INTERNET DAS PESSOAS

Como excluídos digitais brasileiros cansaram de esperar e criaram a própria rede

A filha de Michel Siqueira Manhães sai de casa ainda de pijama, puxa a camisa do pai e pede o celular. Quer acessar a internet. Ele cede. Ainda que banal, há algo de incomum na cena. A menina só se conectará porque Michel e outros moradores do bairro decidiram colocar a mão na massa: instalaram a própria rede de internet, já que provedores comerciais não quiseram plugar a comunidade de Marrecas, a 30 km do centro de Campos dos Goytacazes (RJ), mas que, offline, parecia bem mais longe do resto do mundo.

Seja por habitar áreas pouco atrativas a empresas de internet, seja por não ter condições de custear o serviço, Michel engrossava a estatística dos brasileiros excluídos digitalmente – grupo que reunia 30,2% da população do país em 2017, segundo o último relatório divulgado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Deixar de ser um número nesse vazio digital não é fácil, mas algumas pessoas estão fazendo isso às próprias custas. É gente simples, do interior do Rio de Janeiro aos quilombos de Penalva (MA), lugares visitados por Tilt.

Após superar a burocracia regulatória, a dificuldade técnica e uma certa má vontade dos poderosos, eles estão descobrindo que melhorar de vida ou garantir a cidadania está a um clique de distância — assim como Netflix, WhatsApp, YouTube etc. Esta reportagem é sobre essas pessoas.

Com a internet, ninguém precisa morrer para denunciar crimes Entre os mais de 400 km que separam São Luís da cidade de Penalva, no Maranhão, o sinal de celular oscila entre o 4G e o nenhum. O município, a mais de 6 horas de viagem da capital, é cravejado de comunidades quilombolas – são 180.

Não raro, o interesse de fazendeiros entra em choque com esse modo de vida. O ano de 2018 registrou um aumento de 35,6% no número de pessoas envolvidas em conflitos no campo no Brasil, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT). O Maranhão ocupa o terceiro lugar em ações de pistolagem contra famílias, e é segundo em conflitos por terra, que atingiram 16.154 famílias em 69 cidades.

Muita gente já morreu nessa questão de conflito entre fazendeiro e a comunidade. O tio do presidente da associação foi morto do nada. O fazendeiro queria adentrar na terra dele. Ele não deixou. Geovânia de Souza Aires, uma das líderes comunitárias do Bairro Novo.

Antes da internet, denunciar crimes não era coisa simples. “Uma vez que um cara veio fazer a denúncia, e os fazendeiros foram atrás dele lá na prefeitura”, diz Maria Nice, mãe de Geovânia e presidente da associação das comunidades quilombolas de Penalva. Isso mudou, diz dona Nice. Quando um crime ocorre, a notícia corre pela internet até que seja transmitida às autoridades, sem que alguém tenha de se deslocar das longínquas comunidades para o centro da cidade e corra o risco de ser visto.

A internet comunitária chegou ao local em 2016, quase que por acaso. Na época, Geovânia, formada em pedagogia, era bolsista de mestrado em que moradores mapeavam o que órgãos oficiais não captam, como conflitos ambientais e por terra, além de aspectos da cultura tradicional.

Os responsáveis pelo mestrado viram na internet uma saída para os moradores registrarem as ameaças que sofriam sem que corressem ainda mais riscos. Acionaram o Instituto Nupef (Núcleo de Pesquisas, Estudos e Formação), entidade que estuda como a tecnologia pode promover direitos humanos e justiça social. Outras organizações também fazem esse papel no país, como o Instituto Bem Estar Brasil (IBEBrasil), que atuou em Campos dos Goytacazes, em parceria com a incubadora da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) e o Instituto Federal Fluminense (IFF), e o Artigo 19. Elas ajudam, mas são os moradores que constroem e mantêm a internet funcionando.

Mão na massa traz internet mais acessível para comunidades

Manoel Pedro Chagas, junto com o Michel, lá do começo do texto, foi quem começou a instalar a rede em Marrecas, em 2010. Mas antes de partir para a ação, os moradores passam por oficinas, para aprender conceitos técnicos. Nessas orientações, “switch”, “roteador”, “link de internet” e “fibra óptica” deixam de ser palavras abstratas e entram no dia a dia.

A grande sacada da rede comunitária é que ela corta caminho (não paga tributos e não tem lucro), por isso, é mais barata do que a rede comercial. A capacidade de conexão geralmente é vendida no atacado por provedores. Já a internet que chega a sua casa é uma operação de varejo, vendida por companhias que compram link de internet ou são elas mesmas as detentoras do tráfego. Na rede comunitária, a comunidade é quem compra essa capacidade de conexão.

Para se ter ideia, o pessoal da outra comunidade, Penalva, era atendido por um provedor de conexão a rádio, que custava R$ 150. Essa não era uma opção para os moradores, que vivem do extrativismo vegetal, principalmente do coco-babaçu, da pesca e da agricultura familiar.

Agora, a internet custa R$ 20 por mês. Em Campos dos Goytacazes, o link é de 40 MB. Ele chega de fibra óptica até a antena instalada no hotel de uma praia próxima. De lá, viaja até o receptor na casa de Michel, que o distribui para a vizinhança. As famílias com velocidade de até 3 Mbps pagam R$ 20, enquanto as que navegam com 5 Mbps pagam R$ 50 — o pagamento é uma taxa de associação.

Em Penalva, são oito rádios que recebem a conexão via satélite da HuguesNet. O link contratado tem franquia de 25 GB (GigaByte) e sai por R$ 280 ao mês. Essa capacidade é compartilhada por quem se torna membro da associação do bairro. Os que cedem sua casa para abrigar o aparelho de rádio contribuem com R$ 10 e os demais, com R$ 20. A velocidade da internet para os quase 45 usuários chega a 10 Mbps (Megabits por segundo).

Quando tem qualquer problema, de sinal ou de uso, são os administradores que rede que resolvem. Em Marrecas, Manoel, Michel e outros técnicos cuidam do sinal. Em Penalva, Geovânio, irmão de Geovânia, e outros três homens prestam auxílio.

Geovânia conta que a internet era aberta no começo, o que logo gerou um problema. “Teve pessoa que mudou o nome da rede e colocou ‘Maria’. Um monte de gente ficava na beira do galpão fumando a noite inteira, fazendo tráfico de drogas e usando a internet. Pra eles era um conforto”, diz.

Para solucionar a questão, ela criou um sistema de senhas, que têm de ser renovadas. A dos moradores expira a cada 30 dias, enquanto a dos visitantes dura apenas 2 horas.

FONTE: UOL