O homem é o personagem principal dos negócios do amanhã

A questão deixou de ser se algo é possível e passou a ser como lidar com tantas novas possibilidades

ILUSTRAÇÃO DE DEAN ELLIS SOBRE CIDADE DO FUTURO (FOTO: REPRODUÇÃO/PINTEREST)

Na introdução de seu livro Messy – The power of disorder to transform our lives, Tim Harford conta a história do célebre concerto de Keith Jarrett em Koln, na Alemanha. Harford diz “… quando vemos artistas extremamente competentes sendo bem-sucedidos em condições adversas, creditamos o sucesso à capacidade de ultrapassarem dificuldades (…) mas Jarrett não realizou uma performance boa apesar do problema: o piano ruim, na verdade, fez com que ele fizesse o melhor concerto de sua vida.”

Assim como as notas faltantes e mesmo as fora de tom no piano Bosendorfer fizeram com que o pianista buscasse outros caminhos para expressar sua criatividade, são as águas turvas de um mundo que se transformou mais rápido do que conseguimos acompanhar que vão nos forçar a nadar de uma maneira diferente.

O fato é que as teorias e práticas com as quais nos acostumamos não mais atendem quando tentamos entender o contexto ao nosso redor e não se prestam a nos apoiar no desenho de um futuro que não temos dificuldade de imaginar. Com poucas exceções, a ficção futurista dos Jetsons, de Matrix e, no limite, de Jornada nas Estrelas, já não é mais ficção e nem tampouco futurista. Ainda que não tenhamos realizado o sonho da Rosie e do jetpack, podemos imprimir comida em 3D, vivemos em uma simulação – ou, para ser menos distópica, uma facção – do que pensamos ser a realidade e podemos diagnosticar e até tratar muitas doenças usando tecnologia e com mínima intervenção e riscos para nosso corpo.

A questão, portanto, deixou de ser se algo é possível e passou a ser como lidar com tantas novas possibilidades. Não é de surpreender que os criadores desses universos fantásticos tenham voltado a enxergar o ser humano como protagonista. Saem de cena os gadgets, os softwares revolucionários, as questões filosóficas apresentadas por uma potencial descoberta; não mais questionamos se o mágico está atrás da cortina, se é correto manipular códigos genéticos, como fazer com que órgãos para transplante sejam acessíveis para todos e se máquinas vão lutar nossas guerras e passamos a estudar como regular relacionamentos, lidar com externalidades nunca vividas e que tipo de regime vai permitir uma transição menos dolorosa para esse futuro que chegou mais rápido do que esperávamos.

A má notícia é que para muitos esse cenário é assustador ou angustiante. Quanto menor a capacidade de enxergar no longo prazo, mais difícil plotar a rota para alcançar esse tal prazo. E, no entanto, é nesse cenário de águas turvas que está a maior oportunidade que, a meu ver, a raça humana já teve. Afinal de contas, se tudo mudou, então tudo é novo e, se tudo é novo, eu posso fazer – e ser – o que eu quiser.

Antes que você pense que eu sou apenas mais uma otimista, responda essa pergunta: o que acontece quando adicionamos vinte anos à expectativa de vida média dos seres humanos sobre a Terra?

Quando eu era criança, o roteiro era o seguinte: estudar, estudar, estudar; idealmente faculdade, trabalhar, casar, reproduzir, produzir; um dia, quem sabe, se aponsentar, idealmente curtir a vida um pouquinho, morrer. Claro, tinha a tia solteirona, o tio viúvo, alguém desempregado, talvez o médico e o advogado – profissionais liberais –, um herdeiro ou dois e  alguém que morreu jovem. De acidente de carro.

Esse roteiro já não existe para mais da metade da população dos países desenvolvidos no mundo. Se falássemos apenas das mudanças no conceito de família, já precisaríamos de um livro inteiro – ou quatro – para discorrer sobre os impactos sócio-econômicos dessas mudanças. Mas vamos fazer um fast forward para os últimos capítulos: a gente não morre mais. Ou não morre tão cedo.

Consequência: não pode se aposentar. Consequência: permanece no mercado de trabalho. Consequência: não muda para perto do mar ou para o interior, continua morando no centro urbano, usando transporte público, começa a dar rolê de ambulância, contrata um acompanhante ou vai parar num “lar”. Esses vinte anos a mais criaram um universo de problemas, mas também de produtos e serviços, que antes não existia. E eu não estou nem entrando nos detalhes mais sérios.

Mas vamos ao que interessa: estamos nessas águas turvas de impressão 3D, mapeamento e manipulação genética ao alcance de muitos, veículos autônomos, inteligência artificial, drones, robôs, dados, energias alternativas e mais um monte de novidades que não conseguimos acompanhar. Onde estão as oportunidades?

Vou fazer o mesmo exercício que fiz nos parágrafos anteriores. O que acontece quando você pode imprimir quase qualquer coisa em 3D?

Não precisamos mais de tantas fábricas. O frete é menor: se o produto não mais é fabricado na China, ele não entra no navio, chega no porto, entra no caminhão, vai pra loja e depois para a sua sacola; ele é impresso na hora que você decide usar. Em tempo, eu não acredito que todos teremos impressoras 3D (usando polímeros) em casa, não faz sentido. O que mais acontece? Um ser humano não precisa morrer para podermos tirar o coração dele e colocar em outro ser humano. O aparelho de dentes do seu filho não vai mais custar a mesma fortuna. Pessoas com joanete vão poder fazer sapatos sob medida. O suspiro da doceira não vai chegar mole ao fim do dia. Porque ele não vai ser feito de manhã.

Consequência: muitas pessoas perdem seus empregos atuais. Novas tarefas aparecem. Menos gente morre na mesa de cirurgia. Ou de cirrose. Menor desperdício de comida. Muda o processo de precificação dos alimentos. Novas empresas. Novos modelos econômicos.
Quer mais? O que acontece se os carros não mais precisarem de motoristas?

Não vai mais ter briga entre taxistas e motoristas de Uber. Caminhoneiros não vão dormir ao volante. O fim da lei seca. Não pode mais botar a culpa no trânsito quando chegar atrasado. O motorista da ambulância pode ser treinado para prestar primeiros socorros. Nenhum filme ou capítulo de série de TV vai ter a cena da criança fazendo uma bagunça sem tamanho no banco de trás enquanto o pai ou a mãe se desesperam na direção. Ninguém mais pode tirar sarro das moças que fazem maquiagem usando o retrovisor e não vêem quando abre o sinal.

Consequência: mais de três milhões de motoristas profissionais só nos Estados Unidos não terão emprego. Carta categoria B não existe mais. O fim dos processos de trabalho de motoristas nas transportadoras. Cai o preço do seguro de veículos em geral. A maquiadora vai no veículo com você de casa para o trabalho e, além do make, você consegue também fazer um corte ou penteado. Se o veículo for grande, é capaz de dar tempo até para fazer as mãos e os pés. Ou uma massagem. Reiki. Meditar. Finalmente você vai conseguir fazer a consulta com o Dr Sergio enquanto estiver indo de São Paulo até Campinas. Você bem evitou, mas agora não tem mais desculpa e o tratamento de canal vai caber direitinho na viagem da Barra até o Leblon.

Mas eu nem comecei. O que acontece quando o médico deixa passar um melanoma, mas a análise do computador não?

Essa é fácil; ninguém mais levanta a camisa no meio do jantar da vó Maria porque o Roberto apareceu com uma namorada dermatologista e pede para ela dar “uma olhadinha rápida nessa pinta que apareceu de repente.” Estagiários de escritórios de advocacia não ficam mais horas lendo contratos. Escritórios de advocacia não contratam mais estagiários. Você passa a confiar mais no aplicativo do Morgan Stanley do que no cara que tem MBA e trabalha no Morgan Stanley sobre como deveria aplicar o bônus do final do ano. Os velhinhos que fazem pacote no supermercado não farão mais pacotes porque os robôs nunca colocam o tomate por baixo e você não paga mais o mico de descobrir que não tem nenhum trocado na carteira. (Não por nada, mas você nem sai mais de casa com carteira.)

Consequência: dermatologistas, radiologistas e vários outros “istas” não terão mais função. Ninguém mais vai sair de um consultório tendo aplicado botox no lugar errado. O acesso a todas essas especialidades será muito mais democrático. Erros diagnósticos vão beirar o zero. Reguladores trabalharão muito mais, mas agora para garantir que as inteligências artificiais não “quebrem” um país porque aquele era o melhor e mais eficiente investimento para um fundo. O médico terá mais tempo para discutir o diagnóstico e o tratamento, além do impacto de uma doença na vida do paciente e sua família.

A verdade é que eu poderia fazer um parágrafo desses para cada nova tecnologia. Eu poderia escrever um job description para cada uma das novas tarefas que esse novo contexto nos apresenta; o designer web para e-commerce é hoje tão importante quanto o arquiteto que desenha a experiência na loja física conceito de um fabricante de veículos. Por que não imaginar a mesma coisa para o jurista que precisará pensar no contrato social de quem nascerá na Lua? Você já parou para pensar? E quem nasce na Lua é extra-terrestre?

Quando comecei a escrever esse texto, me dei duas responsabilidades: aceitar que é complicada essa perspectiva que temos quando as águas são turvas, mas também refutar que é preciso ser um gênio com três PHDs – ou estar no Vale do Silício – para construir um barco, navegar e ter sucesso. Pode ser que essas ideias e sugestões de repentista não façam nenhum sentido, pode ser que eu esteja entregando uma semente de algo genial de presente para você. O que importa é que, na falta das ferramentas que conhecemos e às quais estamos acostumados, recorreremos a outras e, dessa forma, criaremos nossa oportunidade para o maior espetáculo de nossas vidas.

FONTE: ÉPOCA NEGÓCIOS