Segurança nas ruas: câmeras e grupos de vigilância criam cenário de ficção científica

Empresas aperfeiçoam serviços com novas tecnologias e inteligência artificial, mas podem esbarrar em questões éticas.

As câmeras da CoSecurity que fazem o “corredor comercial seguro” da Gabriel Monteiro da Silva, em suas versões poste e compacta — Foto: Fernando Martinho/Valor

Postes azuis com três câmeras, dispostos no recuo de edifícios comerciais ou residenciais, olham para a frente, para um lado e para o outro da rua. Captando imagens que são enviadas para uma central única de segurança 24 horas ao dia, os equipamentos são um reforço recentemente adotado na alameda Gabriel Monteiro da Silva, rua de comércio de design e decoração na zona oeste da capital paulista.

Quando, há mais de 60 anos, a ativista urbana Jane Jacobs (1916-2006) escreveu que um dos fatores para cidades seguras era que houvesse “olhos para a rua”, ela talvez não pudesse prever que esses olhos fossem ser artificiais.

A canadense de nascimento é autora de um livro hoje clássico, “Morte e vida das grandes cidades”, no qual resumiu seu pensamento. “É uma coisa que todos já sabem: uma rua movimentada consegue garantir a segurança; uma rua deserta, não”, escreveu.

Os “olhos para a rua” eram o segundo dos três mandamentos interdependentes – o primeiro, demarcação clara entre público e privado; o terceiro, movimento em todas as horas do dia. “Ninguém gosta de ficar na soleira de uma casa ou na janela olhando uma rua vazia.”

Na falta do movimento que conquiste olhos interessados, há que pagar quem se disponha a vigiar a via pública. É o que fazem as câmeras da Gabriel Monteiro da Silva. Elas foram instaladas pela CoSecurity, startup nascida originalmente como um braço da Haganá, gigante da segurança privada que hoje está entre seus investidores.

Ao longo de 3 km da rua nos Jardins, foram colocados tanto postes com três câmeras, os chamados totens, no recuo das lojas, quanto um equipamento mais compacto, com duas, fixado em muros. O conjunto foi divulgado à imprensa pela associação de 120 lojistas e pela CoSecurity como “corredor comercial seguro” e “a maior rede de câmeras interligadas do país”.

Chen Gilad, CEO da Haganá e cofundador da CoSecurity, estima que, na cidade, a startup tenha hoje 1.200 câmeras instaladas, em bairros de alta renda, como Higienópolis, Moema e Vila Nova Conceição.

Todas as imagens são enviadas para a central da Haganá, onde 16 pessoas, que devem se tornar 32 em breve, monitoram o material. Na base de cada equipamento, há também um código QR que permite comunicação imediata com essa central, adicionando aos olhos artificiais também um caminho para o que olhos humanos vejam nos arredores.

A câmera aprende com o tempo – pode distinguir que, num certo dia da semana, uma aglomeração é normal pois há uma feira livre

Em caso de ocorrência ou suspeita, a central entra em contato com a polícia pelo 190. É algo que qualquer pessoa pode e deve fazer diante de um possível delito, mas, diz o executivo, muita gente não faz.

Ele frisa a utilidade pública de seu serviço, que atende não só a quem o contrata. Diz que as imagens, que ficam armazenadas por sete dias, já ajudaram a encontrar cachorro perdido, prender ladrão de relógio e até a desvendar um assassinato de uma pessoa em situação de rua na Barra Funda que, diz o executivo, a polícia nem sabia que havia acontecido.

Enquanto uma câmera privada única, colocada em um edifício, capta apenas o que está acontecendo no seu pequeno âmbito, um sistema interligado permite que se detecte a ação de forma mais completa, argumenta Gilad. “Quando acontece o assalto, a gente não vê mais só aquele segundo, vê 500 metros para a frente e para trás.”

As câmeras são dotadas de inteligência artificial. Os algoritmos, diz Gilad, “ainda não estão no nível de ficção científica que a gente gostaria”, mas permitem captar movimentações estranhas e, nesses casos, a câmera emite um pop-up na tela da central, analisado pelos olhos humanos.

Exemplos de fatores incomuns seriam uma pessoa correndo ou uma aglomeração de pessoas. A câmera, explica, “vai aprendendo com o tempo” – pode, assim, distinguir que, num certo dia da semana, aquela aglomeração é normal pois há uma feira livre.

No caminho da “ficção científica”, Gilad diz que a empresa começou a fazer testes com drones, que, ao comando da câmera, podem voar até o local e ver de perto o fato estranho. “São coisas que vão acontecer nos próximos dez anos, mas, para que aconteçam, a gente precisa começar a construir uma infraestrutura hoje”, diz, acrescentando que mesmo a legislação atual teria de ser adaptada para esse tipo de evolução.

Algo mais simples, porém, tem muito efeito, de acordo com o executivo – a ostensividade visual do sistema, que faz com que “o bandido resolva ir para outro lugar”.

“A gente aqui é bem ligado no design e tentou mudar a cor do poste”, admite Jander Ferreri dos Anjos, presidente da associação dos lojistas da Gabriel Monteiro da Silva. Segundo o comerciante, a empresa explicou que ser chamativo era crucial. De noite, os equipamentos têm uma iluminação de LED, para que continuem visíveis.

Polícia destaca o programa Vizinhança Solidária, em que um grupo de residentes ou proprietários de estabelecimento se articula para vigiar

O lojista afirma que a preocupação da associação foi, por muito tempo, a zeladoria da rua. Mas pensar mais em segurança faz sentido num contexto em que a Gabriel Monteiro da Silva quer ser vista como um shopping a céu aberto.

Pesquisa realizada em 2018 pelo Serviço de Proteção ao Crédito e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas detectou que 56% dos consumidores se sentiam mais seguros comprando em shoppings.

Embora não tenha estudos semelhantes, a Abrasce (Associação Brasileira de Shopping Centers) demonstra, com um dado, o peso desse aspecto para o setor. O gasto anual em meios físicos e tecnologia para segurança é de R$ 5 bilhões, algo na ordem de R$ 670 mil ao mês por shopping – eram 620 em 2021. Não há uma coordenação única de ações de segurança, e os principais grupos de shopping centers do país, procurados pela reportagem, não quiseram comentar políticas específicas.

A Abrasel, que representa outro setor muito visado, o de bares e restaurantes, tampouco tem uma ação concertada entre os associados, mas chegou a recomendar o uso em épocas nos quais restaurantes eram “vítimas preferidas de quadrilhas”, segundo o advogado Percival Maricato, diretor institucional da entidade em SP.

Ele diz que, diante de uma realidade em que só 15% das famílias têm renda de mais de R$ 4 mil, pensar em justiça social “não é só um problema de sensibilidade e de ética, é um problema de inteligência”. A associação faz cursos para treinar jovens que queiram trabalhar no setor. Gastar em educação é economizar em segurança, defende.

Mesmo bairros com vida noturna agitada e gente na calçada a toda hora, como é caso de Santa Cecília, não têm escapado dos crimes. Casos recentes de arrastões em bares da região assustaram os frequentadores.

Dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo em dezembro passado indicaram que Santa Cecília teve os maiores números desde o início da série histórica, em 2002.

Celulares, alvo principal de ações como os arrastões em bares, são uma mina de ouro para os ladrões, pelo acesso a dados, inclusive bancários. De posse de senhas salvas em drives e caixas de email, ou com hackeamento, os criminosos fazem a limpa nas contas, criando um pesadelo entre clientes e bancos.

A Febraban afirma que os bancos “estão constantemente preocupados com a segurança de clientes e funcionários e têm adotado ações de conscientização sobre segurança e prevenção a fraudes”.

Nesse âmbito, estão a orientação e treinamento de funcionários para observar e identificar “pessoas suspeitas, que permanecem na área de atendimento ao público sem realizar qualquer serviço bancário”, que poderiam ser “olheiros”, além de ações com órgãos policiais para intensificar as rondas nas imediações de áreas com agências bancárias.

O olho na rua é uma preocupação que não necessariamente tem a ver com o número de registros policiais numa determinada região. A própria alameda Gabriel Monteiro da Silva, frisa Jander Ferreri, não é um lugar perigoso.

“Em conversas, a polícia sempre traz que, de um ponto de vista estatístico, a gente está numa das regiões mais seguras da cidade”, diz ele, complementando que, mesmo sem dados que justifiquem o atual investimento dos lojistas, pesa a percepção dos clientes.

Ele desconfia que essa percepção não se reflita nos dados policiais por um motivo levantado pelas próprias autoridades. “Eles sempre argumentam que, em boa parte dos assuntos, não são registradas ocorrências.”

“Nossa fonte de dados é o 190, só consigo planejar o policiamento com base nas ocorrências registradas”, corrobora, em outra conversa, o capitão Dilermando Cesar Silva; “por vezes temos a subnotificação de crimes”. Ele é chefe da seção de Estratégias de Polícia Comunitária, parte de uma diretoria dedicada desde 2008 ao tema e aos direitos humanos, dentro da PM de São Paulo.

Ele explica que o conceito de polícia comunitária está em crescimento. A força nasceu em 1831, diz o capitão, “com um condão comunitário”, mas a primeira medida a institucionalizar esse aspecto foi a criação, em 1986, no governo de André Franco Montoro (PMDB), dos Conselhos Comunitários de Segurança, os Consegs, que fazem a ponte da comunidade com as autoridades policiais.

A Polícia Comunitária veio anos depois, em 1997, inspirada na experiência que o Japão põe em prática desde 1868. O discurso de Dilermando é por “criar uma cultura de paz”. “A segurança não pode ser vista como algo repressivo.”

Dentro da visão de segurança como responsabilidade compartilhada, o policial destaca o programa Vizinhança Solidária (PVS), em que um grupo de residentes ou proprietários de estabelecimento se articula para manter, na rua (ou quadra, ou bairro), olhos humanos.

Cada grupo tem um tutor, que concentra registros, como imagens de câmera, quando é preciso notificar as autoridades. É uma “ferramenta de polícia comunitária que tem como cerne promover a mudança de cultura de pessoas”, descreve o policial.

Ter um vizinho de confiança a quem informar quando vai viajar e alertas em grupo de WhatsApp são práticas estimuladas no programa. Os imóveis participantes são identificados por uma placa padronizada, informando que aqueles arredores são vigiados por todos. O PVS tem 1.665 núcleos na capital e 2.433 no interior do estado. Dos 645 municípios paulistas, 380 adotam o programa, segundo dados da SSP.

Os núcleos são pequenos, explica o capitão, porque “só o morador conhece os problemas daquele espaço”. Câmeras e grupos de mensagens, diz ele, são “acessórios ao programa”, mas o principal material são as pessoas. “Não adianta eu colocar a plaquinha do PVS lá e achar que tudo vai acontecer num passe de mágica.”

Há diferentes maneiras de instalar o programa em uma comunidade, que pode ser o bairro residencial, a região do trabalho ou um ambiente escolar. Os interessados podem buscar orientação na companhia de polícia local, um tutor ou, ainda, através do Conseg correspondente. Residentes da região onde se insere a alameda Gabriel Monteiro da Silva, os Jardins, adotam o PVS.

“Câmeras não resolvem o problema sozinhas”, diz o jornalista Fernando Sampaio, presidente da AME Jardins, associação dos moradores locais. “Na realidade, a solução vem de um conjunto de atitudes”, embora veja o registro de imagens das câmeras como um avanço. “Minha maior dica é ‘liga no 190’. O cidadão tem que ajudar a segurança chamando a polícia.”

Sampaio conta que a área coberta pelo PVS no âmbito da AME tem 75 ruas, cada uma com seu tutor. Essa distribuição serve para driblar o fato de que, numa região estendida, é mais complexo instalar um sistema único, como fizeram os lojistas da rua próxima, devido às diferentes formas de atuação e de valores. “As imagens não estão todas com a mesma empresa, mas tem sempre um tutor que sabe como conseguir essa imagem para você.”

Na rua em que ele mora, a Sampaio Vidal, de 80 casas, 30 optaram por contratar um serviço de câmeras da mesma empresa. Ele próprio não foi um entusiasta de primeira hora da vigilância constante, mas se convenceu. “Querendo ou não, a gente está sempre sendo visto por alguém.”

A empresa contratada na rua de Sampaio foi a Vektran, fundada há 12 anos por Marcelo Cortelazo, que migrou do ramo da tecnologia para o da segurança. Ele hoje contabiliza cerca de 400 postes instalados na cidade, a maioria nos Jardins. Oito anos atrás, começou a fechar instalações em grupos de rua. “O Vizinhança Solidária já existia. Participei de algumas reuniões, entendi a necessidade e imaginei [o serviço].”

As câmeras de Cortelazo, de forma semelhante às da CoSecurity, miram a calçada. A principal diferença é que as imagens ficam armazenadas por 15 dias, mas não há uma central. Seu sistema depende mesmo da comunidade. Cada poste tem seu ponto de gravação, e cada instalação tem um hospedeiro que guarda, secretamente, esses registros.

O visual dos postes também é mais discreto. Pintados de preto, eles têm holofotes de LED para a noite, a fim de “chamar a atenção sem fazer grandes estardalhaços”.

Outra diferença é a forma de contratação do serviço. A CoSecurity cobra uma assinatura; já a Vektran vende a instalação e oferece pacotes de manutenção do equipamento. Um poste, com toda a instalação, custa R$ 11.800, com manutenção anual – que não é obrigatória, mas recomendada – de R$ 1.200.

O sistema de Cortelazo consegue ler dados como placas de carro, mas os serviços de inteligência artificial ainda são apenas objeto de estudo, para no futuro permitir treinar suas câmeras para avisar em certas situações, como grupos à noite em ruas pouco movimentadas, ou a criar “cercas virtuais” – “a partir de tal horário, se parar um carro ali, ela gera um alerta”.

Chen Gilad, da firma concorrente, sublinha os benefícios da inteligência artificial para o lado do negócio. Como seu serviço é por assinatura, ele calcula que possa levar até três anos para um poste se pagar. “Quando você tem uma cidade toda monitorada, vou poder vender [a informação] para uma operadora de seguro”, imaginando que os registros por suas câmeras possam ser usados para esclarecer acidentes, por exemplo.

Esse é um dos aspectos da hipervigilância que Giselle Beiguelman, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, destaca como preocupantes.

“A primeira imagem que me vem é uma que era filosófica e virou senso comum, aquele texto muito curto do [Gilles] Deleuze sobre a sociedade de controle. Ele fala que chegaria um tempo em que você não precisaria mais de estruturas de controle do poder central, como era o caso do panóptico, um ponto de vista que governa todos, porque a vigilância se tornaria capilar e todos controlariam todos o tempo todo.”

Beiguelman, que, em suas pesquisas como docente e artista visual, estuda as camadas de informação e o engajamento individual no espaço público, conclui que sistemas como o da CoSecurity são “a sociedade de controle ao vivo” como preconizada pelo filósofo francês (1925-1995), que adiantou que o confinamento daria lugar ao controle contínuo e à comunicação instantânea.

“O perigo é que os sistemas de inteligência artificial trabalham com alguns padrões”, recorda ela, de tal modo que indivíduos se tornam potencialmente visados pela observação de determinados gestos ou trajetos.

“Eu costumo dizer que a inteligência artificial está criando um modelo de Cesare Lombroso 2.0. Você ainda não cometeu o crime, mas você pode cometer; tudo indica que você cometerá”, diz Beiguelman, aludindo ao italiano pai da antropologia criminal (1835-1909), criador de uma controvertida técnica de prever, por traços físicos e psicológicos, a possibilidade de uma pessoa ser um delinquente nato. Beiguelman não deixa de advertir que “muitos estudos mostram a incidência de erros com pessoas negras”.

Inteligência artificial não é reconhecimento facial, argumenta Chen Gilad. Esta última “está sendo pensada para detectar movimentos incomuns, como uma mota em cima da calçada, um carro na contramão, aglomeração de pessoas”, sublinha o empresário. “Pessoas andando e de repente correndo são comportamentos que independem de grupos específicos da sociedade.”

Beiguelman indaga ainda sobre o que podem fazer, já a esta altura, as câmeras dotadas de inteligência artificial. “É uma imagem videográfica ou já pega coordenadas, tem espectro termal, tracking de movimento?” E, continua, “uma vez que essas imagens são apagadas, o que fica no servidor? Porque, para ele ser inteligente, tem que ficar aprendendo o tempo todo, não vai jogar fora aquilo que ele viu” – como admite o próprio Gilad.

“Não deixa de ser invasivo, porque a pessoa que está andando na rua não está sabendo que está numa malha”, argumenta a professora. “Ela não está gravando você, está gravando você, seu contexto, seu horário, seu deslocamento.”

Gilad rebate, lembrando a existência da Lei Geral de Proteção de Dados, que impõe limites para o uso da informação coletada. As câmeras, diz ele, acumulam dados mais amplos, como o número de pessoas circulando numa via, eventualmente quantos são adultos, quantos são crianças. Elas “não se concentram na identificação de nenhum dado pessoal”, frisa ele.

FONTE: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2023/02/10/seguranca-nas-ruas-cameras-e-grupos-de-vigilancia-criam-cenario-de-ficcao-cientifica.ghtml