ninguém vai entender só de tecnologia. O negócio continua sendo negócio, e a necessidade de alinhar o perfil do jovem com a experiência do sênior é super importante”, reforça o professor.

Tadeu acrescenta que tem visto empresas recrutando profissionais na Índia e nos Estados Unidos para atuar no Brasil. “Contratar mão de obra disponível das áreas tecnológicas, não importa onde, é uma realidade dos gestores de RH.”

FONTE: https://valor.globo.com/carreira/noticia/2023/07/10/treinamento-para-o-digital-exige-mais-horas-e-inclusao-de-soft-skills.ghtml