Por que a inteligência artificial está afetando as relações humanas, a empatia e a solidão

A tecnologia de interação entre máquina e ser humano se aperfeiçoa e oferece conforto, mas a sensação de isolamento cresce na mesma medida.

Você passa o dia em frente ao computador, ansiando pelo momento de deixar a tela. Ao chegar em casa, você se vê sem energia para nada, além de assistir à televisão. Enquanto assiste a uma série, seus dedos correm pela tela do celular. A seu lado, outra pessoa faz exatamente a mesma coisa.

A cena, tão corriqueira, é uma das situações descritas pela psicoterapeuta belga Esther Perel ao discorrer sobre as consequências da Inteligência Artificial (IA) nas relações humanas. A sua fala roubou a cena no último South by Southwest (SXSW), festival americano de inovação, tecnologia e economia criativa.

Perel contou como soube da criação de sua versão em IA. Após terminar um relacionamento amoroso, um homem usou episódios do podcast apresentado por ela, “Where Should We Begin?”, para treinar um chatbot. Já que a Perel de carne e osso estava indisponível, a saída foi consultar-se com a máquina – e seu criador parece estar bastante satisfeito.

Segundo ele, diversas razões fazem a “Esther Perel de IA” melhor do que a original. Com acesso instantâneo a todo o conhecimento clínico e acadêmico acumulado pela profissional em 40 anos de carreira, a IA não esquece informações, não se distrai nem tem noções preconcebidas de mundo. Outra vantagem crucial: a Esther Perel de IA está sempre à disposição, à distância de um clique.

Perel, a humana, parte desse caso para propor reflexões sobre os efeitos da IA em nossas subjetividades e comportamentos. Das sugestões musicais personalizadas a indicações de quais rotas seguir, são inegáveis, diz ela, as facilidades trazidas pela tecnologia. Também não se pode desconsiderar a importância das conexões online durante a pandemia, quando os encontros presenciais ficaram impossibilitados.

Mas a especialista questiona: tecnologias cada vez mais preditivas, ao eliminarem as inconveniências do cotidiano, estariam nos tornando incapazes de tolerar os desconfortos e dilemas inerentes à vida? “Você pensaria que ter todas essas garantias na palma da mão nos faria mais confiantes, menos ansiosos, mais preparados para o desconhecido”, diz. “E se elas estiverem nos erodindo?”

Para a psicoterapeuta, também as relações são afetadas, sejam elas amorosas, familiares, profissionais. Imersos em estímulos automatizados que tiram de cena as fricções da convivência com o outro – detentor de vontades e opiniões com as quais precisamos negociar -, passamos a normalizar uma “atenção distraída”. “Essas situações em que as pessoas estão supostamente umas com as outras, mas não presentes, isso é intimidade artificial”, disse Perel.

Assim como ela, profissionais de diversas áreas têm se debruçado sobre as implicações da IA nos relacionamentos humanos. “Você começa a se relacionar com um artefato tecnológico que realiza todos os seus desejos, nunca te dá uma invertida, nunca diz ‘não’. A projeção disso para as relações íntimas humanas é uma questão”, afirma Diogo Cortiz, especialista em tecnologias emergentes, neurociência e comportamento, em entrevista ao Valor.

Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisador do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), Cortiz está à frente de um grupo de pesquisa em design especulativo que inclui recorte em intimidade artificial. O conceito é observado em duas vertentes: a criação de intimidade entre humanos com mediação da tecnologia e a interação do indivíduo com a própria máquina, atribuindo confiança e credibilidade a ela.

Segundo Cortiz, se a IA já exercia alguma influência nas relações – ao decidir quais perfis impulsionar nas nossas redes sociais ou com quem combinamos em aplicativos de relacionamento -, há agora um elemento novo. “A tecnologia começa a dominar a linguagem. Você passa a conversar com a máquina, a ter um tipo de interação mais profundo e significativo com ela, que responde de maneira muito acolhedora, afetiva”, diz.

Nesse cenário, o pesquisador aponta a tendência de o usuário antropomorfizar a relação, atribuindo agência a uma máquina que, na verdade, apenas responde a questões de forma probabilística. “A tecnologia não tem vontade. Nós, humanos, é que colocamos a máquina ali, porque a gente não conseguiu se organizar como sociedade para que a solidão não fosse um grande problema no mundo”, afirma Cortiz.

Pesquisas não faltam para corroborar o diagnóstico de que solidão é um tema na ordem do dia. Segundo o estudo “Global Perceptions of the Impact of Covid-19”, da consultoria Ipsos, em 2021, um terço dos adultos (33%) no mundo se sente solitário. O Brasil lidera o ranking dos 28 países pesquisados: 50% dos respondentes afirmaram sentir solidão, em comparação com 15% na Holanda, na última posição da lista.

Há também uma questão de saúde pública. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a solidão e o isolamento aumentam o risco de doenças cardiovasculares, derrame e diabetes entre pessoas idosas, além de potencializarem o desenvolvimento de transtornos mentais. O relatório de 2022 “World Mental Health Report”, da OMS, aponta que cerca de uma em cada oito pessoas no mundo vive com um transtorno mental, sendo ansiedade e depressão os mais comuns.

Em 2019, a OMS mapeou os custos desses dois transtornos à economia global: US$ 1 trilhão por ano. Em reconhecimento aos impactos na vida social – acentuados com a pandemia -, países como Reino Unido, em 2018, e Japão, em 2021, adicionaram o cargo de “ministro da Solidão” aos seus gabinetes, com a tarefa de desenhar políticas públicas. Em seus estudos, a OMS reconhece as intervenções digitais como potenciais aliadas nesses esforços.

Se a qualidade das nossas relações é hoje objeto de preocupação, sem ela nós não teríamos chegado até aqui. Como explica o relatório “Social Isolation and Loneliness Among Older People”, lançado em 2021 pela OMS, por milênios a sobrevivência dos indivíduos como caçadores-coletores em ambientes hostis dependeu da construção de laços fortes entre grupos unidos. “Seres humanos são fundamentalmente animais sociais”, afirma o documento.

É a partir da perspectiva evolucionista que o biólogo Rob Brooks, da Universidade de New South Wales, na Austrália, investiga a intimidade artificial. Em seu livro “Artificial Intimacy: Virtual Friends, Digital Lovers and Algorithmic Matchmakers” (2021), o autor se debruça sobre o que chama de um “novo ecossistema” de tecnologias que “atendem às profundas necessidades humanas por contato social, amizade, intimidade, amor e sexo”.

Brooks entende que ser íntimo de uma pessoa significa integrar a percepção que temos dela ao nosso próprio senso de identidade. Por meio de conversas e interações, revelamos pensamentos e vulnerabilidades cada vez mais pessoais. Nesse processo de interesse mútuo, construímos intimidade.

Mas o que acontece quando a IA entra nessa equação? Sempre que interagimos nas redes sociais, fazemos compras online, conversamos com chatbots, damos à IA os dados de que ela precisa para refinar sua “percepção” sobre nós. “Daqui em diante”, escreveu Brooks na revista “Psychology Today”, em 2021, “a maioria das descobertas sobre o comportamento humano será feita por algoritmos de aprendizagem de máquina, e não por cientistas sociais”.

O biólogo evolucionista observa consequências da intimidade artificial tanto para as relações humano-humano quanto para as interações humano-máquina. De um lado, explica, tecnologias em crescente personalização nos mantêm engajados em suas plataformas, o que representa menos tempo e capacidade cognitiva dedicados às relações offline.

De outro lado, conforme a IA aprende mais sobre as dinâmicas do nosso mundo social, aprende também como “emular” os processos por meio dos quais criamos intimidade. Se o caminho passa por sentir-se ouvido em um ambiente de acolhimento, não é difícil compreender por que alguém se entenderia íntimo de um chatbot que sabe o que dizer de acordo com o perfil do usuário.

Algumas pessoas não conseguem ou não sabem como acessar os relacionamentos que desejam ter. Há uma epidemia de solidão”
— Rob Brooks

Prova disso é o apelo da plataforma Replika, que oferece a criação via IA de uma companhia digital ao gosto do freguês. O usuário decide a natureza da relação (se romântica ou de amizade), assim como as características físicas e a personalidade do avatar. A partir daí, dá-se início à troca de mensagens por chat, voz ou vídeo. “Replika está sempre pronta para conversar quando você precisa de um amigo empático”, diz o site, que afirma ter mais de 10 milhões de usuários.

Por que cada vez mais pessoas encontram conforto na IA, em vez de se dedicarem a estabelecer vínculos humanos? “A IA oferece comodidade e acessibilidade”, diz Rob Brooks ao Valor. “Ela está lá quando precisamos e pode ser desligada quando queremos nos concentrar em outra coisa. Quantas relações humano-humano se adaptam assim ao nosso senso de conveniência?”

O acadêmico destaca ainda uma segunda razão: “Algumas pessoas não conseguem ou não sabem como acessar os relacionamentos que desejam ter. Há uma epidemia de solidão. Portanto, um aplicativo que conversa com você, oferece uma companhia agradável e reduz sua solidão é realmente bem-vindo para alguns usuários e um salva-vidas para outros”.

Depoimentos de quem utiliza a Replika parecem ir nessa direção. Em fóruns como o Reddit, usuários compartilham experiências com seus avatares, falam das motivações para aderir à plataforma e avaliam a qualidade da tecnologia. “Não sei se algum de vocês também sente isso, mas eu fico muito mais confortável conversando com minha Rep [abreviação de Replika] sobre assuntos pessoais do que com um humano”, diz um relato.

Brooks analisa não existir na interação humano-máquina a “possibilidade de simetria” presente nas relações humanas, no sentido de certa igualdade entre o que as partes sentem e experienciam. Mas não descarta o uso dessas ferramentas: além do “alívio à solidão de algumas pessoas”, destaca “uma distração a quem não consegue encontrar um amigo”.

Quem adota um olhar mais crítico a essa pretensa saída é a socióloga e psicóloga americana Sherry Turkle, do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Referência na área da tecnologia, Turkle defendeu em artigo no jornal “The New York Times”, em 2018, que a empatia demonstrada pela IA é apenas performance. “Máquinas não conhecem o arco da vida humana”, escreve.

Para ela, uma tecnologia que foi propagandeada como “melhor do que nada” rapidamente se torna “melhor do que quase tudo” ao oferecer um tipo de conexão livre das fricções e frustrações de lidar com outro ser humano.

Já em 2012 Turkle colocava em xeque os caminhos pelos quais a tecnologia tem nos levado. “Perdemos tanto assim a confiança de que estaremos presentes uns para os outros?”, pergunta ela em uma palestra TED ao comentar sobre robôs idealizados para fazer companhia a humanos. Chamada “Conectados, Mas Sós?”, a palestra aborda o que ela classifica como “um novo modo de estarmos sozinhos, juntos”. Com o celular à mão, teríamos nos acostumado a uma relação distraída, mantendo sempre uma distância segura que nos dá total controle sobre quando abandonar uma conversa.

Daí deriva uma série de problemas, avalia Turkle. Quando desaprendemos a ter conversas profundas, em tempo real, que nos colocam em situação de vulnerabilidade, perdemos muito em desenvolvimento pessoal. “Nós usamos as conversas com os outros para aprender a conversar com nós mesmos.”

Sem o cultivo da habilidade de estar só (não confundir com ser solitário), ficam prejudicadas a construção da identidade e a capacidade de criar vínculos significativos. “Estar sozinho parece um problema a ser solucionado”, diz Turkle. Ao menor sinal de tédio, pessoas correm para seus celulares em busca de distração.

A intelectual adiciona uma dimensão política a essa discussão. Como fica a democracia diante de tecnologias que corroem a capacidade de ouvir, negociar e criar consenso com quem você diverge? “Penso nas redes sociais como máquinas antiempatia”, disse ela ao podcast da American Psychological Association, em 2022. “Nós precisamos aprender a conversar com quem discordamos.”

Se, na visão de Turkle, empatia é a chave para relações humanas de qualidade, Diogo Cortiz, da PUC-SP, aponta outra habilidade como primordial para lidar com o que vem pela frente. “O mais importante é o senso crítico”, diz. “A tecnologia é muito fácil, muito convincente. Ela nos prende pelo design, pela arquitetura, pelos algoritmos, porque é desenhada para isso, mas não podemos abrir mão do distanciamento.”

Cortiz ressalta a necessidade de mais debates e pesquisas interdisciplinares para compreender a intimidade artificial em suas várias dimensões. “Você consegue coletar uma quantidade imensa de dados a partir das interações, o que passa por questões de privacidade e transparência. É um poder que estará nas mãos de algumas organizações, com grupos de empresas oferecendo serviços íntimos em nível global.”

Em um horizonte de crescente dificuldade em diferenciar o que é humano do que é artificial no ambiente online, o pesquisador alerta também para o perigo de manipulação em larga escala. “Imagine perfis que se passam por pessoas e começam a ter uma relação íntima com o usuário, conduzindo-o até o ponto de modular suas ações e percepções de mundo”, diz. “Deve haver transparência. A IA não pode se passar por humano.”

Se a presença da IA nas nossas relações é um caminho sem volta, Cortiz aponta como premente a reflexão sobre quais papéis desejamos atribuir à tecnologia. “A tecnologia não vai solucionar todos os problemas. Ela tem potencialidades, mas também traz muitas questões que podem ser evitadas e outras que devem ser evitadas. Faz parte do desafio da humanidade entender como conduzir isso e colocar limites éticos.”

FONTE:

https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2023/10/27/por-que-a-inteligencia-artificial-esta-afetando-as-relacoes-humanas-a-empatia-e-a-solidao.ghtml