Irreverentes e lúdicas, as fintechs da Europa desafiam a tradição e a solidez dos bancos

Mas será que elas têm mesmo todo esse poder?

O BIG BEN E O PARLAMENTO BRITÂNICO EM LONDRES, REINO UNIDO (FOTO: SHUTTERSTOCK)

údicas, inusitadas, irreverentes e transparentes, como lutam para ser percebidas, as fintechs europeias se aventuram em todas as áreas tradicionais dos bancos — do varejo à gestão de fortunas e trading, oferecendo soluções cada vez mais baratas e eficazes. De capitais mais fancy, como Londres e Paris, até a Europa do leste, a exemplo de Varsóvia, passando por Berlim, Estocolmo e o Zug Valley, na Suíça, essas startups desafiam o mercado financeiro adotando uma linguagem inédita e informal com quem realmente importa: os consumidores. Com agilidade, decifram e se conectam com as novas necessidades deles, desafiando processos burocráticos. Como? Enviando mensagens pontuadas por emojis, fazendo transações gratuitas para qualquer lugar do mundo e adiantando pagamentos de clientes, que só cairiam na conta da empresa dois meses depois; tudo para evitar que a empresa em questão quebre. São fintechs que tratam de dar um toque de graça, também, a tarefas cotidianas insossas. Um exemplo: o pagamento daquele pedido de chilli e guacamole via aplicativo dispara, de quebra, uma trilha mexicana no Spotify… Não poderia ser melhor, portanto, o efeito em ouvidos millennials. E quem está por trás deles sabe do que está falando porque se identificam: os fundadores das fintechs são jovens em torno de 30 anos.

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INVASORES DA CITY TOM BLOMFIELD, CEO DO MONZO, NIKOLAY STORONSKY, CEO DO REVOLUT, E SIMON RABIN, CEO DA CHIP. MESMO APÓS O BREXIT, LONDRES CONTINUA A SER O MAIOR HUB DE INOVAÇÃO EM FINANÇAS DA EUROPA

É preciso dizer que os mercados de fintechs dos Estados Unidos e da Ásia continuam a ser os maiores: no ano passado, atraíram US$ 7,8 bilhões e US$ 5,8 bilhões em investimentos, respectivamente, segundo o CB Insights. Mas a Europa, que parecia adormecida no início dessa corrida, despertou. Os investimentos nas fintechs europeias dobraram em 2017 em relação ao ano anterior e atingiram US$ 2,7 bilhões. No relatório “Estado da tecnologia europeia”, o fundo Atomico sustenta que se tornaram maiores que nunca as chances de a Europa decolar, com a geração de novos negócios com potencial para se tornar gigantes globais. Ainda de acordo com o estudo, há no continente mais projetos de blockchain e mais pessoas usando ICO (Inicial Coin Offering, na sigla em inglês) para levantar capital do que em qualquer outro continente. Diversos fatores contribuem para tornar a região um laboratório fervilhante de fintechs: praças financeiras com influência global, como Londres, Frankfurt e Zurique; um debate público intenso sobre segurança de dados e privacidade, com pressão contínua sobre as empresas de TI; boas escolas que oferecem carreiras em tecnologia (há 5,5 milhões de desenvolvedores de software na Europa) e uma cena hacker hiperativa, incluindo países do Leste.

Empreendedores e pesquisadores avançam mesmo enquanto o continente lida com uma questão polêmica: a desunião digital. São 28 países com 28 regras diferentes.  Para alguns, isso explica por que um mercado de 500 milhões de pessoas, com população educada e alto poder aquisitivo, fica em terceiro lugar. Andrus Ansip,  vice-presidente da Comissão Europeia para criação de um Mercado Único Digital, fez um desabafo numa conferência em Budapeste, em novembro. Há 25 anos, disse, a Europa se uniu, enfraquecendo as fronteiras geográficas entre seus integrantes. Mas hoje, segundo ele, os países do bloco erguem “todos os dias” barreiras digitais entre si. “A mensagem que passamos para nossas startups é ‘fique em casa ou vá para os Estados Unidos, onde existe um mercado único e saudável de 300 milhões de clientes. Temos de criar um Mercado Digital Único”, diz.

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DO ZERO SEBASTIAN SIEMIATKOWSKI, COFUNDADOR E CEO: ELE E OS SÓCIOS COMEÇARAM SEM CAPITAL NEM CONHECIMENTO TECNOLÓGICO

Por essa visão, fica fácil explicar por que talentos excepcionais como os irmãos irlandeses John e Patrick Collison não estão na Europa. Partiram para estudar nos Estados Unidos, e não mais voltaram. Em seis anos, construíram na Califórnia a Stripe — fintech que administra transações de e-commerce — e hoje pensam em como investir uma fortuna de US$ 9,2 bilhões. Aos 27 e 29 anos de idade, são os mais jovens bilionários do mundo. Casos assim, no entanto, parecem ter servido para acordar as autoridades da União Europeia. O bloco anunciou em março deste ano um plano de ação para fintechs, com 23 medidas para apoiar projetos inovadores, derrubar barreiras e garantir segurança cibernética. Agora, os parlamentares elaboram medidas para harmonizar regras de crowdfunding. Isso depois de ter forçado os bancos a apresentar os dados de seus clientes que se mostrem interessados em experimentar novos prestadores de serviços. Com os dados em mãos, o cliente pode fazer melhores comparações de quanto paga e quais serviços recebe. Resultado: o nível de concorrência fica bem mais alto. Essa é a ideia por trás da PSD2 (Diretriz de Serviços de Pagamentos, na sigla em inglês), que a UE lançou em janeiro e tem de ser implementada por todos os países do bloco até setembro. O Reino Unido foi o primeiro a adotar as novas regras, em janeiro mesmo. A exigência de abertura dos dados tende a beneficiar as fintechs.

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Apesar de casos como o dos irmãos Collison, o obstáculo da confusão de regras foi atropelado sem cerimônia por outros tantos visionários, como o alemão Valentin Stalf, de 32 anos, CEO e cofundador da N26. No fim do ano passado, com menos de dois anos de atividade, a empresa já havia conseguido autorização para atuar como banco em nada menos que 17 países europeus, e anunciou que em 2018 entraria no mercado americano. A expansão impressionante conquistou o apoio de Peter Thiel e atraiu em março uma nova rodada de investimento, de US$ 160 milhões, da qual participou a Tencent. Outro que parece não ter muito tempo para se lamentar por problemas regulatórios é o sueco Sebastian Siemiatkowski, de 36 anos, CEO e cofundador da Klarna. O economista tinha 23 anos quando criou a empresa com dois amigos. O trio tinha tão pouco dinheiro quanto domínio de tecnologia, mas mesmo assim conseguiu impressionar a investidora-anjo sueca Jane Walerud, uma celebridade local no ecossistema empreendedor escandinavo. A Klarna cresceu, tornou-se um unicórnio e conseguiu em 2017 autorização para atuar como banco em toda a União Europeia. Até junho, era a fintech mais valiosa do continente (leia mais, nos quadros, sobre startups quentíssimas na Europa).

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SER AMADO O ADMINISTRADOR ALEMÃO VALENTIN STALF FUNDOU O N26 COM O AMIGO MAXIMILIAN TAYENTHAL. É O CEO DA EMPRESA E COSTUMA DIZER QUE O OBJETIVO DA EMPREITADA ERA CRIAR UM BANCO QUE O MUNDO “AMASSE USAR”

O ataque aos bancos tradicionais continua, sob liderança de gente muito, muito jovem e disposta a testar limites. Mark Lamb, fundador da maior plataforma de bitcoin no Reino Unido, a Coinfloor, tem 23 anos. Essa jovialidade toda, que pega muito bem em setores como redes sociais, games e moda, ainda dá alguma esperança a players tradicionais do setor financeiro. Eles se perguntam: será que os clientes vão mesmo trocar uma conta bancária num grande banco, que levou décadas para obter a confiança do público, por um nova empresa digital comandada por alguém com menos de 30 anos? “No início, fintechs achavam que iam destruir bancos em cinco ou dez anos”, diz Andreas Dietrich, especialista em mercado financeiro e professor na Universidade de Lucerna. “Descobriram que não é bem assim. Os bancos têm muito poder de distribuição e confiança dos usuários, o que é muito importante se você quer construir um modelo B2C.” Pode ser que as mudanças demorem mais a ocorrer — mas certamente não vão ser interrompidas. Trevor Pavitt, um dos fundadores da gestora de fortunas Lyra Wealth Management, em Genebra, diz que o raciocínio de Dietrich vale para o presente, mas não se sustenta no futuro. “O Walmart tinha poder de distribuição e lojas em cada esquina, por isso nunca acreditou que a Amazon chegaria onde chegou. Hoje, a Amazon vale muito mais que o Walmart. Os bancos estão sendo atacados de todos os lados”, diz. Pavitt acha que o futuro dos bancos reside na especialização. “Essa história de banco que faz tudo vai acabar. Esse modelo virou um dinossauro, como o Walmart.”

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TRÂNSITO MATISS ANSVIESULIS ESTUDOU NOS EUA E CRIOU A EMPRESA EM SUA TERRA, A LETÔNIA. DEPOIS, MUDOU-A PARA A POLÔNIA

Não que os bancos estejam parados, como dinossauros observando a aproximação de um meteoro. Mesmo sob restrições legais, como não operar com criptomoedas, eles se lançaram às compras de nacos de startups e aos testes de conceito. O maior banco da Suíça, o UBS, abriu um laboratório em Londres só para experiências com blockchain. O britânico Barclays criou uma parceria com a corretora de criptomoedas Coinbase e anunciou, este ano, a criação de um braço de corporate venture, o BUKV, dedicado exclusivamente a comprar participações em empresas novatas que trabalhem com blockchain. Seu concorrente HSBC fechou acordos de colaboração com seis fintechs, como a desenvolvedora de computação cognitiva CustomerMatrix, dentro de um programa de US$ 200 milhões para investimentos em pequenos negócios de base tecnológica. Já o espanhol Santander dobrou no ano passado o orçamento de seu braço de corporate venture, o InnoVentures (que fez em 2018 seu primeiro investimento no Brasil). O holandês ING vem se movimentando como se estivesse em plena guerra: fez investimentos e parcerias com nada menos que 115 fintechs entre 2014 e 2017, e anunciou um fundo de € 300 milhões para comprar mais participações estratégicas até 2021. “Os bancos entendem hoje melhor o que são as fintechs e veem que há muita inovação e coisa boa vindo delas”, avalia Dietrich, da Universidade de Lucerna. “Viram também que, em algumas áreas, estarão melhor se colaborarem com startups do que se tentarem fazer tudo sozinhos.”

Há uma boa dose de sabedoria nessas palavras. Os bancos já perceberam outro movimento ameaçador. Companhias gigantes de tecnologia da informação, como Alibaba, Amazon, Apple e Google, também têm seus planos para o setor financeiro, com serviços variados de pagamentos e empréstimos. Essas empresas, assim como as fintechs, também podem se beneficiar da regra que obriga as instituições financeiras a apresentar os dados de seus clientes. O especialista Dietrich acredita que venha daí a maior ameaça. “As grandes de TI têm diversas vantagens: muito dinheiro para investir, muitos usuários, muita informação sobre cada usuário. Sabem quais são os clientes bons, o que estão comprando, quanto dinheiro têm”, afirma.

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SÓ TOKENS OLGA FELDMEIER, 42 ANOS, FUNDADORA E CEO, FOI ALTA EXECUTIVA NO UBS E NO BARCLAYS. EM 2017, RESOLVEU EMPREENDER

Francisco González, CEO do banco espanhol BBVA, alertou numa entrevista ao jornal inglês Financial Times que as empresas de TI “vão tomar o lugar dos bancos”. Pediu para os governos reagirem porque precisam, na opinião dele, “trazer ordem para essa mudança maciça”. Acrescentou que a chegada de outros players ao setor “pode trazer um risco para a estabilidade financeira”. A reação de González parece defensiva — pode-se ver manifestações parecidas quando empresas que se acreditam protegidas por alguma barreira de entrada veem-se, de repente, diante de novos concorrentes. A manifestação do executivo merece, porém, atenção. O setor financeiro é muito regulado por seu potencial multiplicador. Se funciona bem, o crédito acelera negócios e empregos. Se falha, facilmente contamina o resto da economia e, em casos graves, pode gerar crises sistêmicas, em grande escala. Por isso, criadores de fintechs também têm responsabilidade especial se comparados com outros tipos de empreendedores, e enfrentam maiores obstáculos regulatórios. E a Europa, colcha de retalhos de regras, torna-se um campo de testes radical para as novidades no setor. De qualquer forma, para os bancos, tem mais sentido adiantar-se e aliar-se às pequenas empresas inovadoras do que esperar para ver os próximos passos de companhias como a Amazon, que, com uma só patada tecnológica, poderia ter um impacto avassalador, como bem sabe o mercado.

As fintechs vão conseguir entregar tudo que prometem, num setor tão regulado e com players tão poderosos, já acostumados ao jogo? Muitas vão ficar pelo caminho, não há dúvida. Discute-se muito a existência de bolhas de criptomoedas e de expectativas infladas com tecnologias empolgantes, como blockchain. “Com certeza, já é uma bolha”, diz o empreendedor carioca Marcelo Garcia, radicado na Suíça e um dos fundadores da Cryptoexplorers — empresa que leva ao país as melhores cabeças do mundo do blockchain e da criptografia. “Mas como aconteceu depois da bolha da internet, vão surgir empresas como Google, Apple, Facebook. A bolha faz parte.” É essa, certamente, a aposta desses novos talentos. E que ninguém mais acuse o Velho Continente de não oferecer fortes (e novas) emoções.

FONTE: ÉPOCA