Para evitar burnout, gestora vai tratar empreendedores como atletas

Balderton, fundo de venture capital de Londres, terá programas de bem-estar para lidar com estresse de fundadores de startups.

Quando a Etsy pagou US$ 1,6 bilhão para comprar a Depop em 2021, foi mais do que apenas um dia de altos ganhos para o fundador do aplicativo de moda londrino, Simon Beckerman.

Também foi o ponto culminante de dez anos de problemas de estresse, sono e, às vezes, até sofrimento físico, recorda o empresário. Quando o processo de venda de nove meses foi chegando ao fim, “passei por uma semana em que eu começava a chorar aleatoriamente durante o dia, a cada tantas horas”, diz Beckerman. “Acho que era de alívio – atravessamos esse buraco negro e conseguimos sair do outro lado”.

Esse “buraco negro” incluiu o afastamento da empresa por um ano, em 2015, depois de uma dor de estômago, que vinha ficando cada vez maior, ter se tornado insuportável demais para ele trabalhar.

“Era tão doloroso que, um dia, acordei e disse: ‘Se eu for para o escritório mais um dia, vou morrer’”, acrescenta Beckerman. Posteriormente, ele foi diagnosticado com gastrite crônica, que ele atribui ao estresse de administrar uma startup.

A maioria dos empresários de tecnologia bem-sucedidos aceita as longas horas longe de suas famílias. Alguns poderiam se vangloriar de dormir pouco nas fases de mais pressão. Poucos falariam tão abertamente quanto Beckerman sobre as tensões do trabalho, mesmo com a crise de escassez mundial de financiamento às startups tendo elevado os níveis de estresse dos empresários do setor.

Ainda assim, nos últimos anos, alguns começaram a falar sobre sua saúde mental. Tom Blomfield, ex-chefe do neobank Monzo, admitiu sofrer de estresse, ansiedade e perda de sono quando deixou o banco digital em 2021, criticando o “mito do fundador super-herói”.

Agora, alguns investidores em empresas de tecnologia vêm percebendo que colocar demasiada pressão nos empreendedores pode ser prejudicial tanto para os negócios quanto para os próprios fundadores. Muitos executivos admitem que dormir e comer mal, assim como negligenciar o exercício físico, pode levá-los a tomar más decisões.

A Balderton, fundo de venture capital com sede em Londres e uma das primeiras investidoras da Depop, está prestes a testar uma abordagem mais intervencionista. A instituição é uma das primeiras do setor no mundo a lançar um programa de bem-estar para os fundadores nos quais investiu.

“Se você não der atenção ao fato de que está queimando a vela mais do que deveria e nunca fizer nada para que se recupere, em algum momento você cai no precipício”, diz Suranga Chandratillake, sócio da empresa.

A atual fase de retrocesso no mercado de tecnologia apenas aumentou a necessidade desse tipo de programa. “Não há dúvida de que você está vendo pessoas sob mais pressão neste momento”, acrescenta.

Chandratillake admite que, cuidando do bem-estar dos fundadores, a firma também espera conquistar mais negócios, além de melhorar as chances de sucesso de sua carteira de investimentos.

“Estamos sendo bem egoístas no longo prazo”, diz. “Achamos que isso é do interesse deles, mas também de nosso interesse – é como ganhamos dinheiro.”

O programa da Balderton pretende tratar os fundadores como atletas de alto desempenho, cercando-os com uma equipe de médicos para que sigam um esquema personalizado de seis meses, abrangendo nutrição, condicionamento físico, sono e saúde mental. Eles contrataram um “coach” executivo e vêm organizando fóruns com executivos-chefes para incentivá-los a compartilhar as experiências deles. A maior parte disso é paga pela Balderton, embora também se solicite certa contribuição aos fundadores.

“Espera-se dos fundadores, assim como dos atletas de elite, que saibam lidar com estresse e ansiedade sob pressão […] ao mesmo tempo em que diminuem o risco [da síndrome] de ‘burnout’ e de falhar”, diz Simon Marshall, ex-professor de psicologia de desempenho e resiliência na Universidade da Califórnia, San Diego, que deu assessoria à Balderton para o programa. “Atletas profissionais fazem isso treinando o cérebro […] para lidar com o estresse de forma mais eficaz […] e priorizando o autocuidado”.

Chandratillake, que se juntou à Balderton em 2014 depois de dez “exaustivos” anos dirigindo a Blinkx, criadora de uma ferramenta de busca de vídeos cuja sede fica em Cambridge, reconhece que certas doses de pressão e angústia para os fundadores são inevitáveis.

“As empresas financiadas por capital de risco consistem em uma aceleração maluca e desumana por um curto período de tempo que te permita crescer em [grande] escala”, diz. “Nunca vai ser fácil, nunca vai ser das 9h às 17h. Mas [também] consistem em durar 10 ou 20 anos, não em se esgotar em cinco.

Beckerman admite que, no fim das contas, foi bem recompensado por seu período “terrível” na Depop. No entanto, sua experiência de esgotamento no trabalho como fundador contrasta com a caricatura machista do empreendedor de tecnologia exemplificado por personalidades como Elon Musk, que se vangloria de dormir no chão das fábricas da Tesla enquanto lida com as responsabilidades em várias empresas multibilionárias.

O comportamento muitas vezes errático de Musk é um “bom indicador do que o estresse faz com você – ele prejudica sua tomada de decisões”, diz Ute Stephan, professora de empreendedorismo na King’s Business School, do King’s College London. “Há amplas evidências de que você pode ser um empreendedor melhor – ser mais produtivo, criativo, e, em última análise, ter empresas com melhor desempenho – se cuidar do seu bem-estar.”

A pesquisa de Stephan sinaliza que, embora seja difícil para os empreendedores evitar o estresse, ele não deve necessariamente causar problemas de saúde ou afetar seu desempenho. Dormir mais de sete horas e ter uma dieta equilibrada são fundamentais. A parte mais difícil é identificar quando você começa a chegar ao esgotamento.

“A singularidade do empreendedorismo é ter indivíduos orientados a alcançar conquistas, e que não têm limites”, diz Stephan.

Passar a ter menos orgulho de suas conquistas, a ter a sensação de que nada está sendo feito ou a sentir falta de energia são sinais precoces de burnout, alerta Stephan. “Quando você se dá conta que está explorando a si mesmo, pode fazer algo a respeito […] Cuidar de você mesmo não tem custo para os negócios, isso fortalece os negócios e os torna mais bem-sucedidos”.

Mesmo assim, ainda há estigma em discutir a saúde mental, em especial nas empresas de tecnologia. Janos Barberis e Annabelle Cameron querem mudar isso com sua empresa, a FoundersTaboo, que organiza eventos e cursos on-line focados no bem-estar dos empreendedores de tecnologia.

Barberis, que já trabalhou em startups, cita dois problemas: uma mentalidade de “não mexa no que está funcionando” durante os dez anos de altas nas ações do setor de tecnologia, que terminaram em 2022, e, em termos mais gerais, a psicologia do “trabalho triturador das startups” que transformou a síndrome de burnout em uma “medalha de honra” para os fundadores.

A quebra do Silicon Valley Bank e a retração generalizada no financiamento disponível para o setor de tecnologia nos últimos 12 meses foram um “choque para o sistema”, acredita Barberis. “Todos aqueles fundadores que já não conseguem levantar dinheiro com facilidade estão começando a perceber a importância de pensar com mais clareza, o que é impossível se sua saúde mental não estiver afiada”, diz.

Cameron, que tem formação em psicologia, reconhece que a pesquisa acadêmica sobre o bem-estar do empreendedor e sua relação com produtividade e desempenho está “em falta” – um fator que torna mais difícil convencer muitos investidores de tecnologia a reinvestir na saúde mental de dos fundadores. “No aspecto humano, no aspecto pessoal, isso faz sentido”, diz Cameron, “mas se quisermos promover isso numa escala maior, precisamos de alguns dados concretos para respaldar isso.”

A FoundersTaboo está trabalhando com Stephan no King’s College London para coletar mais dados sobre a causalidade.

Barberis usa termos que as startups entenderiam. “Ainda não chegamos ao ponto de inflexão”, diz, referindo-se a fundadores que começam a reconhecer a necessidade de investir na própria saúde mental. “Ainda temos apenas os primeiros adeptos.”

Beckerman já lançou sua próxima startup, a Delli – um marketplace voltado ao produtor de alimentos independente: uma espécie de Etsy para alimentos, com picles e chutneys artesanais, molhos de pimentas fortes e coberturas de nduja vegano para pizza. Desta vez, porém, ele está adotando uma abordagem diferente. Na Depop, “eu nunca ia à academia e bebia muito vinho” após o trabalho com colegas, admite. “Essa era minha terapia – uma taça de vinho à noite.”

No caso da Delli, ele trouxe uma cofundadora, Marie Petrovicka, com quem havia trabalhado na Depop, para atenuar a solidão que sentia como único fundador. Reduziu o consumo de vinho e, por sugestão da Balderton, que voltou a entrar como investidora, contratou um “personal trainer”, um coach de desempenho e outro de saúde.

Ele diz que ainda sofre do tipo ansiedade que às vezes parece corroer o estômago. Mas, graças aos programas de treinamento e condicionamento físico, vem lidando melhor com isso. “Eu pedalo [em bicicleta ergométrica] bem rápido todas as manhãs para extravasar”, diz, “e às vezes até choro enquanto faço isso”.

FONTE:

https://pipelinevalor.globo.com/startups/noticia/para-evitar-burnout-vc-de-londres-vai-tratar-empreendedores-como-atletas.ghtml