Por que camelo, zebra e vira-lata caramelo estão roubando a cena dos unicórnios

Na contramão dos valuations inflados e captações astronômicas, algumas startups brasileiras optam pelo crescimento sustentável

Nas startups zebra, o lucro vem junto com a função social — Foto: Pixabay

O universo das startups ganha cada vez mais analogias com o mundo animal para classificar modelos de gestão. Se antes todo mundo queria ser unicórnio — tarimba dada às empresas que atingem o valuation de US$ 1 bilhão —, hoje já está mais claro que o crescimento acelerado tem seu custo. No cenário de baixa liquidez, startups que preferem se definir como camelo, zebra ou até barata, de crescimento mais sustentável e maior resiliência, têm chamado a atenção do mercado. Há quem defenda um selo mais abrasileirado, apontando o desempenho das startups vira-lata caramelo.

Criada por um brasileiro e um alemão, a PagBrasil, de meios de pagamento, faz parte do grupo que prefere se tornar referência pelo crescimento sustentável do que acelerado. Fundada em 2010, quando concorrentes como PagSeguro ainda eram entrantes no segmento, a fintech tem crescido ano a ano e passou a ser lucrativa logo no primeiro ano de operação. Com soluções de B2B e B2C, resolve o processamento de pagamentos cross border atendendo a clientes como Samsung, Samsonite, illy Café e Badoo. Hoje, a empresa conta com 70 colaboradores distribuídos entre a sede, em Porto Alegre, no escritório de Barcelona e num hub em Singapura. O plano é continuar contratando.

“No começo da pandemia, as empresas com capital de risco precisaram demitir um monte de gente, botar 10%, 20% dos funcionários para fora. Nós também ficamos com medo, ficamos atentos à reação dos bancos e, depois de alguns meses, vimos que estava tudo bem com a nossa operação’, disse Ralf Germer, co-CEO da PagBrasil ao lado do sócio fundador Alex Hoffmann. “Continuamos a empregar e investir. Nossa operação é independente e é rentável, por isso é resiliente ao mercado. Mesmo que o e-commerce deixe de crescer, como aconteceu neste último ano, a gente ainda vê potencial de crescimento para a companhia.”

Na Shopper, startup de compra programada de mercado que atua em 100 cidades de São Paulo, o ar-condicionado é um só para cada duas salas e as mesas são feitas de portas que o CEO e fundador Fabio Rodas encontrou na rua. Por muitos anos, o único quadro branco no CD foi um resgatado do lixo pela cofundadora Bruna Vaz. A cultura da escassez tem valido a pena na travessia do chamado vale da morte.

“Não é porque é confortável, a gente não tinha muita escolha”, diz o CEO. “Nosso modelo envolve estoque, galpão, logística, não é puramente tecnologia. Isso espanta investidores. Foi algo que nos forçou a ter uma cultura de austeridade e foi extremamente positivo, ainda mais no nosso setor. No varejo de alimentos, 0,5% ou 1% a mais de custo é a diferença entre lucro e prejuízo”, emenda Rodas.

Fundada em 2014, a startup levantou um pré-seed enxuto, de R$ 120 mil, no ano seguinte. Só em 2019 a plataforma levantou um funding mais gordo, de R$ 10 milhões, em sua série A. O aporte foi liderado pela Quartz, fundo de José Galló. Nesta época, a Shopper já contava com um time de 60 pessoas e milhares de consumidores, além de ter atingido margem de contribuição positiva. No ano passado, foram captados R$ 290 milhões para acelerar o crescimento. “A gente via que tinha uma bolha se formando no mercado privado e, no final, se mostrou acertada nossa decisão de antecipar nossa série C e captar enquanto ainda havia liquidez”, diz Rodas.

A Dock, que já era unicórnio, tem preferido se atrelar recentemente à imagem do camelo — a startup que atravessa uma longa jornada em ambiente desabitado e com temperaturas extremas. Já em 2017, nos Estados Unidos, as empreendedoras Mara Zepeda, Aniyia Williams, Astrid Scholz e Jennifer Brandel, cientes dos problemas causados por valuations inchados e captações astronômicas sem propósito, criaram uma organização para se autodeclararem “zebras”. As CEOs americanas lançaram um manifesto garantindo que “as zebras vão consertar o que os unicórnios quebraram”. O grupo Zebras Unite também defende bandeiras como inclusão e ética no ambiente corporativo.

Com a sagacidade típica do empreendedorismo brasileiro, as startups tupiniquins talvez não se encaixem no rótulo de camelos ou zebras ou nas outras analogias não param de surgir lá fora. Transportado para cá, o conceito ganhou uma atualização espirituosa do empreendedor Christopher Toya. Em um post no Linkedin, o fundador da aceleradora TechFounders saiu em defesa das startups “vira-lata caramelo”.

“Unicórnio, Camelo, Zebra. O anúncio do inverno das startups pela Y Combinator trouxe à tona toda coleção de animais gringos. O que todos esses bichos tem em comum? Não são brasileiros”, escreveu. “O ambiente de inovação brasileiro é um mundo à parte e não adianta ficar contrabandeando teses e animais gringos e tentar aplicar aqui sem nenhuma adaptação.”

Em um tom bem-humorado, o investidor explica que, assim como o cão sem dono encontrado em qualquer bairro do país, as startups vira-lata caramelo já nascem sem investimento — e precisam se virar o que conseguirem. Em segundo lugar, precisam aprender com os erros de quem veio antes, assim como o cachorro aprende a atravessar a rua depois de ver o amigo sendo atropelado. Também não vêm de linhagem nobre, mas sabem se virar com o que têm nas situações adversas. “O inverno das startups chegou no mundo todo, e no Brasil não vai fazer diferença, afinal, já estamos acostumados a sobreviver”, avalia Toya.

FONTE: https://pipelinevalor.globo.com/startups/noticia/por-que-camelo-zebra-e-vira-lata-caramelo-estao-roubando-a-cena-dos-unicornios.ghtml