A startup brasileira na corrida pelo peixe cultivado

Com o foco em 4 espécies, a Sustineri Piscis é a primeira foodtech brasileira a produzir pescado cultivado em laboratório

Imagine um futuro em que não será mais preciso pescar para comer peixe. É essa a meta da Sustineri Piscis, a primeira foodtech brasileira a produzir pescado cultivado em laboratório, processo também conhecido como aquicultura celular. A pioneira brasuca é uma das startups mundo afora que querem garantir que o consumidor possa escolher entre uma carne cultivada e outra proveniente do abate animal – sejam bovinos, frutos do mar, suínos ou aves. Por enquanto, a comercialização desse tipo de produto só foi liberada em Cingapura, mas a tendência é que mais países façam o mesmo. A inovação das startups é um ponto crucial para a evolução da fabricação de carne cultivada e sua consequente chegada no prato dos consumidores.

O The Good Food Institute (GFI) classifica a carne cultivada como uma carne animal genuína que é produzida por meio do cultivo direto de células animais. “Quando você fala peixe de laboratório, parece que você está fazendo comida de astronauta e não é isso. Na verdade, é a carne genuína de pescado produzida em laboratório, um local que não passa de uma instalação tecnológica”, reitera o biólogo marinho Marcelo Szpilman, Fundador e CEO da Sustineri Piscis, que também é o idealizador e fundador do Aquário Marinho do Rio de Janeiro (AquaRio). O primeiro hambúrguer de carne cultivada foi revelado pelo cientista holandês Mark Post na televisão em 2013. Desde então, o número de companhias atuando no setor cresceu.

Até o momento, a Sustineri Piscis trabalha com quatro espécies de peixe: garoupa-verdadeira, cherne, robalo e linguado. Todo processo começa com a biópsia de um peixe vivo, com a qual são retiradas as células que serão reproduzidas em laboratório para criar a carne. Então, entra a fase de efetiva produção do pescado por meio de um biorreator, onde as células são desenvolvidas e é alcançada uma massa proteica. O produto pode ser usado como uma espécie de carne moída e aplicado em preparos de empanados e hambúrgueres ou ser transformado em um filé.

“O maior desafio na fase inicial é conseguir a reprodução celular de forma adequada. Tivemos um resultado muito bom quando começamos a atuar com o banco de células do Rio de Janeiro. Atingir o master cell bank é um processo já conhecido, o problema é encontrar a fonte das células porque é preciso ter acesso ao peixe vivo. Estamos trabalhando com as espécies que temos acesso”, explica Szpilman.

Com a startup, Szpilman tem objetivos muito claros: proteger os peixes e criar alimentos mais saudáveis. Uma das preocupações do CEO é o declínio na população destes animais – a Garoupa-verdadeira e o Cherne estão ameaçados de extinção. Em seu site, a foodtech explica que cerca de 90% do pescado selvagem comercial está em sua capacidade máxima de exploração, mas a demanda por frutos do mar continuará a crescer 30% ao ano na próxima década. Para piorar a situação, parte dos peixes consumidos estão contaminados com metais pesados, contaminantes orgânicos persistentes, químicos tóxicos de longa duração e micro plástico.

A aquicultura celular também é uma resposta para a maior demanda de alimentos, na visão de Szpilman. “A piscicultura usa 12% dos peixes capturados no mundo todo. São peixes usados para alimentar outros peixes. Ou seja, eu estou introduzindo mais metal pesado e outras substâncias poluentes na piscicultura. O segundo problema é que a taxa de conversão ainda é 4 para um. Para produzir 1 kg de proteína garoupa, são gastos 4 kg de proteína de sardinha. Até 2050, a ONU prevê que será preciso aumentar em 70% a produção de alimentos. Essa taxa de conversão vai totalmente contra a sustentabilidade e a necessidade de produzir mais com menos”, comenta o CEO da startup.

Alguns dos benefícios da aquicultura celular são apontados pelo The Good Food Institute como benefícios de toda a indústria de carne cultivada. A organização ressalta que estudos indicam que este produto usará menos terra e água que o item convencional, além de emitir menos gases do efeito estufa e reduzir a poluição e a eutrofização relacionada à agricultura.

Uma publicação de 2020 na Nature Food indica ainda que a expectativa é que a produção comercial de carne cultivada ocorra sem o uso de antibióticos e resulte em menos incidentes de doenças transmitidas por alimentos devido à não exposição a patógenos entéricos.

O mar está para peixe

De acordo com o GFI, 18 companhias atuam com frutos do mar cultivados em laboratório no mundo. A quantidade ainda é uma fatia pequena das 99 empresas com atuação no ramo de proteína cultivada. Vale ressaltar que a lista possui lacunas e a própria Sustineri Piscis não aparece na listagem.

Antes de criar a foodtech, Szpilman já tinha percebido que existiam problemas na piscicultura, mas a inspiração veio de empresas americanas que já atuavam com a aquicultura celular. A oportunidade de atacar um problema somado ao conhecimento em biologia marinha levou à fundação da Sustineri Piscis em 2019.

O CEO dá três outros motivos para o pescado ser o melhor produto para a startup:

  • O valor de venda de alguns peixes é mais elevado do que o de produtos bovinos e de aves. No caso da garoupa-verdadeira, 1 Kg de filé limpo custa cerca de R$ 200. O consumidor já está acostumado a pagar mais caro por esse tipo de item, o que pode trazer uma maior adesão à alternativa cultivada, que ainda custa mais.
  • Há mercado para diferentes espécies de peixes. Há quem prefira Atum, outros gostam mais de Salmão. Com o processo estabelecido, a empresa pode vender diversos produtos diferentes.
  • O fator de crescimento das células do peixe é melhor que o dos mamíferos. Além disso, o pescado não precisa ser mantido a uma temperatura de 36º C durante o processo, como ocorre com células bovinas e das aves.

A californiana Finless Food também vê potencial nos pescados. A startup planeja produzir uma gama de produtos de cultura em células, de peixes a frutos do mar, mas começou seu trabalho focado no Bluefin Tuna (atum rabilho ou toro). Também atuante no ramo de produtos plant-based, a empresa fechou uma rodada série B de US$ 34 milhões para finalizar a construção de uma fábrica piloto de atum cultivado e ganhar a aprovação para a venda e o consumidor do produto, entre outras metas.

Vender os produtos lab-grown depende de alguns fatores, um deles é a capacidade de produzir os itens em escala. Na Sustineri Piscis, o objetivo é ter um protótipo de empanado de peixe entre o final de 2022 e o começo de 2023. A perspectiva é que o consumidor final possa encontrar o produto de carne cultivada no mercado entre 2024 e 2025.

Primeiro, o mercado deve receber produtos confeccionados de carne triturada, como hambúrguer e salsichas. Para o filé de peixe cultivado, o processo de desenvolvimento deve ser ainda mais demorado porque também depende da capacidade de transformar a massa proteica em uma peça 3D. O GFI explica que os alimentos mais estruturados dependem de avanços na tecnologia de scaffold, uma estrutura tridimensional que vai mimetizar a matriz extracelular natural.

“Um dos caminhos que estamos imaginando é o uso de impressoras 3D ou um processo de impressora 3D junto com scaffolding e outras tecnologias que vão surgir no mercado. É algo que demanda tempo e alguns anos ainda de pesquisa, para tornar não só real, como viável comercialmente. Não adianta você ter um produto que você não consegue vender porque é muito caro”, explica o CEO da Sustineri Piscis.

Por enquanto, o preço ainda é outro fator que torna os produtos inviáveis do ponto de vista comercial. Até o momento, a evolução é positiva já que as companhias conseguiram reduzir os preços de produção em 99% desde o desenvolvimento dos primeiros protótipos, segundo a McKinsey. A perspectiva é que a carne cultivada alcance a paridade de custos da carne convencional até 2030, caso siga a mesma trajetória do sequenciamento do genoma humano.

“Ainda é preciso investir em pesquisas para baratear a mídia, especialmente a mídia usada dentro do biorreator, que é o suco responsável por fornecer alimento para a célula se reproduzir”, diz Spilman.

A partir do momento que a criação de pescado em laboratório deslanchar, inclusive com a venda de filés, o CEO da Sustineri Piscis imagina ser possível criar biopeixarias pelo país. O estabelecimento conseguirá produzir o peixe localmente, dando acesso ao produto fresco em regiões sem litoral. A solução ainda reduz a pegada ecológica e o custo por não demandar o transporte do item.

Barreiras para o futuro

Antes de chegar no mercado, as proteínas cultivadas devem passar pelo crivo dos reguladores de cada país. No Brasil, a revisão das aplicações para a liberação dos produtos será feita pela Anvisa e o Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). De acordo com o GFI, a Anvisa está comprometida a entender os desafios de segurança alimentar e rotulagem apresentados pela carne cultivada.

“Esperamos que o Brasil assuma um processo regulatório de análise de impacto em 2022. Segundo a ANVISA, o Brasil pretende adotar um modelo semelhante ao de Estados Unidos e União Européia. Em alto nível, as empresas apresentarão primeiro uma aplicação, incluindo informações sobre seu produto para o regulador no início do processo de P&D. Então, o regulador analisará a segurança do produto, provavelmente sob os atuais quadros regulamentares dos novos alimentos”, explica o GFI no relatório “2021 Cultivated Meat State of the Industry Report”.

Em Cingapura, a comercialização de carne cultivada foi liberada em novembro de 2020, com a aprovação do uso do produto da Eat Just como ingrediente para as iscas de frango da companhia. Desde então, outros itens foram aprovados.

Tanto na Holanda quanto em Israel, os consumidores podem provar a carne cultivada. Entretanto, ainda não é possível comercializar o produto. O parlamento holandês aprovou a experimentação de carne cultivada em condições controladas em março de 2022. Já na capital Israelense, Tel Aviv, o restaurante The Chicken é uma cozinha teste para a startup SuperMeat, onde os clientes podem provar a proteína de frango cultivada da foodtech.

Nos EUA, empresas como Future Meat e Eat Just esperam receber o aval regulatório do Food and Drug Administration (FDA) e do Departamento de Agricultura ainda em 2022. Outra companhia com altas expectativas sobre o mercado americano é a UPSIDE Foods, que acabou de levantar um Series C de US$ 400 milhões – o maior aporte do setor até o momento.

Como um todo, os investimentos no setor têm crescido. Em 2021, foi aportado 1,376 bilhão em startups de carne cultivada, segundo dados do PitchBook analisados pelo GFI. O valor corresponde a 71% de todo o investimento no segmento até o ano passado e é 336% maior que o total registrado em 2019. “Se 2020 foi um ano de destaque para a indústria, 2021 solidificou a carne cultivada como uma parte dos temas de ESG e growth em um número crescente de carteiras de investidores”, afirma o relatório do The Good Food Institute.

Parte dos investimentos vêm de empresas incumbentes dos setores alimentar e farmacêutico, que têm buscado startups para se inserirem na indústria de carne cultivada. Ainda em 2018, o braço de Venture Capital da Merck participou de uma rodada de US$ 8,8 milhões da Mosa Meat.

A brasileira BRF é outra grande companhia que está de olho no setor. Em julho de 2021, a empresa anunciou o investimento de US$ 2,5 milhões na startup israelense Aleph Farms. O objetivo é ter os primeiros produtos de carne cultivada chegando ao mercado brasileiro em 2024.

“A sociedade está em transformação acelerada. A forma como a gente produz está em transformação. O nosso modelo de trabalho está em transformação. A forma como a gente vive está em transformação. Então as empresas que não acompanharem esse movimento vão decretar o seu fim. Aqui na BRF a gente quer continuar vivo”, afirma Sérgio Pinto, diretor de inovação da BRF, em entrevista à The Shift.

Ao chegar no mercado, a carne cultivada precisa ganhar o consumidor. De acordo com a McKinsey, o mercado pode alcançar a marca de US$ 25 bilhões até 2030 em um cenário de alto crescimento – com as carnes cultivadas sendo capazes de replicar uma grande variedade de cortes inteiros e processados e com vendas em várias das grandes regiões consumidoras de carne.

Em entrevista à McKinsey, Josh Tetrick, CEO e co-fundador da Eat Just, explica que existe um aspecto geracional em torno do aceite do seu produto. Com a experiência de vendas em Cingapura, ele percebeu que pessoas com menos de 30 anos não se importam em comer proteína feita em laboratório. Já os com mais de 3 décadas de vida possuem muitos questionamentos sobre os produtos.

estimativa do GFI é que, nas próximas décadas, as carnes cultivadas e outras proteínas alternativas tomem uma parte significativa da indústria de US$ 1,7 trilhão de carnes e frutos do mar convencionais. Já a firma de consultoria A.T. Kearney estima que a carne cultivada atingirá, em 10 anos, o preço médio de US$ 40/kg, o que a levaria a dominar 35% do consumo mundial em 2040.

FONTE: https://theshift.info/hot/a-startup-brasileira-na-corrida-pelo-peixe-cultivado/