Rosalina Fonseca: “Poderemos eliminar memórias traumáticas”

Estudou biologia, fez investigação na Alemanha e recentemente tirou medicina. Aos 39 anos, a cientista, actualmente no Instituto Gulbenkian de Ciência, quer descobrir o que se passa no cérebro das pessoas com stresse pós-traumático.

E se fosse possível apagar tudo o que nos traz más recordações e nos faz sofrer? Nos próximos dois anos, a cientista Rosalina Fonseca vai tentar perceber o que acontece à memória das pessoas com stresse pós-traumático e, com isso, potenciar novos tratamentos. No laboratório do Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras, onde trabalha, falou com a SÁBADO sobre o projecto e sobre as mudanças que a doença provoca no quotidiano dos doentes – alguns não conseguem sair de casa.

Recebeu uma bolsa de 70 mil dólares (cerca de €65 mil) da Brain & Behavior Research Foundation dos EUA, para estudar a memória de pessoas com stresse pós-traumático. O que acontece no cérebro? 
Num processo normal, as memórias atenuam-se com o tempo. Quando me encontro com um amigo, por exemplo, essa memória fica codificada no meu cérebro mas a tendência é que me vá esquecendo disso. Nos casos de perturbação de stresse pós-traumático (PSPT), este processo de diminuição ou atenuação da memória não acontece e as pessoas revivem constantemente o evento traumático. O objectivo desta investigação é perceber, ao nível celular, o que se altera.

De que casos estamos a falar?
Por exemplo de uma pessoa que esteve na guerra e vive atormentada com isso. Tem reacções exacerbadas a coisas neutras: vai na rua, ouve um carro a passar e esconde-se atrás de um arbusto. Alguns têm ataques de pânico, não conseguem sair de casa, ter um trabalho e relacionar-se com os outros. Outros recorrem a comportamentos aditivos – álcool, por exemplo. Se entendermos o que lhes acontece, poderemos interferir com este processo e eventualmente eliminar as memórias traumáticas.

Normalmente associamos a PSPT a veteranos de guerra, mas este problema é extensível a outras situações. Quais? 
A definição de evento traumático não é igual para todos. De forma geral, põe em risco a integridade física do indivíduo ou de indivíduos que lhe sejam próximos. Pode ser um desastre natural (sismo, tsunami), um ataque terrorista, um assalto, etc.

O que é comum é a alteração de funcionamento da memória. 
Sim. Uma coisa é dizer: vou voluntariamente recordar o que se passou. Nos indivíduos com PSPT essas memórias aparecem de forma intrusiva, com sentimentos associados. É altamente disfuncional. Ao longo do tempo, se não houver tratamento, a frequência desses momentos aumenta. O número de estímulos do ambiente que provocam essas lembranças também.

De que forma é que esta perturbação altera o comportamento?
Tal como na perturbação de ansiedade generalizada, há um aumento do número de estímulos que induzem uma resposta exacerbada. Imagine uma pessoa que fica stressada por falar em público. Se de-senvolver uma patologia de ansiedade, ao longo do tempo, tem reacções ansiosas em situações neutras: um jantar de amigos, uma saída à noite. Isso tem a ver com o desenvolvimento de reacções patológicas em determinadas áreas do cérebro, nomeadamente a amígdala, o hipocampo e o córtex pré-frontal (muito importante nesta atenuação das memórias). Na PSPT sabe-se que a conexão entre o córtex pré-frontal e a amígdala está disfuncional.

Tentará perceber isso com animais… 
Vamos expor ratinhos a uma tina de água durante 45 segundos, um evento traumático para eles. Alguns vão desenvolver reacções mais depressivas; outros mais ansiosas. Isso também acontece às pessoas. A ideia deste projecto é fazer um perfil individual de cada animal, com a ajuda de testes comportamentais, antes e depois do evento que lhes causa PSPT. Vamos usar esse perfil para fazer estudos de fisiologia e saber o que é que mudou em termos de plasticidade sináptica [ligação entre neurónios] na amígdala, comparando com animais que não foram sujeitos ao evento traumático. Se se verificarem mudanças, podemos usar o mesmo paradigma para ver se existe uma variabilidade genética inicial que predispõe os indivíduos a ter um ou outro tipo de disfunção.

Um comportamento mais ansioso ou depressivo ? 
Sim. Há agora na clínica um movimento para tentar não classificar os doentes numa determinada patologia, mas sim para interpretar de uma forma global todos os sintomas que a pessoa tem. Isso vai resultar num perfil individual. A ideia é usar esse perfil para fazer uma melhor classificação dos doentes, mesmo em termos de diagnóstico, prognóstico e tratamento. Não se faz neste momento. Não queremos agrupar os animais, mas ter uma nuvem de distribuição de perfis comportamentais e compará-la com outra nuvem.

Conseguiremos antecipar o aparecimento da PSPT?
Se conhecermos o mecanismo que explica a patologia, chegaremos talvez a um tratamento. Evitá-lo será muito difícil. Neste momento já existem tentativas de o fazer em grupos de risco, como os militares. Numa pessoa normal não podemos fazer isso, porque não sabemos quando vai ser sujeita a um evento traumático. A pessoa vai a passar na rua e pode ser assaltada.

O que se faz com os soldados?
Usa-se uma droga chamada propanolol que diminui a probabilidade de haver um conteúdo emocional associado a uma memória.

Que doenças podem ser desencadeadas pela PSPT? 
Existe uma associação grande entre a PTST e o desenvolvimento de outras doenças psiquiátricas. A mais comum é a depressão, com uma incidência de 50%; em segundo está o desenvolvimento de perturbação de adição (consumo de estupefacientes ou álcool). Existe também uma associação forte dos síndromes de ansiedade generalizada com as doenças cardiovasculares, nomeadamente a hipertensão e a doença coronária.

Além dos medicamentos, alguns especialistas têm usado videojogos como tratamento. 
O tratamento pode envolver terapias não farmacológicas. Habitualmente a eficácia é reduzida se não for combinada com terapias farmacológicas. A ideia dos videojogos ou realidade virtual é expor os doentes a estímulos parciais que possam estar associados ao evento traumático, mas que não resultem numa evocação total do evento. O objectivo é que os doentes ajustem a sua reposta de modo a diminuir progressivamente a sua reactividade emocional.

Há investigações que sugerem o uso de medicamentos para apagar memórias dolorosas. 
Quando se percebeu que as memórias tinham esta dinâmica e que podiam ser atenuadas e até perdidas, apagadas, houve um grande investimento para tentar interferir com isso, e um dos tais medicamentos que apareceram foi o propanolol. Os resultados são contraditórios. Em alguns procedimentos, sim. As memórias pareciam perder-se. Noutros, essas memórias ficam atenuadas e voltam mais tarde, de forma espontânea. Outro resultado recente sugere o uso de estimulação eléctrica.

Como assim?
Um grupo de cientistas belgas mostrou que memórias visuais podem ser perdidas, se evocadas imediatamente antes de uma sessão de terapia electroconvulsiva. O mais interessante é que esta perda é selectiva para os acontecimentos lembrados imediatamente antes da estimulação eléctrica.

Isso levanta questões éticas.
Obviamente tem de ser tudo muito controlado. São indivíduos com memórias que têm repercussões sérias na sua vida.

Há vários anos que se dedica ao estudo da memória. A ciência já consegue explicar porque nos lembramos de umas coisas e nos esquecemos de outras? 
Ainda não temos uma resposta global para isso. Sabemos que há diferentes tipos de memórias. As declarativas são as que conseguimos invocar: o que fiz ontem?; onde jantei?. Pergunto e há uma resposta. Mas há outra classe de memórias: as implícitas. Aprendemos a andar de bicicleta, mas não evocamos de forma declarativa essa memória quando damos um passeio de bicicleta. Sabemos que quando as memórias são codificadas há determinados neuro-modeladores que as tornam mais fortes do que outras.

De que forma? 
Por exemplo, a activação da amígdala (ligada ao conteúdo emocional das memórias) leva à libertação de noradrenalina que actua no hipocampo e reforça as memórias. Outro exemplo: quando estamos sujeitos a um estímulo novo, há libertação de dopamina e essa memória torna-se mais forte. Por outro lado, se houver repetições de determinado estímulo essa memória também se torna mais forte e é mais fácil de evocar. Mas temos de ter em conta que o nosso cérebro é finito em termos de capacidade. Há um balanço entre novas coisas que vamos adquirindo, as que vamos esquecendo e as que vamos incorporando nas memórias mais antigas. De cada vez que nos lembramos de algo, essa memória fica aberta: pode incorporar novas informações do ambiente ou pode ser perdida, se não for relevante para o indivíduo e para a sua relação com o exterior.

Isso muda ao longo da vida.
Durante a maturação do sistema nervoso, o cérebro tem diferentes capacidades de incorporar informação e de a perder. Até aos 3 ou 4 anos formamos poucas memórias para a vida. A partir dos 5 anos e até aos 18, o cérebro tem grande capacidade de adquirir e perder memória. A partir de uma certa idade, coincidente habitualmente com a maturação sexual, essa capacidade diminui – não quer dizer que as pessoas não consigam aprender, depois. Aliás aprendemos com base em informações prévias. Formamos building blocs [tijolos] de forma dinâmica. Na velhice o sistema fica mais fechado. Por isso vemos idosos com capacidade de recordar memórias antigas, mas com menos capacidade de formar novas. O que tentamos desenvolver são novas terapêuticas que aumentem a dinâmica das memórias de forma controlada.

FONTE:  S- PESSOAS