Startups já oferecem produtos e serviços de IA com jeitinho e sotaque brasileiro

Elas criam soluções locais para grandes empresas em um mercado bilionário, que deve movimentar US$ 124 bi na próxima década.

Grandes companhias que ainda não desenvolveram, mas querem incorporar inteligência artificial (IA) aos seus negócios, estão buscando ajuda de startups — e aquecendo um novo ramo de negócios chamado de IA as a service, na tradução literal “inteligência artificial como serviço”.

O que as startups oferecem a essas empresas são sistemas automatizados e capazes de entender as necessidades dos consumidores em áreas tão diversas quanto saúde e finanças. Com IA, o atendimento acontece de forma personalizada, levando em conta aspectos locais e com muito mais precisão, dizem os especialistas.

Estima-se que esse mercado já movimente US$ 9,7 bilhões globalmente (mais de R$ 51 bilhões) e que apresente crescimento de 33% ao ano até 2032, quando deverá movimentar US$ 124 bilhões (R$ 652 bilhões), segundo estudo da consultoria Global Markets Insight.

No Brasil, analistas ainda não estimaram quanto o mercado de IA as a service movimenta, mas avaliam que ele já é realidade. Isso é comprovado pelo interesse de fundos de investimento, como o de Jorge Paulo Lemann, que buscam startups que atuam na área.

— Trata-se de um novo momento do mercado de tecnologia, e não é mais uma tendência, mas uma realidade para empresas, no Brasil e em outros países, que querem automatizar processos e realizar trabalhos de repetição com uma camada de inteligência artificial. É uma forma de buscar crescimento de receitas com novas funcionalidades — diz Leo Monte, diretor de inovação da Torq, hub de inovação da Sinqia, empresa de soluções tecnológicas para o mercado financeiro.

Português regional e gíria

A Fintalk é uma startup brasileira, fundada em 2019, que nasceu criando soluções de conversas automatizadas por inteligência artificial. Tem entre seus 15 clientes, além de corretoras, empresas de varejo e academias de ginástica, como a Avenue-Itaú, Stone, Banco Afinz, Cimed, C&A, Sky, BlueFit e Cogna. A expectativa é dobrar a carteira de clientes até o fim do ano, segundo o sócio, Luiz Lobo. De olho na expansão, a empresa participou do Web Summit Rio.

O sistema de IA criado pela Fintalk entende o português regional e informal, com todas as gírias e sotaques, e foi treinado durante três anos para fazer os atendimentos. Também está capacitado em outros 133 idiomas, o que permitirá a expansão internacional da startup no futuro.

— Pelo sistema, os clientes dessas empresas podem pagar boletos, pedir segunda via do documento e ter informações via aplicativo ou redes sociais, tudo por conversas de áudio. O importante é que desenvolvemos tecnologia brasileira para nossa solução de IA — explica Lobo, lembrando que todos os serviços bancários oferecidos passaram pelo crivo das áreas de segurança dos bancos.

O investimento inicial dos sócios foi de R$ 1 milhão e depois a startup decidiu ir a mercado para acelerar a expansão, recebendo US$ 350 mil do Google for Startups. Em março, a Fintalk recebeu novo aporte do Revolution, fundo da Volt que tem Jorge Paulo Lemann e ex-sócios do Banco Garantia entre os cotistas, e que já tinha feito investimento de R$ 6 milhões na startup. Dessa vez, o valor não foi revelado.

As empresas que usam o serviço da Fintalk registraram queda de 40% no custo de atendimento e redução de 25% na inadimplência, segundo relataram. As companhias que usam o serviço pagam por usuário atendido.

— Desenvolver soluções de IA dentro de casa é caro, leva tempo, e demanda a busca por profissionais como cientistas de dados. E pode não funcionar, já que não é o foco principal dos negócios. As startups entregam sistemas prontos, com as particularidades brasileiras — diz Monte, da Torq.

Para o setor financeiro, o atendimento com IA vem sendo considerado pelo mercado como um ponto de virada tecnológica, com possibilidade de oferta de crédito com menor risco, cobrança com mais eficiência, o que reduz o calote.

Em outros segmentos também há vantagens. No varejo, é possível gerir o estoque e a logística com mais precisão, e o atendimento personalizado ajuda a aumentar vendas. Na área de seguros, os especialistas veem a chance de oferecer produtos mais precisos, de acordo com o tipo de risco do segurado. Na área de telemedicina, a IA pode indicar medicamentos mais eficientes.

Formulário por voz

No Brasil, a ferramenta Sofya é capaz de estruturar dados médicos, interpretar diagnósticos de exames e auxiliar em decisões clínicas complexas com auxílio de IA, permitindo que médicos reduzam em mais de 40% o tempo no preenchimento de formulários, através de voz, e elevem o nível de precisão e personalização nos cuidados com os pacientes.

Qualquer instituição de saúde pode aderir à ferramenta. Fundada em 2021, a Sofya foi a primeira startup a ser incubada pelo núcleo de inovação do Hospital Sírio-Libanês.

— Já existem inúmeros fluxos de cuidados na saúde impulsionados pela AI, desde o administrativo e melhor eficiência no controle dos custos médicos, até segurança do paciente e protocolos de cuidado — diz Igor Couto, fundador e CEO da Sofya.

A startup brasileira 0xCarbon iniciou suas atividades neste mês oferecendo dois produtos a empresas que atuam com ativos digitais, especialmente o Drex, a nova moeda digital brasileira, automatizando processos financeiros: uma aplicação de IA generativa e uma carteira de custódia de ativos digitais, com garantia de privacidade e segurança de dados, com tecnologia blockchain.

O treinamento dos algoritmos foi feito em português “do Brasil”, refletindo os traços culturais do país, explica Fabio Canesin, um dos fundadores da 0xCarbon. O processo consumiu investimento da ordem de R$ 5 milhões e contou com investidores-anjo.

— A IA foi treinada com base em leis brasileiras, português local, questões históricas do país, o que permite que o sistema, batizado de Zeca, responda como alguém local, com traços culturais locais — explicou Canesin, lembrando que a startup já existia há dois anos e meio e vinha desenvolvendo ferramentas de IA internas.

Resposta em documentos

Ele diz que o modelo faz uma interface com sistemas da empresa interessada, que paga cada vez que usar o sistema.

Há quase uma década no mercado brasileiro e trabalhando com IA antes mesmo da chegada do ChatGPT, a Nama desenvolveu uma ferramenta para entender o que o usuário precisa em termos de atendimento com assistente virtual (os chatbots), com linguagem natural (e não a formal usada pelos sistemas de computadores).

Rodrigo Scotti, fundador da Nama, lembra que o sistema consegue entender além do que foi ensinado inicialmente, usando modelos matemáticos para extrapolar:

— Isso evita a necessidade de treinamento com cada expressão do português e o que aquilo significa. Trata-se de um novo universo de compreensão da linguagem.

No departamento de Recursos Humanos de uma empresa, a ferramenta da Nama pode tirar dúvidas sobre vagas, como é o trabalho e responder perguntas buscando respostas em documentos, sem treinar o sistema com parâmetros novos.

A empresa já tem 15 clientes, como Unimed, Sicredi e o laboratório Aché, que podem ter acesso mensal ou pagar a cada vez que usam. A Nama teve investimentos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), empresa pública de fomento à ciência e tecnologia. E os sócios reinvestem na empresa, que já recebeu aportes de R$ 10 milhões.

FONTE:

https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2024/04/21/startups-ja-oferecem-produtos-e-servicos-de-ia-com-jeitinho-e-sotaque-brasileiro.ghtml