Mobilidade A tecnologia nos poupará de uma vida interrompida pelo trânsito?

De carros sem motoristas a triciclos elétricos autônomos, cidades congestionadas pedem pela diversificação da mobilidade urbana

Estamos em 2019. Em algumas ruas do mundo há carros equipados com câmeras e uma série de sensores capazes de se dirigirem sozinhos. Há empresas como a Amazon que testam drones para entregar mercadorias em áreas rurais. Na China, uma startup já demonstrou ser funcional um drone autônomo que consegue transportar um passageiro. Na Califórnia, Elon Musk, CEO da Tesla e SpaceX, avança em sua visão de criar o Hyperloop, um trem de alta velocidade que pretende atingir os 1.200 km/h. Em grandes cidades, há bikes e patinetes elétricos que disputam espaço em ciclovias, enquanto parados nos semáforos, estão carros e seus motoristas, ilhados em meio ao trânsito, controlando-se para não apertarem suas buzinas.

A forma como nos locomovemos de um ponto ao outro certamente não é a mesma de 10, 20 anos atrás. E não à toa. Os meios tradicionais e o transporte público falham diariamente para atender as demandas crescentes de uma população que, cada vez mais, se concentra nos centros urbanos. E este não é um cenário que se aliviará. Segundo relatório do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais, das Nações Unidas, a estimativa é que até o ano de 2050 mais 2,5 bilhões de pessoas serão acrescentadas às áreas urbanas. A mobilidade é um dos grandes desafios da administrações públicas e até mesmo a indústria automotiva entendeu que o seu modelo de negócios – baseado essencialmente na venda do produto que a define – não será mais escalável. Dessa forma, montadoras correm para diversificar-se a medida que populações entendem que o grande valor de um carro não está em si e sim no serviço que entrega. Para futuristas, ter um carro na garagem de casa será, eventualmente, algo raro, peça e cultura de colecionador.

“Eu acho que os filhos dos meus filhos não saberão sequer como dirigir um carro. Eles entrarão em um, falarão com ele e seguirão para seus destinos”, projeta Gerd Leonhard, CEO da The Futures Agency, organização que ajuda companhias e governos a entenderem melhor os desafios do futuro. “Dirigir um carro por si só será como colocar um disco de vinil em uma vitrola e você terá uma cultura ao redor disso, será algo especial”, complementa.

Um modelo em colapso

Para Leonhard, o sistema tradicional da mobilidade urbana não funciona mais. “Olhe para cidades como São Paulo, elas estão entrando em colapso”, ressalta. Em sua visão, há urgências a serem endereçadas quando o assunto é a mobilidade urbana. A primeira delas diz respeito a descarbonização – distanciar-se de combustíveis fósseis e formas tradicionais de transporte que se alimentam deles, uma vez que eles são grandes vilões da poluição e influenciam diretamente no aquecimento global. “A medida que as populações vão crescendo a gente tem que pensar em logística e em escala. As pessoas ainda não entenderam muito bem o que isso vai significar nos próximos 10, 20 anos, isso irá aumentar a temperatura no mundo, áreas do Brasil se tornarão inabitáveis, porque elas ficarão tão quentes que ninguém vai conseguir viver mais nelas. Não é somente um grande problema para o meio ambiente, mas também traz questões econômicas. Isso tudo está criando um grande fardo”, sinaliza Leonhard.

Morando na Suíça atualmente, Leonhard defende que a descarbonização e o destino de uma mobilidade urbana mais eficiente está, essencialmente, nas mãos dos governos e da administração pública. Entretanto, no Brasil, o cenário é de complexidade. Em 2012 foi sancionada a lei 12.587, que determinou que municípios com mais de 20 mil habitantes elaborassem um Plano de Mobilidade Urbana. Com isso, aquelas cidades que pensassem estratégias para a Política Nacional de Mobilidade e aprovadas na Câmara Municipal poderiam receber repasses do Governo Federal na área. Mas passados seis anos, apenas 195 municípios (9% do total) declararam ter elaborado um plano. Por causa da baixa adesão, o prazo para a conclusão dos trabalhos já foi adiado duas vezes: a primeira em 2015 e a segunda em abril de 2018. E novamente foi adiado para o ano de 2019. Caso as cidades não se comprometam novamente, os riscos da lei ser engavetada são enormes.

Pela Política Nacional de Mobilidade, as estratégias de locomoção devem priorizar pedestres e ciclistas, seguidos pelo transporte coletivo, transporte de carga e, por fim, carros e motos. Entretanto, dados do portal Mobilize Brasil apontam que medidas de incentivo ao transporte individual nas últimas décadas acabaram por contribuir para a queda de 15% no número de passageiros do transporte coletivo e o acréscimo em três vezes na quantidade de carros em circulação nas ruas brasileiras. Guillermo Petzon, especialista em Mobilidade Urbana da WRI Brasil, explica que as cidades brasileiras tomaram como exemplo o modelo de desenvolvimento das cidades estadunidenses, cujo planejamento urbano priorizou o carro. Como resultado, zonas residenciais estão distantes das áreas comerciais e quando milhares de pessoas precisam deixar suas casas para atravessarem a cidade para trabalharem, temos longos quilômetros de congestionamento. Para Petzon, uma das saídas para aliviar este cenário está na integração do transporte coletivo com novos serviços que empresas como Uber, 99 e startups como Yellow, de compartilhamento de bicicletas e patinetes, já ofertam no Brasil por meio de aplicativos.

“As cidades devem entender que a inovação veio para ficar. Mas mais do que apenas Uber, Cabify ou 99, a gente fala da nova mobilidade. A mobilidade que é compartilhada, bicicletas compartilhadas, serviços sob demanda”, aconselha. “O outro eixo é o da experiência do usuário, o deslocamento como serviço, a bilhetagem integrada, soluções que integram a chamada Seamless Mobility, ou mobilidade sem emendas. Com um único cartão poder fazer a jornada inteira”, exemplifica Petzon que também vê na gamificação da mobilidade uma forma de incentivar cidadãos a optarem por meios mais sustentáveis de transporte e deixar seus carros para ocasiões pontuais. Ou seja, premiar o comportamento daqueles que primam por soluções sustentáveis.

Ao mesmo tempo, buscar uma mobilidade urbana que atenda, com qualidade, a todas as classes da população é uma forma de justiça social. E o transporte público acessível e distribuído entra aqui como pedra fundamental. “Não podemos ver o transporte apenas como negócio, pois aí acontece algo como tivemos em Bangkok, onde você coloca um trem bem sucedido de alta velocidade, mas os habitantes não conseguem usá-lo porque é muito caro. Apenas os turistas o usam. Basicamente, prefeitos, políticos, eles têm de decidir se eles apenas querem um ecossistema funcional ou se querem algo que eventualmente vai entrar em colapso”, alerta Gerd Leonhard.

Reinventando a roda

Nas ruas de Taipei, Taiwan, há um veículo curioso que parece ter saído de algum conto de ficção científica. Sobre três rodas e uma carcaça quase transparente, um triciclo roda sem qualquer aparente supervisão de um humano e é chamado por meio de um aplicativo para smartphone. O projeto batizado de Veículo Elétrico Persuasivo (PEV, em inglês) é uma criação colaborativa do MIT City Science, encabeçada pelos pesquisadores Phil Tinn e Michael Lin. Um brasileiro também integra o projeto. Daniel de Oliveira Mota, engenheiro de produção e professor da Escola politécnica da USP (Poli-USP), trabalha em conjunto para conseguir, eventualmente, trazer o PEV para São Paulo, por meio de uma parceria com o Centro de Inovação em Sistemas Logísticos (CISLOG) da Poli. Em entrevista à IT Mídia, os três pesquisadores falaram sobre a colaboração e o novo veículo com entusiasmo. “Basicamente é uma combinação do Uber, com serviço de compartilhamento de bicicletas e tecnologias autônomas”, resume Lin. Da mesma forma que um carro autônomo, o veículo usa sensores e câmeras alimentadas com visão computacional para se tornar “consciente” do seu contexto. Mas por trás do triciclo, há uma ambição maior – a de não só oferecer um meio de transporte verde e funcional -, como também uma mudança de comportamento das pessoas em relação a locomoção no dia a dia.

“No futuro, os cidadãos terão que ter opções para decidir qual tipo de transporte querem tomar. Para longas viagens, você pega o trem, mas viagens menores, bicicletas são mais eficientes e quando você tem eletricidade, você pode ir mais rápido e é mais fácil escalar”, pontua Lin.

Desenvolvido há cerca de quatro anos, agora o PEV segue em fase de implementação em pequena escala em cidades como Cambridge, Massachusetts, sede do MIT, mas também em Xangai (China), Hamburgo (Alemanha), Helsinque (Finlândia), Guadalajara (México) e Taipei (Taiwan). São Paulo, mais especificamente, o campus da Universidade de São Paulo, pode ser a próxima parada do veículo de relativo baixo custo para a tecnologia que carrega. Segundo seus desenvolvedores, o PEV custa cerca de US$ 8 mil para ser construído. Mas que futuro um triciclo autônomo elétrico poderia reservar entre as sinuosas ruas de uma cidade como São Paulo?

“Quando Michael (Lin) disse que queria levar o projeto para o Brasil, eu pensei, é impossível. Mas uma coisa que nos concordamos é que a gente tem que começar em algum momento, fazer com que o sistema aprenda como é o Brasil”, pontua Mota. “Então, começar por um lugar relativamente mais controlado como uma universidade será mais fácil”.

Além de transportar pessoas, os pesquisadores veem no PEV outras vocações, como um serviço de entrega de mercadorias, otimizando sua “vida útil” para aqueles que, eventualmente, possam ver nele um modelo de negócio. “Você usa um veículo, mas otimiza sua utilização. Dessa forma você tambem melhora a sustentabilidade e a conscientização do espaço. Nos EUA, para cada carro, nós temos três vagas e estacionamentos, é uma estatistica assustadora. Então com o PEV, nós queremos não só reduzir o volume do carro, mas também o seu lastro”, explica Phil Tinn.

Um trem do futuro

Em 2017, Mariana Avezum fez manchetes na imprensa por ter sido a jovem brasileira a liderar uma equipe de 30 integrantes vencedora de uma competição que buscava avançar o conceito do trem futurista proposto por Elon Musk em um white paper aberto. Na ocasião, Musk descreveu um trem que conseguiria transportar passageiros e cargas em cápsulas, que se moveriam dentro de tubos metálicos com ar de baixa pressão. Ele atingiria a impressionante velocidade de 1.200 km/h, uma promessa que reserva o potencial de transformar o deslocamento entre fronteiras. Atualmente, o projeto Hyperloop avança através diferentes iniciativas, desde startups a grandes empresas como a Virgin Galactic e até mesmo de Elon Musk. “O maior desafio do Hyperloop não é a tecnologia, e sim a política necessária por trás. Por envolver grandes infraestruturas sempre é necessário o apoio político, o que dependendo do lugar pode ser mais fácil ou difícil”, ressalta Mariana.

Formada em informática pela Universidade Técnica de Munique, hoje Mariana se dedica ao doutorado sobre Mobilidade Urbana Sustentável na mesma universidade. Iniciativas, entre elas o Hyperloop, são avaliados pela pesquisadora. Software, digitalização e as integrações necessárias para entregar esse tipo de transporte “futurista” passam por sua avaliação.

Apesar dos avanços na área, Mariana ainda vê com cautela o desdobramento do Hyperloop em um horizonte próximo. “No que se diz respeito à tecnologia, o Hyperloop basicamente integra várias outras que já estão disponíveis hoje, em outras áreas e projetos”, explica. Entretanto, diz ela, “há o ponto que vários testes ainda precisam ser planejados e concebidos”.

A promessa das cidades inteligentes, onde a infraestrutura e logística serão pautadas por sensores e análise de dados, sustentará não somente hyperloops e derivados, como também o transporte no nível individual. Mariana cita o exemplo de Cingapura, onde a prefeitura experimenta pontos de ônibus virtuais, que são calculados dinamicamente dependendo da demanda de cada região em dado horário. “Sistemas como esse não são fáceis de desenvolver, mas prometem uma grande melhoria. Incentivar a integração de meios de transportes também é uma grande contribuição. É preciso mostrar para a população que há alternativas viáveis além do carro”, defende.

 Uma nova forma de encarar o transporte

Estamos em 2019. E em dez anos, especialistas em mobilidade acreditam que carros autônomos se tornarão um meio de transporte essencial. Quem sabe, até mesmo, banal. Estudos mostram que o transporte autônomo será mais seguro e poderá reduzir os acidentes no trânsito. Ao mesmo tempo, para entregar o tipo de tecnologia que nos tornará obsoletos atrás do volante exige a atualização da infraestrutura das cidades. A próxima geração de internet móvel, o 5G, deve habilitar toda essa autonomia proposta pela Internet das Coisas.

Michael Lin, do MIT Media Lab City Science, acredita que as cidades se desenvolverão para entregar um equilíbrio entre infraestrutura e carros inteligentes. “É uma questão interessante, no futuro nós teremos carros inteligentes e uma infraestrutura burra? Ou iremos com a infraestrutura inteligente e carros burros? Se você perguntar as montadoras, o carro vai ser inteligente e vai ter tudo, mas na realidade você tem a opção de levar toda a computação para a rede. Eu acredito que, no futuro, haverá um balanço entre esses dois”, aposta.

Mas mesmo que a tecnologia avance ao ponto de que dirigir será apenas um lazer e não um estresse, o carro autônomo não será em si um bem de consumo para habitar garagens domésticas. Gerd Leonhard vê nos carros sem motorista um novo serviço de mobilidade e que se desdobrará em rotas pré-determinadas, controladas para abraçar tal

tipo de tecnologia. Carros que entreguem o nível 5 de autonomia, que consigam dirigir e reagir como motoristas humanos, ainda está, na visão de Leonhard, muito distante de acontecer. Para o pensador, carros autônomos serão compartilhados e carros tradicionais se tornarão, eventualmente, tão caros que seu uso será desestimulado. “Eu acredito que toda grande cidade vai ter restrições enquanto a propriedade do carro, uma taxa responsável sobre poluição, sobre o trânsito, taxas para estacionamento. Acho que, eventualmente, as pessoas simplesmente desistirão de ter carros”, acredita Leonhard. “O carro deve virar uma espécie de serviço como Spotify, nós queremos a música, mas sinceramente, nós não precisamos mais comprar o disco. Nós temos que nos distanciar do pensamento de que há apenas uma ou duas formas dominantes de transporte. Acho que no futuro, haverá 20 formas diferentes de nos transportamos de um lugar ao outro”, conclui.

FONTE: IDG Now!