Entrar no streaming em meio à maior crise do setor é uma péssima ideia, mas diante do crescimento do Amazon Prime Vídeo na América Latina, Mercado Livre não tem outra saída; disputa mostra ainda como o domínio de ‘big techs’ é risco crescente para empresas menores.

Mercado Livre entra no streaming e leva batalha do e-commerce para o conteúdo; terá de enfrentar os bilhões da Amazon e suas produções como Os Anéis de Poder, a série mais cara da história — Foto: Ben Rothstein – Divulgação
Se a Amazon tem o Amazon Prime Video e também o Freebee, seu streaming com conteúdo gratuito suportado por publicidade, parece uma boa ideia que o Mercado Livre também lance seu próprio streaming. Mas talvez não seja.
Na visão de executivos ouvidos pela coluna, o Mercado Livre vai chegar atrasado na festa do streaming. “Estão chegando numa festa em que a bebida acabou, as pessoas bonitas já estão com alguém, todo mundo está bêbado e a ponto de começar uma briga daquelas de jogar cadeiras um no outro”, resume um executivo do setor.
O mercado de streaming está saturado. Faltam espectadores e sobram prejuízos. O número de adições de assinantes para Netflix, Disney+, Hulu e Paramount caiu 87% nos últimos quatro anos, enquanto os custos não param de crescer. A greve de roteiristas e atores em Hollywood são efeito deste cenário que ainda deve piorar.
Seja como for, o plano do Mercado Livre é lançar um concorrente do Prime Video e Netflix, mas gratuito e suportado por publicidade.
Mas nem no segmento gratuito com publicidade as notícias são melhores. O valor da publicidade despencou com a disparada da oferta de canais gratuitos de streaming, particularmente no Brasil, onde as TVs conectadas se popularizaram rapidamente. Mais de 50% da população online do país (131,5 milhões por mês) são espectadores de TV conectada, segundo a Comscore.
Dezenas de concorrentes e menos dinheiro no mercado
Além da Globo, que há anos disponibiliza seu conteúdo no Globoplay com publicidade e em formatos gratuitos. Vix, Pluto, Tubi entraram no mercado brasileiro, além de uma longa e crescente lista de plataformas gratuitas de streaming. Ou seja, está longe de ser uma batalha fácil, seja lutando por assinantes ou por publicidade.
Para aumentar a briga, nesta semana o SBT lançou a TV Zyn, seu canal Fast (streaming de TV gratuito com anúncios). Em julho, a Runtime anunciou que além de filmes e séries, também passará a oferecer a Record News em sua plataforma no Brasil.
Já há mais de 60 serviços de streaming no país e os canais Fast estão se proliferando rapidamente.
O desafio do Mercado Livre não para na concorrência crescente. Produzir conteúdo premium é caro. Além disso, os direitos esportivos se tornaram um pântano no qual quem entra afunda – crescendo o número de assinantes, mas perdendo bilhões. A Netflix é a única grande plataforma que não dá prejuízo, mas também a única que não transmite esportes ao vivo. Não porque não queira, mas porque avalia os preços atuais como altos demais.
Isso não parece intimidar o Mercado Play. A plataforma contará com conteúdo da Disney+, Star+, Max e Paramount+. Basicamente, são os gigantes de streaming atolados em dívidas, e que neste momento estão cortando custos e diminuindo produções. Não surpreende que tenham topado um acordo para criar uma nova fonte de receita, já que estas plataformas veem poucas perspectivas de adicionar novos assinantes e vão oferecer majoritariamente as produções antigas, que já não atraem nem retém assinantes.
Por que o Mercado Livre vai entrar no pântano do streaming
Mas buscar uma lógica financeira para o Mercado Livre no streaming talvez não faça sentido. O movimento de entrada da empresa no streaming tem sido estudado seriamente há mais de dois anos. Apesar das dificuldades e da consciência de que devem perder dinheiro no negócio, já que os problemas do setor só pioraram nos últimos meses, a avaliação na empresa é que, caso não deem uma resposta à Amazon, correm o risco de ficar para trás
“Americanas, Magalu, Via Varejo… os brasileiros ficaram no retrovisor do Mercado Livre. A única ameaça é a Amazon”, diz o executivo de um concorrente do Mercado Play. “Por essa lógica, não ter uma oferta de streaming facilita a vida da Amazon e é isso que eles querem resolver”.
Segundo este executivo, “a Amazon largou na frente no streaming e ainda pode queimar bilhões para ganhar mercado. Então, resta ao Mercado Livre tentar ‘disruptar’ o Prime Vídeo da Amazon oferecendo seu streaming gratuito”, diz.
A América Latina é uma prioridade da Amazon que investe pesadamente para crescer em mercados emergentes. Oferecer streaming de graça talvez seja a única alternativa viável para o Mercado Livre neste momento. Ao divulgar os resultados de 2022, a Amazon revelou que suas despesas com conteúdo saltaram para US$ 16,6 bilhões em 2022, um aumento de 28% em relação aos US$ 13 bilhões em 2021.
De acordo com o CFO da Amazon, Brian Olsavsky, cerca de US$ 7 bilhões desse valor foram para investidos em produções originais da Amazon, programação de esportes ao vivo e conteúdo de vídeo licenciado de terceiros incluído no Prime. Em 2021, a Amazon gastou US$ 5 bilhões nessas três áreas de conteúdo.
A Amazon não revela quanto investe em cada título, mas estaria gastando mais de US$ 1 bilhão anualmente para ter os direitos de streaming da NFL. A série mais cara da história, O Senhor dos Anéis: Os Anéis do Poder, também é da Amazon e teria custado mais de US$ 500 milhões.
Por que a Amazon gasta em conteúdo?
Há quem defenda que pelo tamanho do gasto a Amazon ela deveria ganhar muito mais prêmios. Mesmo assim as produções da empresa receberam 68 indicações ao Emmy Award deste ano, incluindo três indicações na categoria Outstanding Comedy Series para The Marvelous Mrs. Maisel. Jury Duty, da Freevee (plataforma gratuita da Amazon), e Wandinha, da MGM, também receberam indicações. Wandinha, apesar de estar na Netflix, é uma produção da MGM, estúdio comprado pela Amazon ano passado.
O Prime Video ainda adicionou mais de 40 novos originais locais e eventos esportivos ao vivo. Medellín (França) e My Fault (Espanha) se tornaram os títulos originais locais em língua não inglesa mais assistidos na história do Prime Video fora de seus territórios de origem.
A nova programação global também incluiu Deadloch (Austrália), Caravana das Drags (Brasil), The Gryphon (Alemanha), Dahaad (Índia), Takeshi’s Castle (Japão), De Viaje con los Derbez Season Three (México) e Gangs of Lagos (Nigéria). Produzir localmente é uma estratégia cada vez mais adotada por empresas de streaming para “roubar” o público da TV e ganhar novos usuários.
A Amazon é o gorila do e-commerce e também do streaming, bater de frente com ela não é uma boa ideia. Mas o Mercado Livre não tem escapatória. A Amazon também está aumentando sua aposta em sistemas de pagamento, incluindo leitores em suas lojas nos Estados Unidos capazes de le a palma das mãos para realizar pagamentos, sem a necessidade de qualquer celular ou objeto por parte do usuário.
Potencialmente, é uma futura ameaça ao Mercado Pago, o banco digital do grupo tem crescido na adquirência e expandido a oferta tanto para o ambiente físico quanto para clientes de maior porte. A empresa calcula ter 5,5% de participação de mercado como credenciadora.
Não existe área em que qualquer empresa esteja presente que uma big tech não possa entrar cedo ou tarde.
O que diz o Mercado Livre sobre o Mercado Play
Questionada sobre chegar atrasado à guerra do streaming, a empresa afirmou por meio de sua assessoria de imprensa que o Mercado Play não chega para fragmentar ainda mais a oferta de plataformas de streaming.
“Ao contrário, somos um multiplicador para o segmento, porque criamos uma nova janela de distribuição de conteúdo de parceiros de streaming, escalando o alcance para os mais de 100 milhões de usuários do Mercado Livre na América Latina”, diz o comunicado.
Ainda segundo a empresa, “em um cenário em que existe uma sólida oferta de serviços de streaming pagos e, por sua vez, o contexto macroeconômico da América Latina muitas vezes limita o acesso a eles, acreditamos na importância de oferecer conteúdo de qualidade para nossos usuários, com benefícios e descontos, e até de maneira gratuita”.
Sobre um possível diferencial competitivo do Mercado Play, a empresa afirma que “ao contrário de outras plataformas de streaming gratuitas, o Mercado Play traz conteúdos selecionados e uma curadoria feita exclusivamente para os mais de 100 milhões de usuários do Mercado Livre”.
Curadoria para 100 milhões de usuários? A Warner Bros. Discovery, dona do HBO Max e Discovery+ tem 95.8 milhões de assinantes somando todos os seus serviços. Ou seja, na prática, o que o Mercado Livre tentará fazer é gastar menos e melhor que a Amazon. Além disso, nesta escala os executivos talvez descubram que na verdade estão no jogo de lançar blockbuster e conteúdo exclusivo, o que aumentaria consideravelmente os custos.
Esta não é a primeira iniciativa do Mercado Livre no streaming. Desde 2021, o Mercado Livre oferece em sua assinatura nível 6 o acesso ao Disney+ e Star+. O combo Disney+ e Star+ custa R$ 55,90 no Brasil. Já a assinatura nível 6 é vendida por apenas R$ 17,99 no site do Mercado Livre. Mas agora o plano é mais ambicioso: o produto é gratuito para qualquer usuário do Mercado Livre.
Outro diferencial apontado pelo Mercado Livre parece pequeno em vista da maturidade do mercado de streaming. “Ressaltamos que o Mercado Play é uma plataforma de conteúdos que estará disponível no Mercado Livre, tanto para dispositivos móveis como para desktop, não sendo necessário um aplicativo ou site extras”.
O que são ‘frenemies’ e por que ‘big techs’ são inevitáveis no streaming
Existe, basicamente, três opções de nuvem para plataformas de streaming: Amazon, Google e Microsoft. A Netflix, por exemplo, usa a nuvem da Amazon. O Globoplay, a nuvem do Google.
Questionada sobre qual seria a nuvem usada pelo Mercado Play, o Mercado Livre disse que “essa não é uma informação pública”.
Amazon, Google e Microsoft têm suas próprias nuvens e vendem este serviço. Ou seja, quanto mais o mundo utiliza streaming, maiores as chances de que as ‘big techs’ ganhem. Isso ajuda a explicar por que todas as gigantes do Vale do Silício estão no mercado de streaming. Inclusive a compra da Activision Blizzard pela Microsoft é vista como uma chance da dona do Office aumentar sua presença no streaming de conteúdo por meio dos games.
A dinâmica do streaming favorece as grandes empresas de tecnologia, mas não o Mercado Livre, que não possui sua própria nuvem para hospedar seu streaming. A Amazon utiliza sua própria infraestrutura, o que diminui consideravelmente o custo em comparação às empresas sem infraestrutura própria.
Além disso, Amazon, Google e Microsoft concorrem por venda de publicidade com o Mercado Ads, área que vende publicidade no Mercado Livre e ficará responsável por levar publicidade ao Mercado Play. Ou seja, há boas chances do Mercado Play utilizar a tecnologia de seus concorrentes e ainda aumentar a base de dados deles.
O Mercado Livre, a exemplo de Disney, Warner, Paramount e todas as plataformas de streaming que não são de uma “big tech”, são obrigadas a contratar a nuvem de seus principais concorrentes, neste contexto são “frenemies” – junção de “amigo” (friend) e “inimigo” (enemy) .
A Amazon sempre destaca que a AWS, sua empresa de nuvem, é independente de seu braço de varejo.
Saída de executivos em áreas chave do Mercado Livre
Sobre o valor do investimento ou quantos anunciantes já fecharam acordo para estarem na nova plataforma de streaming, o Mercado Livre não informa. Mas chama atenção que na semana seguinte ao anúncio do Mercado Play, duas lideranças importantes para o projeto tenham deixado a empresa.
Primeiro, foi Fabiana Manfredi. Ela deixou a posição de diretora sênior do Mercado Ads após dois anos na companhia. Fabiana foi substituída por Fernando Rubio, VP do Mercado Ads para a América Latina, que assumiu interinamente a cadeira neste período de transição.
Outra surpresa foi a saída do executivo-chefe-financeiro (CFO) do Mercado Livre, Pedro Arnt, que deixou a posição após 24 anos na empresa. Martín de los Santos o substituirá na posição. Arnt era o CFO do Mercado Livre há 12 anos.
O dilema do Mercado Livre e de qualquer empresa que se aventura no streaming é que os custos são imensos e os resultados cada vez mais incertos. Há cerca de três anos sugeri em uma séria de colunas que o Mercado Livre e o Magazine Luiza deveriam lançar suas próprias plataformas de streaming. Mas eram outros tempos.
Os juros subiram nos últimos meses e o streaming se tornou saturado. Obviamente o Mercado Livre, que não deixa de ser uma ‘big tech’, tem dinheiro para jogar fora e copiar a Amazon.
Momento favorável para empresas de tecnologia
O Mercado Livre teve forte crescimento no segundo trimestre, contrariando a tendência mais ampla no setor de comércio eletrônico. A receita geral aumentou 57,2%, superando as estimativas de US$ 3,4 bilhões. O volume bruto de mercadorias (GMV) aumentou 47,2%, para US$ 10,5 bilhões, acelerando em relação ao primeiro trimestre, enquanto o volume total de pagamentos quase dobrou, saltando 96,6%, para US$ 42,1 bilhões, mostrando que seu negócio de pagamentos digitais continua forte.
O entusiasmo do Mercado Livre no streaming vem acompanhado pelo momento positivo do “valuation” da empresa. Após perderem dois terços de seu valor no ano passado, as ações da plataforma de e-commerce já subiram mais de 60% neste ano.
Mas vale lembrar que as valorações das empresas de tecnologia têm sido apontadas como exuberantes por diversos analistas. Será interessante acompanhar como a gigante latina de e-commerce se comporta no streaming, um mercado que levou Disney e Warner à lona e no qual até gigantes como Apple e Amazon têm dito que vão seguir com cautela.
Já os 100 milhões de usuários do Mercado Livre agradecem. Quanto mais oferta de conteúdo, melhor. Mas isso não significa que será um bom negócio. No streaming, cedo ou tarde a conta chega e as empresas dominantes têm aumentado rapidamente os preços das assinaturas, por exemplo.
Nada impede que o Mercado Livre futuramente aumente seus preços caso se torne dominante na região.
Monopólio das ‘big techs’ ou mera concorrência?
Quando uma gigante regional como o Mercado Livre, a exemplo dos conglomerados de mídia tradicional como a Disney e Warner, tenta concorrer com as “big techs”, é reaberta a discussão sobre até que ponto é saudável termos empresas tão dominantes.
A entrada do Mercado Play na América Latina pode inviabilizar o negócio de diversas empresas de mídia que direta ou indiretamente concorrem pela atenção do público. O Mercado Livre, como as “big techs”, não tem o conteúdo como negócio fim, ele é apenas um meio de atrair usuários. Se surgir algo mais barato para fazer isso, essas empresas irão adotar.
Além disso, hoje, é virtualmente impossível operar um streaming sem usar a nuvem de uma “big tech”. Da mesma maneira, é quase impossível competir com Google, Amazon e Apple se eles decidirem investir em um segmento de negócios. Em uma escala regional, o mesmo se dá com os potenciais concorrentes do Mercado Livre na América Latina. Avaliada em mais de US$ 60 bilhões, só ficaria atrás da Petrobras (US$ 88,8 bi) na bolsa brasileira. O Magazine Luiza vale menos de US$ 4 bilhões.
As empresas com mais dinheiro em caixa em 2022, segundo dados da Moody’s, foram Apple, Meta, Amazon, Microsoft e Alphabet (dona do Google). “Você soma os 10 a 12 principais players de tecnologia e é um trilhão de dólares em dinheiro”, disse Dan Ives, analista da Wedbush à CNBC.
A Amazon no primeiro trimestre deste ano estava sentada em uma pilha de aproximadamente US$ 70 bilhões de investimentos de curto prazo, incluindo títulos de dívida e ações de outras empresas.
Os varejistas brasileiros talvez não sejam páreo para o Mercado Livre. Agora, o Mercado Livre precisa provar que é páreo para a Amazon, e o Mercado Play é sua aposta.
FONTE:
https://valor.globo.com/opiniao/guilherme-ravache/coluna/sem-alternativa-mercado-livre-entra-atrasado-na-guerra-do-streaming-e-tenta-frear-amazon.ghtml