Startups desafiam cultura do assalariado no Japão

Trabalhadores mais jovens têm novas expectativas a respeito do risco, recompensa e responsabilidade.

Em algum momento durante o segundo ano da pandemia da covid-19, o mundo dos assalariados de carreira japoneses desviou-se de seu rumo costumeiro e deu uma guinada extraordinária — mas pouco notada. As grandes empresas deixaram de parecer necessariamente a melhor opção de trabalho; a insegurança no emprego e na carreira deixou de parecer tão aterradora.

O mundo empresarial do Japão passou a deparar com uma avalanche de mudanças em 2021. Suas empresas mais conservadoras, nas quais durante décadas as tradições, práticas de trabalho e expectativas de carreira mal haviam mudado, de uma hora para a outra se viram forçadas a se adaptar às normas de trabalho remoto, reuniões virtuais, quebras de hierarquia e ao desaparecimento do presenteísmo antes tão predominante em sua cultura profissional.

Por trás disso, entretanto, havia algo muito mais transformador em evolução. Muitos jovens trabalhadores japoneses que, diante das décadas de deflação, de estagnação salarial e de uma sensação de lento declínio nacional, haviam priorizado a previsibilidade em suas carreiras, passaram a ver com outros olhos o que uma empresa deveria oferecer em termos de risco, recompensa, incentivos e oportunidades de promoção rápida.

Empresas que até aquele ponto sentiam pouca pressão para repensar suas culturas de trabalho, uma vez que podiam confiar em sua estabilidade e tamanho para atrair os funcionários mais talentosos, se viram diante de uma nova ameaça.

Por volta do fim de 2021, mais de 20% das transições de emprego em grandes empresas no Japão se referiam a pessoas deixando-as para entrar em startups, de acordo com o grupo setorial Associação das Firmas de Capital de Risco do Japão (JVCA, na sigla em inglês), em comparação com 8% em 2018. Essa proporção continua aumentando e se aproxima dos 25%, segundo membros da JVCA.

“Não acredito que muitas empresas japonesas percebam o que está ocorrendo, porque, se percebessem, entrariam em estado de pânico”, diz uma graduada de 26 anos da Universidade Keio, atualmente negociando sua mudança de um dos maiores bancos do Japão para uma startup de tecnologia em Kyoto. “Para muitos da minha idade, as startups estão oferecendo um ambiente alternativo de trabalho — ainda há muita pressão, mas é uma pressão do tipo que você quer ter. Quando você está na universidade escolhendo um emprego, não percebe isso, mas depois de alguns anos em alguma grande empresa, [a diferença entre elas e as startups] fica óbvia.”

A mudança social, econômica e psicológica por trás desse tipo de comentário é, possivelmente, a mais significativa no Japão desde o estouro da bolha dos anos 1980, de acordo com firmas de capital de risco e as próprias startups. De maneira crucial, as novas empresas japonesas não são apenas atraentes para os talentos, mas internamente estão começando a redefinir os ambientes de trabalho de uma maneira que representa um desafio direto às grandes empresas das quais estão arrebatando pessoal.

A rigidez arraigada da hierarquia baseada na idade e a resistência a avaliar o trabalho de colarinho branco de maneira mais qualitativa — características que dominaram a cultura empresarial japonesa por muitas décadas — estão no topo da lista de queixas que podem levar os funcionários a querer sair de uma grande empresa.

“O mercado de startups japonesas é provavelmente um dos mais mal compreendidos no mundo. Houve um monte de mudanças aqui, mas grande parte dessa mudança passou praticamente despercebida”, diz James Riney, presidente da firma de capital de risco Coral Capital, com sede em Tóquio, acrescentando que o investimento em startups no Japão praticamente decuplicou nos últimos nove anos, atraindo alguns dos trabalhadores mais talentosos do país.

“O apoio aberto do governo japonês, financeiro e regulatório, não apenas facilitou o lançamento delas, mas também tornou isso algo comum”, acrescenta.

O apoio do governo, porém, é apenas um dos muitos fatores por trás da mudança, de acordo com Kathy Matsui, cofundadora do fundo de capital de risco MPower Partners, com sede em Tóquio.

“Algumas pessoas em grandes empresas japonesas vão olhar para a bola de cristal de suas carreiras e ver um caminho de promoção previsível e um pacote de remuneração previsível. Cada vez mais, você encontra pessoas dizendo ‘isso é ok, mas não é ótimo’. Enquanto isso, em uma startup, você pode alcançar um cargo importante de imediato ou muito rápido e ter um impacto real numa empresa com retornos potencialmente muito maiores”, diz Matsui.

A Genesis Healthcare é um exemplo. O diretor de finanças da empresa de pesquisas e testes genéticos com sede em Tóquio trabalhava antes no banco de investimento Nomura e outro alto executivo veio do Banco Mitsubishi. Seus cargos na Genesis oferecem a eles maior influência sobre o futuro de uma empresa do que poderiam ter em um grande banco.

As startups também estão ampliando a lacuna salarial entre elas e as empresas tradicionais, de acordo com a JVCA. A associação constatou que o salário médio em 2022 foi 580 mil ienes (cerca de US$ 4 mil) mais alto nas startups do que nas grandes empresas de capital aberto. Dois anos antes, a diferença era de 90 mil ienes.

O mercado de trabalho do Japão, que sofre de uma falta crônica de mão de obra — uma característica da demografia de baixa taxa de natalidade e de uma população em idade de trabalho agora em declínio —, funciona como uma rede de segurança implícita e ameniza a sensação de risco de entrar em uma startup.

“Claro, há um risco em deixar o previsível para trás, mas hoje em dia está embutida na equação a ideia de que, se você fracassar, sempre poderá voltar para uma grande empresa”, acrescenta Matsui.

Outros vão mais longe e destacam que para muitos jovens trabalhadores japoneses a decisão de entrar em uma startup pode, na verdade, representar uma proteção contra o risco na carreira. Eles olham para as grandes empresas tradicionais japonesas e ficam com a impressão de que se ficarem nelas por muito tempo podem não adquirir as habilidades necessárias para desenvolver suas carreiras em um mundo cada vez mais definido pelo ritmo acelerado da mudança tecnológica.

“Portanto, muitas pessoas acham que poderiam ganhar essas habilidades numa startup. E, uma vez que você tem pessoas compartilhando desse ponto de vista em uma startup, é claro que você terá um novo tipo de cultura de trabalho surgindo em torno disso. Você tem ambientes em que há uma sensação de que eles estão fazendo algo muito diferente da forma que as gerações anteriores faziam”, diz Mio Takaoka, sócia do DNX Ventures, um fundo que financia startups japonesas e se envolve de perto com seu desenvolvimento.

Ela e outras pessoas veem paralelos entre a cultura emergente das startups no Japão em 2023 e a chegada da internet no meio da década de 1990 — um período notável tanto pela rapidez com que incentivou o lançamento de novas empresas quanto pela ferocidade com que abriu lacunas geracionais dentro das empresas.

Naquela época, as pessoas puderam criar empresas de internet porque não havia uma geração mais velha para impedi-las. Agora, porém, há uma camada similar de executivos conservadores veteranos que está frustrando os funcionários mais jovens que desejam adotar a inteligência artificial e outras tecnologias transformacionais.

Muitas firmas tradicionais se sentem forçadas a se adaptar, diz Riney, acrescentando que quase todas as grandes empresas têm um departamento de “inovação aberta” ou similar que se envolve com startups.

Ainda assim, apesar de toda a ruptura que as startups japonesas parecem estar causando, Takaoka argumenta que a cultura básica delas não tem uma intenção explicitamente desestabilizadora. Elas não buscam confrontar o establishment empresarial existente no Japão, mas sim trabalhar ao lado dele para sanar suas muitas lacunas.

“Há algum conservadorismo natural embutido aí, então não é o caso de que as pessoas estejam entrando nas startups para sacudir tudo. Elas estão entrando nas empresas porque veem isso como uma forma de construir algo que ainda não foi oferecido, provavelmente mais rápido e melhor do que poderiam construir em qualquer outro lugar”, diz Takaoka.

FONTE:

https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2023/11/22/startups-desafiam-cultura-do-assalariado-no-japao.ghtml