Startups dedicadas à mulher são a próxima grande aposta do setor de saúde

O mercado das femtechs deve movimentar US$ 50 bilhões até 2025

PRECURSORA AO FUNDAR O APLICATIVO CLUE, CALENDÁRIO MENSTRUAL, A DINAMARQUESA IDA TIN CUNHOU O TERMO FEMTECH, EM 2013 (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Reflexo de uma sociedade fundamentada no patriarcado, na história da medicina ocidental o sexo feminino sempre foi considerado um arremedo (e mal-acabado) do masculino. Tido como o “pai da patologia moderna”, o médico alemão Rudolf Virchow (1821-1902), por exemplo, definia o homem como um ser humano ligado a um par de testículos e a mulher… Bem, a mulher não passaria de um par de ovários ligados a um ser humano. Nós só interessávamos à investigação científica sob a chamada “ótica do biquíni” — quando o tema de estudo estivesse relacionado a câncer de mama, gravidez, contracepção, terapia de reposição hormonal, tumores uterinos… Coisas de mulher, em resumo.

Apesar das conquistas femininas e dos avanços nos conhecimentos médicos, até recentemente era dado como certo que, exceto pelos órgãos reprodutores, os organismos da mulher e do homem funcionavam da mesma forma. E assim o sexo masculino seguiu, por anos, décadas e séculos, como ideal para o estudo da medicina. A justificativa? Homens não engravidam, tampouco estão sujeitos à montanha-russa hormonal típica das mulheres. Somente na virada dos anos 70 para os 80 é que os velhos conceitos ruiriam.

Começou na cardiologia. Com a emancipação feminina, deflagrada pelos movimentos sociais da década de 60, as mulheres saíram de casa para trabalhar. A partir daí, ficaram sujeitas aos mesmos fatores de risco que os homens. Estresse, sedentarismo, alimentação inadequada, tabagismo… Ocorreu então a “feminização” das doenças cardiovasculares — males tidos até então como tipicamente masculinos.

Lioness é o vibrador inteligente que funciona a partir da análise de dados da mulher durante o orgasmo  (Foto: Divulgação)

O acompanhamento de mulheres cardiopatas traria à tona uma revelação ainda mais surpreendente. Elas não só padeciam do coração, como adoeciam de forma distinta. Estava aberto o caminho para uma das mais fascinantes áreas de pesquisa — a medicina de gênero. A ideia é a de que o estudo das diferenças fisiológicas entre mulheres e homens estabeleça protocolos de prevenção, diagnóstico e tratamento específicos para cada um dos sexos. A probabilidade, por exemplo, de uma mulher sofrer de Alzheimer é uma vez e meia maior do que um homem. De artrite, duas. De depressão e ansiedade, duas. De doenças autoimunes, três.

É natural que essa onda atinja também o mercado das healthtechs. Conforme dados de 2018 da Frost & Sullivan, as startups dedicadas à saúde da mulher receberam US$ 1 bilhão em investimentos, ao longo dos quatro anos anteriores. Batizadas femtechs, são apontadas como o próximo grande disruptor do setor de saúde. “Com 50% da população global como clientes-alvo e potencial de mercado de US$ 50 bilhões até 2025, chegou a hora dos fabricantes de diagnósticos clínicos, biofarmacêuticas e empresas de dispositivos médicos aproveitarem esta oportunidade de mercado”, lê-se no relatório da consultoria americana. “Existe uma necessidade iminente de as empresas de saúde entenderem o potencial de mercado das femtechs e formularem uma estratégia para segmentar, direcionar e posicionar os produtos e serviços de saúde para mulheres.” A urgência, segundo a Frost & Sullivan, explica-se:

• 80% dos gastos em casa com assistência médica são feitos por mulheres.
• O gasto per capita com saúde entre mulheres em idade produtiva é 29% maior do que entre os homens na mesma fase da vida.
• 50% dos clientes globais de saúde são mulheres.
• A elas cabem, na imensa maioria dos casos, os cuidados com idosos e crianças.
• Quase 70% das usuárias de internet procuram informações online sobre saúde.
• As mulheres são 75% mais propensas a usar ferramentas digitais para atendimento médico do que os homens.
• 80% dos profissionais de saúde são do sexo feminino. Deles, apenas 40% ocupam cargos executivos ou gerenciais.

O mercado das femtechs, as startups focadas nos cuidados da mulher,  deve movimentar US$ 50 bilhões até 2025 (Foto: Divulgação)

Tecnologias como inteligência artificial (I.A.), aprendizado de máquinabig data e internet das coisas estão a serviço do sexo feminino. Alguns dispositivos são para uso pessoal, outros facilitam a triagem de pacientes em regiões mais pobres, distantes e sem infraestrutura adequada de saúde. Um werable colocado dentro do sutiã funciona como uma bomba para tirar leite materno. Aplicativos não deixam esquecer a pílula anticoncepcional e oferecem redes de apoio às vítimas de uma série de doenças, especialmente o câncer. A calcinha inteligente substitui o absorvente, e o gadget semelhante a um absorvente interno ajuda a fortalecer o assoalho pélvico. O Lia é um teste de gravidez que se dissipa na água e, portanto, pode ser jogado na privada e sumir em apenas uma única descarga. Discretíssimo — “99% de acurácia, 0% de plástico e 100% da sua conta”, anuncia o site do produto.

Muitas femtechs estão debruçadas em pesquisas cujo objetivo é a liberação da mulher na cama. A maioria dos gadgets e aplicativos que surgem desses estudos busca levar ao autoconhecimento. À desmistificação da masturbação, em especial. Afinal, uma vida sexual ativa e feliz, segundo a Organização Mundial da Saúde, é uma aliada poderosa no combate aos piores males da vida moderna. Tão importante quanto uma rotina de ginástica e alimentação saudável, e sem tensão e cigarro.

Por meio de I.A., o vibrador Lioness, que se anuncia como a primeira ferramenta para “autoexperimentação sexual”, promete ajudar no aperfeiçoamento do orgasmo.Uma tecnologia de biofeedback retroalimenta a máquina com base em informações como a temperatura do corpo e as contrações vaginais. O aplicativo do sex toy high-tech recomenda posições e movimentos, além de ensinar o que pode acabar com o prazer. Se a mulher quiser, o aplicativo permite que ela compartilhe as análises feitas pelo vibrador — aulinha básica do que mais lhe agrada na cama. Lançado em 2013, o Lioness é vendido por cerca de US$ 230. Uma das fundadoras da femtech, a nova-iorquina Liz Klinger, conta ter crescido em uma família onde o assunto sexo sempre fora um tabu. Por volta dos 20 anos, como vendedora de sex toys para mulheres, percebeu que estava longe de ser a única que se sentia insegura e tinha muitas dúvidas sobre sexo. “Precisávamos de recursos melhores do que os existentes no mercado”, lembra Liz. Seria a inspiração para o Lioness.

A aprovação de algumas soluções desenvolvidas por femtechs por agências governamentais regulatórias abriu o caminho para suas aplicações no mercado tradicional, informa o levantamento feito pela Frost & Sullivan. Segundo a empresa de consultoria, o Ava, dispositivo indicador de fertilidade, foi o primeiro a receber o O.K. da rigorosa FDA, a agência americana de controle de alimentos, remédios e dispositivos médicos. Na Europa, o primeiro aval viria no ano seguinte, com o Natural Cycles, aplicativo para a contracepção.

A bióloga Caroline de Farias é cofundadora da Ziel Biosciences, que desenvolveu um coletor caseiro de células uterinas  (Foto: Divulgação)

No Brasil, uma das femtechs mais promissoras é a Ziel Biosciences, fundada em 2011 pela médica Daniela Cornelio e pela bióloga Caroline Brunetto de Farias. Amigas de mestrado e doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), elas desenvolveram o SelfCervix, um coletor caseiro de material para testes de detecção do HPV. O Papilomavírus humano é o principal fator de risco para o câncer de colo de útero — terceira maior causa de morte por neoplasia entre as mulheres brasileiras, com 265 mil óbitos por ano, segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca). Por meio de uma escovinha, semelhante a um aplicador de creme vaginal, as mulheres podem coletar amostras de tecido uterino, sem a ajuda do médico. Ainda em fase de pesquisas, o SelfCervix pode vir a ser uma alternativa ao Papanicolau, exame que exige a ida da paciente ao médico. A partir da escovinha coletora, Caroline e Daniela pretendem desenvolver um teste caseiro preditivo de infecções pelo HPV, a partir do biomarcador GRPR. O kit pode ser de grande utilidade em áreas onde o sistema de saúde é mais precário. Cada projeto recebeu R$ 1,2 milhão em investimentos — uma parte vinda de recursos próprios e outra de um investidor-anjo.

O termo femtech foi cunhado pela dinamarquesa Ida Tin, de 40 anos. Ela é cofundadora e CEO de uma das primeiras e mais conhecidas healthtechs para mulheres do mundo. Em 2013, em Berlim, junto com Hans Raffauf, Moritz von Buttlar e Mike LaVigne, ela lançou o Clue. O aplicativo funciona como um calendário menstrual para monitorar não só a menstruação, mas os períodos de ovulação, TPM e fertilidade. Com o dispositivo, é possível acompanhar as mudanças associadas às flutuações hormonais em cerca de 30 parâmetros de saúde, como pele, cabelo, vitalidade, humor, sono e libido. Tudo personalizado. Com 8 milhões de usuárias, em 180 países, o Clue tem entre seus investidores Union Square Ventures, Mosaic Ventures e Nokia Growth Partners, entre outros.

A proliferação das femtechs, sem dúvida, representa um avanço e tanto para as mulheres — não só na medicina. Como acontece na sociedade, a luta pela igualdade de direitos ainda está longe de terminar — também na medicina. Das empresas de saúde da lista das 500 maiores companhias da revista americana Fortune, apenas 4% dos CEOs e 21% dos diretores são mulheres. Um exemplo ainda mais perturbador do abismo entre os sexos: de tudo o que é investido em pesquisa e desenvolvimento de produtos de saúde, apenas 4% destinam-se  mulheres, segundo a Frost & Sullivan. Do valor total de investimentos, 2% destinam-se somente ao câncer de próstata, o mais comum dos tumores malignos entre os homens. A luta continua.

FONTE: ÉPOCA