O carro do futuro: ‘smartcar’ é a extensão de onde moramos, trabalhamos e nos divertimos

A bordo, já é possível agendar compromissos, ouvir audiolivros, pedir comida, reservar restaurante – e as transformações só começaram Por Marli Olmos e João Luiz Rosa — VALOR ECONÓMICO

FOTO: Fábrica da Volvo na China, onde o processo de solda é totalmente automatizado

Quase ninguém, hoje, imagina ter um celular só para fazer ligações. O aparelho passou por um profundo processo de transformação e, agora, também é usado para enviar mensagens instantâneas, navegar na internet, ver filmes, ouvir música, fazer transações bancárias. Serve até de lanterna. Em alguns anos, as pessoas terão a mesma sensação em relação ao carro.

À medida que evolui, o automóvel assume funções que o tornam muito mais que um meio de transporte. A bordo, já é possível agendar compromissos, ouvir audiolivros, pedir comida, reservar restaurante – e as transformações só começaram. É uma rota irreversível: o “smartcar” será uma extensão de onde moramos, trabalhamos e nos divertimos. “O interesse pela conectividade aumenta cada vez mais. As pessoas se acostumaram com a praticidade de o celular fazer tudo por elas. E querem, agora, que o carro também faça”, afirma o diretor-geral da Volvo Car, João Oliveira. No futuro, diz o executivo, um carro econômico e com bom desempenho não estará fazendo nada “além da sua obrigação”. Para manter o automóvel na posição de objeto de desejo, a indústria terá de se empenhar muito mais para atender às novas demandas do consumidor.

A Porsche planeja investir mais de €1 bilhão em dois alvos considerados essenciais: eletrificação e digitalização. Este último ficará com 80% dos recursos. “Potência e design ainda são apelos fortes num carro, mas a indústria precisa se dedicar às novas gerações, que demonstram habilidade com a conectividade cada vez mais cedo”, afirma o presidente da Porsche Brasil, Andreas Marquardt. Um episódio ocorrido quatro anos atrás nos Estados Unidos chama a atenção, diz Marquardt. Um garoto de 8 anos de idade, morador de Ohio, dirigiu um automóvel por 2,5 km para levar a irmã, de 4 anos, até o McDonald’s. Ao ser questionado como aprendera a dirigir, o menino respondeu: assistindo a vídeos do YouTube. A história, afirma o executivo, ilustra como a conectividade influencia as novas gerações e torna qualquer aprendizado mais precoce. Há sinais claros de que a tecnologia está se tornando determinante na hora de o consumidor escolher seu automóvel. Nos Estados Unidos, 55% das pessoas interessadas em trocar o carro afirmam levar esse fator em consideração, segundo levantamento da empresa de pesquisa GfK. Seis em cada dez compradores dão especial atenção à integração do veículo com assistentes digitais que já usam em casa ou no celular, como Alexa, da Amazon, e Google Home.

De maneira geral, para acessar seus aplicativos de dentro do carro, hoje, o consumidor precisa conectar seu smartphone ao automóvel por cabo USB ou espelhamento via Bluetooth. Para isso, usa o pacote de dados do celular. Mas as montadoras já estão incluindo chips em seus veículos para fazer com que a conexão seja feita por intermédio do próprio automóvel. A Volvo começou a lançar modelos em que o usuário pode acessar todos os seus aplicativos sem precisar do smartphone. O carro sai com um pacote de dados ilimitado, sem custo adicional, durante um período de quatro anos. A BMW já tem 65 mil carros conectados no Brasil e planeja chegar ao fim do ano com 70 mil. A empresa criou um sistema próprio, com recursos de navegação e concierge, que é atualizado a distância. A companhia arca com o custo do pacote de dados por três anos. A renovação pode ser feita diretamente com montadora. “No passado, a indústria automobilística era basicamente hardware. Hoje, também é software”, diz João Veloso, diretor de comunicação do grupo BMW. Essa abordagem mostra o quanto o setor automotivo fica cada vez mais parecido com o de tecnologia. Com a nuvem computacional, o consumidor não precisa ir a uma loja para comprar um pacote de software, como ocorria no passado. Ele pode fazer uma assinatura e ter, sempre, a versão mais atualizada. Em alguns casos, a atualização é gratuita. Foi o que a Apple fez com sistema operacional iOS, do iPhone, em setembro, e a Microsoft, com o Windows, no início de outubro.

Para a indústria do carro, o avanço da digitalização abre perspectivas de negócios, principalmente na área de serviços, o que está impulsionando a busca de parcerias com empresas de tecnologia. Há pouco tempo, a General Motors e a Amazon anunciaram uma aliança tecnológica. Pelo acordo, o serviço de emergência OnStar, que a montadora já oferecia em seus veículos, poderá ser acionado por meio de qualquer dispositivo com a assistente Alexa, como celulares, TVs e computadores. A pessoa que suspeitar que sua casa está sendo invadida, por exemplo, poderá chamar a polícia pelo OnStar, usando comando de voz, mesmo que não tenha um carro. O serviço é pago. A ideia da companhia é ir além de seu negócio tradicional, diversificar as fontes de receita e ampliar o público-alvo, diz Santiago Chamorro, presidente da GM na América do Sul. Num futuro mais distante, a perspectiva da indústria automobilística é que o consumidor pague apenas pelo que usa, como ocorre atualmente em algumas áreas no mundo da computação em nuvem. Em vez de pagar por um veículo com uma série de recursos que serão subutilizados, ele fará o download das funcionalidades quando precisar delas. “O usuário poderá comprar potência extra para usar no fim de semana ou alugar o sistema de aquecimento dos bancos em dias mais frios”, afirma Veloso, da BMW. Com o avanço da inteligência artificial e do aprendizado de máquina, o carro será capaz de observar a rotina do condutor e se antecipar às suas necessidades. “Se eu assisto a um jogo de futebol pela TV toda quarta-feira comendo pizza, por que meu carro não poderia pedir a pizza no meu caminho para casa?”, diz Veloso.

E o consumidor? Todas essas transformações começam a mudar a forma como as montadoras abordam o consumidor. “Há uma revolução tecnológica gigantesca, e isso impacta na comunicação das marcas”, afirma Marcello Braga, diretor de marketing do grupo Caoa, que produz e vende as marcas Hyundai, Chery e Subaru. A propaganda dos automóveis consagrou filmes publicitários de carros possantes percorrendo trilhas selvagens ou de homens charmosos estacionando à porta de lugares elegantes. A tecnologia está fazendo com que as montadoras se dirijam a um público mais diversificado. “Pesquisas mostram que mais de 60% das compras de carro são influenciadas pelas mulheres, que estão muito mais envolvidas com o produto”, diz Braga. As crianças também passaram a influenciar a decisão de compra e entraram no alvo da comunicação. Uma recente campanha publicitária do Tiggo 8, modelo da chinesa Chery, mostra o deslumbramento infantil dentro do automóvel. Braga foi buscar inspiração em casa, com os próprios filhos. “O grande papel da tecnologia é gerar encantamento”, diz. “Quando você encanta o consumidor, ele se torna fiel.” Os carros têm cada vez mais sensores, não só para conectividade, mas para melhorar o desempenho e a segurança. Esses dispositivos são essenciais para coletar dados. “Ângulo de direção, marcha, aceleração, tudo isso o veículo mede o tempo todo”, afirma o presidente da Audi do Brasil, Johannes Roscheck. “O carro já é um computador que roda.” O arsenal de inovações é enorme. A chave, por exemplo, passou a funcionar a distância. Nos modelos mais recentes, basta apertar um botão no painel para ligar o carro. O XC40, elétrico que acaba de ser lançado pela Volvo, dispensa até o botão. Para iniciar a viagem, basta acelerar. Ao chegar ao destino, é só sair do carro. O veículo “entende” que é hora de desligar. A indústria automobilística quer evitar, no entanto, que as novidades destruam a familiaridade do consumidor com um produto que ele conhece há décadas. Muitos equipamentos foram radicalmente alterados, mas preservam a aparência que tinham. Em modelos esportivos da Audi, câmeras substituem os espelhos retrovisores externos, mas continuam no lugar de sempre. As imagens captadas são projetadas em telas embutidas na porta. No painel dos veículos, botões de comando que só existem na tela oferecem resistência tátil para o usuário ter a sensação de estar apertando um botão convencional. Até o barulho do motor, que desapareceu nos modelos elétricos, é recriado por um sistema de som para o motorista não perder a sensação de aventura. É uma lição que o setor de software já aprendeu: as mudanças não podem provocar queixas dos usuários. Em 2015, por exemplo, a Microsoft precisou reincluir o botão “iniciar” no sistema Windows 8 porque sua retirada deixou os consumidores furiosos. O design está ganhando mais liberdade com a chegada dos modelos elétricos, que têm menos componentes. Isso libera espaço para a criatividade dos desenhistas. Com os carros autônomos, a tendência fica mais forte. Alguns elementos que sempre fizeram parte do carro, como o volante, desaparecem. A disposição dos bancos também pode mudar. Em vez de todos os ocupantes olharem para frente, o interior do carro sem motorista poderá ser uma sala de reunião ou de estar.

Ao gosto do cliente É improvável, porém, que os veículos se transformem em aeronaves, como nos filmes de ficção científica. “A aparência dos automóveis é fruto de uma evolução gradual”, diz Roscheck, da Audi. A tecnologia abre espaço à personalização. No caso dos importados de luxo, o cliente não se importa em esperar meses para ter o carro do jeito que ele quer. Além de cores incomuns, frisos e estofamentos especiais, o toque pessoal chega a requintes, como a cor da pinça do freio. Dos 500 modelos esportivos vendidos pela Audi no Brasil neste ano, 380 foram fabricados sob medida. Como ocorre no mundo da alta moda, o comprador quer mostrar que ninguém tem um carro igual ao seu. A maneira de comprar automóveis também mudou. Antes da disseminação da internet, o consumidor visitava, em média, cinco concessionárias até se decidir pela compra de um veículo. Agora faz pesquisas on-line e fecha negócio com menos de duas visitas, diz Braga, da Caoa. Ir à revenda é mais para ver o veículo escolhido. “Brasileiro ainda gosta de chutar pneu, mas já há casos de venda 100% on-line, uma tendência que a pandemia acelerou”, destaca o executivo. Com a internet, os fabricantes têm estendido sua estratégia de vendas à fronteira das redes sociais e do comércio eletrônico. A BMW abriu canais comerciais no Instagram, na Amazon e no Mercado Livre. Recentemente, também chegou ao TikTok, em que quase 60% dos usuários têm, no máximo, 24 anos. A Volvo também recorreu ao TikTok numa campanha estrelada pela campeã olímpica Rebeca Andrade, de 22 anos, e pela apresentadora Maisa Silva, 19. As marcas de carros podem abordar o consumidor diretamente por esses canais, mas, pela legislação brasileira, a venda só pode ser feita por meio de uma concessionária. A próxima fronteira tecnológica é a chegada do 5G, mais recente padrão de comunicação sem fio. A nova rede trará mais velocidade, ampliará a área de cobertura e tornará as conexões mais estáveis. São fatores que abrirão caminho para o “smartcar”. Hoje, as interações on-line dependem da intervenção humana. Aplicativos como o Waze, por exemplo, permitem dar avisos sobre o que acontece na estrada, mas requerem que o condutor faça isso. No futuro, as máquinas se comunicarão entre si. Quando o pneu perder aderência em uma curva, o próprio automóvel avisará sobre os riscos para os carros que vêm atrás, mesmo que o piloto não tenha percebido o problema, diz Roschek, da Audi.

“Made in Brazil” O Brasil começa a ganhar relevância no desenvolvimento dos sistemas digitais dos carros. Há quatro anos, a equipe de engenharia da Volkswagen em São Bernardo do Campo (SP) criou uma plataforma de entretenimento e informação que hoje é usada em modelos produzidos pelo grupo em fábricas da Índia, Rússia e do México, entre outros lugares. “O projeto teve um sucesso muito grande; já exportamos [a tecnologia] para quase 70 países”, diz Matheus Arantes, chefe do centro de eletrônica e conectividade da Volkswagen do Brasil. O sistema de bordo traz uma loja de aplicativos. A versão nacional conta com 13 apps. A maioria já é largamente utilizada em celulares, como Spotify, Waze e iFood. O sistema também oferece um aplicativo de audiolivros e o Playkids, famoso pelos vídeos da “Galinha Pintadinha”. As novas demandas do consumidor são tão determinantes que estão modificando o perfil de profissionais que trabalham nas fábricas de carros. Na Volkswagen, além do desenvolvimento de softwares e equipamentos, a equipe do centro de conectividade, de 50 pessoas, se dedica a estudar como os proprietários de veículos usam a tecnologia. Um dos focos é identificar desenvolvedores de aplicativos para fazer parcerias. Nessa busca, o time da Volks encontrou a startup brasileira Get In. O aplicativo tenta resolver uma antiga dor de cabeça de quem procura restaurantes: a fila de espera. Pelo app, a pessoa inclui seu nome na lista por uma mesa assim que entra no carro. O automóvel vem se transformando num espaço no qual a rotina diária não para: pode-se pedir comida, ouvir podcasts e agendar serviços, entre outras tarefas, sem prejudicar a atenção ao trânsito. “O uso inteligente do tempo é o grande benefício da tecnologia”, diz Arantes, da Volks. Esse cenário ficará ainda mais evidente com o carro autônomo. Em testes na Europa e nos Estados Unidos, veículos que dispensam motorista ainda têm um grau de automação restrito por causa das leis de trânsito, que também precisam ser adaptadas. Mas a tecnologia avança rapidamente e, segundo especialistas, viajar sem as mãos ao volante será realidade em menos de dez anos nos países desenvolvidos. Os veículos se conectarão a sistemas públicos e privados das cidades, criando uma enorme rede urbana. Semáforos, faixas de pedestre, placas de trânsito – todos esses equipamentos estarão integrados com os veículos, que também se comunicação entre si, criando um circuito de mobilidade próximo do ideal. “O mundo precisa de zero emissões, zero acidentes e zero congestionamentos”, diz Chamorro, da GM. A grande questão é saber até onde os mundos do automóvel e da tecnologia podem convergir, com alianças entre empresas desses setores, e a partir de que ponto vão se chocar. Toda vez que as “big techs” chegam a um mercado, as regras de competição são radicalmente reescritas, como ocorreu em setores como fotografia, música, varejo e publicidade. A transformação tecnológica costuma exigir uma profunda capacidade de adaptação das companhias hegemônicas. As gravadoras, por exemplo, foram duramente afetadas pelo streaming de música, mas o setor está se reorganizando. Já a Kodak, na fotografia, e a Blockbuster, no audiovisual, não conseguiram mudar a tempo e desapareceram. Os criadores do automóvel sabem que precisam das alianças com as “big techs”, mas não querem perder o domínio da sua criatura. Se depender deles, as parcerias não chegarão ao funcionamento central do automóvel. “O sistema que controla o carro será sempre da montadora”, diz Arantes, da Volks. É a diferença vital entre oportunidade e ameaça.

FONTE: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2021/10/22/o-carro-do-futuro-smartcar-e-a-extensao-de-onde-moramos-trabalhamos-e-nos-divertimos.ghtml