Inteligência Artificial em prol dos cidadãos: da digitalização dos serviços à governança de dados

Sendo a IA uma tecnologia disruptiva, sua implementação requer transformar processos e rotinas organizacionais, seja no setor público ou setor privado

A Europa, por meio de diversos organismos, tem aplicado a IA para formar cidades inteligentes – além de contribuir para a sensibilização da sociedade sobre os benefícios e malefícios da tecnologiaFoto: Unsplash)

Em 8 de julho último, as regiões da Emilia-Romagna, na Itália, e da Catalunha, na Espanha, assinaram um acordo de cooperação em torno da sustentabilidade e da transformação digital, objetivos estratégicos da Comissão Europeia abordados por diversos documentos, entre eles o “Shaping Europe’s Digital Future” (2020).

No mesmo dia, as cidades de Bolonha e Barcelona firmaram o projeto “Gêmeos Digitais Urbanos” (“Digital Twin City”), inserido no conceito de “Smart Cities” ou, como alguns preferem chamar, de “revolução cognitiva das cidades”. Trata-se de um sistema inovador de gestão pública baseado em big data e inteligência artificial (IA). O projeto ilustra os potenciais benefícios da IA em prol dos cidadãos, desde que sejam adotadas diretrizes de governança para mitigar os danos, inclusive ao meio ambiente.

Com esse propósito, recentemente a Comissão Europeia (CE) lançou o manual “AI Watch: Road to the Adoption of Artificial Intelligence” (2022),  ponderando que a governança pública, na perspectiva de gestão democrática, “está mudando rapidamente da digitalização de funções e serviços para a gestão da governança apoiada por tecnologias emergentes como a inteligência artificial”.

O manual fornece recomendações aos formuladores de políticas para a adoção e uso confiáveis da inteligência artificial pelo setor público na Europa, alinhado com o compromisso compartilhado pela Comissão Europeia, Estados-Membros e Países Associados em torno do  documento de revisão da proposta de regulamentação da IA, “Artificial Intelligence Act” (2021), (“Coordinated Plan on Artificial Intelligence 2021 Review“. O manual é uma boa referência para a Comissão de Juristas do Senado Federal do Brasil, empenhada na elaboração de uma proposta de marco regulatório da IA, a partir do Projeto de Lei 21/2020 aprovado pelo plenário da Câmara dos Deputados em 29 de setembro de 2021, a ser entregue em novembro próximo para a avaliação dos Senadores.

Seguindo a lógica que antecede o estabelecimento de um marco regulatório (primeiramente, identificar os conflitos reais), em 2018 a Comissão Europeia lançou o “AI Watch” (“Commission Knowledge Service to Monitor the Development, Uptake and Impact of Artificial Intelligence for Europe”), serviço de reconhecimento para monitorar o desenvolvimento, a aceitação e o impacto da IA na Europa visando facilitar a implantação da Estratégia Europeia para a Inteligência Artificial. O observatório é uma iniciativa da Comissão Europeia em parceria com o Centro Comum de Investigação (JRC) e pela Direção-Geral das Redes de Comunicações, Conteúdos e Tecnologia (DG-CONNECT), além da indústria, da academia, dos governos e de organizações intergovernamentais para fornecer análises detalhadas e dados confiáveis. O foco é a capacidade industrial e tecnológica, as iniciativas políticas nos Estados-Membros, a aceitação e os desenvolvimentos técnicos da IA e seu impacto na economia, sociedade e serviços públicos.

O manual da Comissão Europeia identifica uma série de barreiras a serem enfrentadas pelo setor público para mitigar os riscos da adoção da inteligência artificial, entre elas a) gerenciamento inadequado de dados; b) acesso insuficiente a grandes volumes de dados de alta qualidade; c) compartilhamento insatisfatório de dados através das fronteiras organizacionais; d) governança de dados subdesenvolvida; e) cultura organizacional conflitante; f) falta de habilidades e conhecimentos; g) aumento da concorrência global; h) leis e regulamentos dispersos; i) falta de confiança; e j) impactos insuficientemente conhecidos.

A partir de pesquisa on-line com os Estados-Membros e dois workshops, a equipe do manual produziu 16 recomendações, agrupadas em quatro “Áreas de Intervenção”: 1) promover uma IA orientada aos valores da UE, inclusiva, centrada no ser humano e confiável no setor público, com três recomendações; 2) melhorar a governança coordenada, convergência de regulamentações e capacitação, com cinco recomendações; 3) construir um ecossistema digital de IA compartilhado e interativo, com cinco recomendações; e 4) aplicar e monitorar a sustentabilidade por meio de estruturas cocriadas de avaliação de impacto de IA orientadas aos valores da UE, com três recomendações.

A intenção é atualizar continuamente o manual com a colaboração de organizações internacionais e partes interessadas dos países europeus representando instituições, organismos científicos, econômicos, operacionais e comunidades de práticas, ou seja, um amplo ecossistema de colaboradores. A Comissão Europeia está ciente do papel do setor público como exemplo para a setor privado, referência baseada em valores públicos tais como: a) valor operacional (incluindo colaboração, eficácia, eficiência, orientação ao usuário); b) valor político (incluindo prestação de contas, desenvolvimento econômico, equidade na acessibilidade, abertura, participação cidadã, transparência); e c) valor social (incluindo inclusão, qualidade de vida, autodesenvolvimento, sustentabilidade ambiental, confiança).

Sendo a inteligência artificial uma tecnologia disruptiva, sua implementação exitosa requer transformar processos e rotinas organizacionais, além da cultura organizacional, seja no setor público ou setor privado. É crítico equipes multidisciplinares, com habilidades sociotécnicas combinando capacidades de gestão com o entendimento da tecnologia. A inteligência artificial é um campo de conhecimento multidisciplinar.

A Europa, por meio de diversos organismos, principalmente a Comissão Europeia, tem contribuído fortemente para a sensibilização da sociedade sobre os benefícios e malefícios da inteligência artificial, extrapolando seu próprio território. Suas diretrizes, alertas, recomendações e esboços regulatórios têm respaldado iniciativas similares mundo afora. Contudo, a liderança no desenvolvimento e na implementação da tecnologia continua pertencendo, com larga margem de vantagem, aos EUA e à China. Estão nesses países as nove big techs cujos modelos de negócio são baseados em sistemas de inteligência artificial – Amazon, Google, Apple, Facebook, Microsoft, IBM, Alibaba, Tencent, Baidu – bem como os principais centros acadêmicos de pesquisa e desenvolvimento da IA.

O Brasil está “fora do mapa” em relação ao desenvolvimento de IA, somos apenas fornecedores de dados e usuários intensivos de plataformas e aplicativos que mediam nossa comunicação e sociabilidade por meio de algoritmos de inteligência artificial. Em paralelo, avança a adoção da IA no varejo, inclusive financeiro (bancos, financeiras, seguradoras); no setor público, fundamentalmente, na justiça e na segurança; no RH (seleção, contratação) e na saúde. Esse cenário peculiar recomenda-se seja contemplado pelo Senado no “marco regulatório da IA”, ou seja, criar  condições favoráveis para ecossistemas de produção de tecnologias de IA e, simultaneamente, proteger os cidadãos brasileiros dos seus potenciais danos.

FONTE: https://epocanegocios.globo.com/colunas/IAgora/noticia/2022/07/inteligencia-artificial-em-prol-dos-cidadaos-da-digitalizacao-dos-servicos-governanca-de-dados.html