Realidade virtual coloca agressores no lugar das vítimas. E eles reconhecem o medo

 

Especialistas dizem que a experiência realizada em Barcelona pode fazer sentido se for inserida numa estratégia de intervenção mais ampla. Na violência doméstica, dizem, os agressores sabem o sofrimento que provocam

Uns óculos de realidade virtual permitem que o agressor condenado por violência de género se veja no corpo de uma mulher. Após um processo de assimilação do novo “eu”, surge em cena um homem com um comportamento agressivo. Ameaça-o. Insulta-o. Atira objetos na sua direção. E o agressor percebe o que é estar no lugar da vítima, reconhece as suas emoções.

É esta a base de uma experiência levada a cabo pelo Instituto de Investigações Biomédicas August Pi i Sunyer e pela Universidade de Barcelona, cujos resultados foram publicados recentemente na revista Scientific Reports. Uma investigação que usa a realidade virtual para colocar os agressores na pele das vítimas.

“Desde 2011 que trabalhamos com 200 condenados em cursos de reincidência no Departamento de Justiça da Catalunha. E este é o primeiro estudo que usa a realidade virtual como método para trabalhar a empatia dos agressores e que melhora a capacidade de reconhecer o medo que causam”, disse ao jornal ABC María Victoria Sánchez, coordenadora do estudo.

Segundo os investigadores, os atos de violência estão relacionados com a falta de empatia e a dificuldade que o agressor tem de se colocar no lugar da vítima. Baseiam-se na dificuldade de reconhecer sensações como o medo, a angústia ou o pânico. Conclusões obtidas após um teste prévio de reconhecimento emocional, feito com agressores e um grupo de controle. Os primeiros mostraram menor capacidade para reconhecer o medo, o que mudou após a sessão de realidade virtual. Um processo que, acreditam os investigadores, pode fazer baixar a reincidência.

Destacando que não conhece a experiência, Carlos Poiares, especialista em psicologia criminal, diz que não tem dúvidas “que a realidade virtual pode funcionar e levar a melhorias em alguns casos”. Há alguns anos, conta, usou um sistema semelhante com jovens para que sentissem o que era estar na prisão. “E resultou. Teve um efeito preventivo”, destaca o vice-reitor da Universidade Lusófona.

A realidade virtual não é, no entanto, a solução para o problema da violência de género. “Isto pode ser bom do ponto de vista reabilitador, mas, em Portugal, não basta. É necessário que a justiça faça o seu papel, condenando a prisão efetiva quem agride o parceiro. Não é preciso que haja penas muito grandes, mas é necessário que a comunidade saiba que bater na mulher não goza da impunidade, que significa prisão”, alerta Carlos Poiares.

Reconhecer medo não chega

Para Daniel Cotrim, psicólogo da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) , é importante que o agressor reconheça o medo, mas não é suficiente. “É preciso também desmontar as questões subjacentes à violência, o controlo, o poder, o domínio”.

O responsável pela área da Violência Doméstica e de Género da APAV considera que o uso de ferramentas de realidade virtual para colocar o agressor no lugar do outro “poderá fazer sentido se tiver como objetivo um trabalho mais profundo de reaprendizagem de mecanismos e papéis sociais e acompanhado de apoio psicoterapêutico”.

Segundo o psicólogo, o agressor de violência doméstica tende a “ter noção do que faz à vítima, ou seja, percebe bem o efeito, a consequência, a reação às suas ações”. Atendendo às elevadas taxas de reincidência na violência de género, Daniel Cotrim salienta que é preciso “que perceba que os atos que cometeu estão errados e não podem ser cometidos”. Considera, por isso, que esta “é uma forma inovadora de trabalho, que deve ser aliada a outras estratégias de intervenção”.

Patrícia Ribeiro Faro, diretora técnica de uma casa de abrigo da Cruz Vermelha Portuguesa, diz que “o colocar-se no lugar do outro é um tema abordado na terapia com agressores”. “Há casos em que pode haver um sentimento de posse e uma falta de reconhecimento de que a pessoa que está ali tem emoções”, assume.

Contudo, a assistente social e mestre em psicologia jurídica considera que, na maioria das agressões, não há falta de reconhecimento das emoções da vítima. “Nas relações de intimidade, concorrem desigualdades sociais e de gênero. É a construção da supremacia do género masculino. Sabem bem como magoar”, frisa, destacando que a realidade virtual pode funcionar, mas “temos é de apostar na prevenção”.

FONTE: DN