Horizonte 2030: acessibilidade digital e valorização do interior

Quando se fala do futuro próximo do interior é bom não esquecer que em 2030 a geração dos nativos digitais já terá pelo menos 30 anos e os ecossistemas digitais serão o quadro de atuação mais comum.

Agora que se discute a reprogramação do quadro comunitário 2014-2020 e as novas orientações estratégicas no horizonte 2030, importa retomar toda a discussão em redor da valorização do interior em novos moldes. Não se trata de reparação e mitigação de danos em consequência de acidentes climatéricos ou acontecimentos dramáticos com origem humana, trata-se, agora, de providenciar acessibilidade digital, autoestradas da informação, cidades inteligentes, novas cadeias de valor e novos mercados de trabalho a partir de plataformas digitais ao serviço dos cidadãos e dos territórios.

Com efeito, dado o carácter exponencial das tecnologias da informação e comunicação, programar e planear para uma década é uma verdadeira aventura que requer muita clarividência e discernimento por parte dos atuais policy-makers. Vejamos alguns aspetos da estratégia 2030 na linha do que aqui já escrevi sobre a “smartificação dos territórios”. É bom não esquecer que em 2030 a geração dos nativos digitais já terá pelo menos 30 anos e os ecossistemas digitais serão o quadro de atuação mais comum.

As grandes orientações estratégicas para 2030

Na minha opinião, as grandes orientações estratégicas para 2030, à luz de um conceito amplo de acessibilidade digital e valorização do interior, podem ser alinhadas como segue:

  • Uma boa cobertura e acessibilidade digitais por via de autoestradas da informação para todo o território nacional,
  • smartificação do território, por via de uma nova geração de utilitiese de bens comuns   de acordo com um plano de reconfiguração de redes integradas de pequenas e médias cidades do interior,
  • A transformação das instituições de ensino superior espalhadas pelo país em instituições-plataforma, cumprindo novas missões de problem-solvingproblem-saving e investigação-ação,
  • A transformação das autarquias em verdadeiras lojas do cidadão e em prestadoras de serviços de uma nova geração (serviços ambulatórios ao domicílio) tendo em vista uma política de bem-estar para as pessoas, lá onde elas vivem.
  • Enfim, a conceção e implementação de uma nova geração de políticas do território que transforme os problemas endémicos do interior no “milagre do interior”, no que diz respeito à criação de condições para relançar os mercados do emprego e do trabalho, não só por via de um programa para “as startup da 2ª ruralidade” (ver Público, 17 março 2018) mas, também, de um programa alargado para a estruturação do chamado “4º setor”, ou seja, a congregação do setor colaborativo, social e solidário do próximo futuro.

Ecossistemas inteligentes e novas cadeias de valor para 2030

Há variáveis externas ou exteriores cujos episódios condicionarão sempre a formação das cadeias de valor seja qual for o seu âmbito geográfico. Desde logo, as alterações climáticas cujos episódios, cada vez mais aleatórios, modificam substancialmente a gestão das expectativas e do risco envolvido e, portanto, as decisões sobre o que produzir, onde produzir e em que condições. Em segundo lugar, as alterações demográficas que modificam o fluxo intergeracional de mão-de-obra e a programação das atividades agrícolas e agroindustriais, assim como, a organização dos mercados de trabalho. Em terceiro lugar, a transformação digital em curso que modifica substancialmente o perfil das cadeias de valor, a estrutura de custos e preços e a sua geografia física. Finalmente, os fluxos migratórios, não apenas de pessoas e capitais, mas, também, de plantas e animais, que buscam sobreviver em outras paragens.

De um ponto de vista mais conceptual, o conceito de cadeia de valor irá também evoluir de uma versão mais restritiva e convencional, a fileira económica, para uma versão mais compreensiva que considera não apenas a sua responsabilidade ambiental e social, mas, também, o “ecossistema inteligente” que acolhe no seu seio os últimos desenvolvimentos da revolução digital e que em matéria de geografia do valor nos transporta para novos imaginários territoriais onde a marca, a multidão e o marketing (os 3M) são determinantes para a conceção e o design dos produtos.

Em todos os casos, como se compreende, a geografia das cadeias de valor, mais domésticas e/ou mais internacionalizadas, dependerá muito de opções de modelo de negócio e política empresarial. Com a revolução digital já em curso assistiremos a uma profunda transformação na configuração das cadeias de valor, sendo que os efeitos-rede e os fatores imateriais passarão a determinar o perfil da “cadeia de valor METI” (matéria, energia, trabalho, informação). Eis algumas alterações nas cadeias de valor:

  • Não se falará tanto em fileira de produção, passará a falar-se mais em cadeia de valor e ecossistema inteligente.
  • A cadeia de valor desmaterializa-se e desloca-se para os fatores imateriais a montante e a jusante da produção, sobretudo para junto dos clientes (a multidão).
  • O acesso será mais importante do que a propriedade, isto é, passa-se gradualmente de uma economia de produtos para uma economia de serviços.
  • A economia das redes, mais descentralizadas e distribuídas, por via de plataformas tecnológicas e suas aplicações, passará a ser o núcleo central da criação de valor, mudando a posição relativa dos atores da fileira.
  • A economia das multidões e os mercados biface passarão a concentrar o foco das atenções, sobretudo, a figura do consumidor-produtor (prosumidor).
  • A recolha, tratamento e gestão de bancos de dados serão o pilar mais valioso das cadeias de valor e o cloud computing o seu instrumento mais poderoso.
  • A economia empresarial dos novos empreendimentos digitais mudará profundamente o negócio bancário e a natureza das operações financeiras em direção ao capital de risco e ao financiamento participativo.
  • A economia empresarial dos novos modelos de negócio digitais mudará profundamente a economia do trabalho e a proteção social da cadeia de valor no próximo futuro.
  • A cadeia de valor e a sua configuração acompanharão, de perto, o que a política pública fizer em matéria de regulação digital.

A valorização do interior em 2030

Num país tão pequeno e tão bem servido de vias de transporte e com o acesso crescente e generalizado das gerações mais novas às tecnologias digitais, o problema da valorização do interior e do mundo rural tem necessariamente de ser pensado e equacionado em outros termos e condições. Estou a pensar, por exemplo, na rede de ensino superior, universitário e politécnico, que cobre o país todo e, em particular, no papel das escolas superiores agrárias e nos alunos que delas saem todos os anos nas áreas de produção agrícola, produção animal e produção florestal, mas, também, de engenharia alimentar e do ambiente. Das tecnologias da informação e comunicação (TIC) aos territórios inteligentes e criativos (TIC) da 2ª ruralidade, será, pois, o grande desafio para a valorização do interior. Serão as TIC uma oportunidade única para o grande país do interior, para a formação da sua inteligência coletiva, serão os recursos intangíveis e a produção de conteúdos a eles associados os fatores inovadores e decisivos para editar os territórios inteligentes e criativos (TIC) do nosso interior?

Tomemos o exemplo da realidade aumentada (RA) e da realidade virtual (RV). A realidade, hoje, já não é o que era. Com efeito, com a realidade aumentada e com a realidade virtual nós acrescentamos realidade à realidade, viajamos no tempo, recuperamos recursos, misturamos o passado virtual e o futuro virtual com a realidade presente. Passamos a ter uma “realidade tridimensional” e, em bom rigor, ambientes digitais em vez de realidades presenciais. Se quisermos, realidades tangíveis e materiais serão transformadas em ecossistemas inteligentes de aprendizagem, conhecimento e recreação, que serão outros tantos recursos intangíveis para juntar aos recursos materiais com os quais os nossos singelos territórios do interior estão habituados a lidar.

Aqui está uma grande oportunidade. Estes recursos intangíveis – a realidade aumentada (RA) e a realidade virtual (RV) entre outros – aumentam a cadeia de valor dos territórios já existentes convertendo-os em territórios inteligentes e criativos, mais extrovertidos e abertos ao mundo. A realidade aumentada é um ambiente que mistura elementos do mundo real com elementos do mundo virtual, sob o modo interativo, em duas e três dimensões e processada em tempo real. A realidade virtual é a simulação da realidade através da tecnologia, é a compreensão de um universo ficcional, pleno de significado para o entendimento do universo real e a sua transformação digital.

Hoje em dia praticamente todas as áreas de atividade estão ao alcance das TIC: da silvicultura preventiva à ecologia do fogo, da hidrologia à bioengenharia, da agricultura de precisão à luta biológica e à arquitetura da paisagem, da telemedicina aos serviços ambulatórios ao domicílio, já para não referir a verdadeira revolução na visitação turística, que começa por ser uma pré-visitação para se transformar, depois, numa visitação interativa. Nesta visitação interativa, acoplada com toda a espécie de conteúdos, a RA e a RV permitem-nos a observação, em várias dimensões, de endemismos locais, de sítios arqueológicos, de ruínas milenares, de monumentos históricos, de pinturas e arte sacra, de paisagens literárias, de épocas históricas e heróis locais, autênticas viagens no tempo que fazem reviver locais “aparentemente abandonados”.

Em síntese, deixamos registados os aspetos que são fundamentais para a valorização do interior no horizonte 2030. Em primeiro lugar, a enorme variedade de recursos imateriais que podem ser acrescentados aos recursos materiais originários, em segundo lugar, a emergência de um importante setor de produção de conteúdos, quer históricos, literários ou artísticos, em terceiro lugar, o crescimento daquilo que podemos designar como a “ludificação dos territórios” a partir, justamente, do seu vasto imaginário simbólico e cultural, em quarto lugar, a importância de transformar eventos ocasionais em atos orgânicos duradouros tendo em vista estruturar uma pequena economia local, finalmente, a oportunidade única de regressarmos à “celebração ou sublimação de um lugar” que já julgávamos perdido ou abandonado.
Instituições-plataforma e inteligência coletiva territorial

Outro aspeto fundamental para a valorização do interior é a criação de instituições-plataforma e a formação de inteligência coletiva territorial. É aqui que reside o lado mais prometedor das tecnologias de informação e comunicação ao serviço dos territórios mais desfavorecidos e é aqui que regresso ao papel essencial das universidades e escolas politécnicas, sobretudo na forma como se ocupam dos territórios onde estão implantadas e como promovem o empreendedorismo e a empregabilidade dos seus cidadãos mais habilitados, pois existe o risco real de as regiões mais debilitadas perderem esses recursos tão preciosos que são os seus nativos digitais.

Com efeito, construir redes regionais de ensino superior e uma inteligência coletiva própria é um imperativo categórico para estes territórios do interior e é neste contexto que emerge o lado mais benigno das plataformas digitais, em especial no que diz respeito às várias modalidades de economia colaborativa. Trata-se, além do mais, de construir um território-desejado que seja capaz de forjar um imaginário identitário com os seus sinais distintivos territoriais, digamos, a sua iconografia, imagem de marca e autoestima regional. As instituições de ensino superior, em primeira instância, detêm uma responsabilidade direta, desde logo porque possuem um saber analítico, instrumental e tecnológico que podem colocar ao dispor da comunidade a que pertencem.

Por outro lado, pelos saberes e competências que reúne e convoca, a universidade ou instituto politécnico está em excelentes condições para se converter numa espécie de meta-plataforma regional, tanto mais quanto ocupa o território nacional numa base ou rede praticamente distrital. Quer dizer, a universidade ou politécnico não só constitui a sua própria plataforma de ensino-investigação-extensão como se institui em meta-plataforma da sua região, estabelecendo, se quisermos, uma espécie de Big Data Regional para o seu território. Com efeito, nenhuma outra instituição regional possui as ligações internacionais e as competências técnico-científicas de uma instituição de ensino superior, já para não referir os equipamentos e infraestruturas que podemos encontrar nos seus espaços e instalações. Além disso, como meta-plataforma regional a instituição de ensino superior fica investida na qualidade de principal ator-rede da região e, nessa condição, como o centro de racionalidade por excelência da política de desenvolvimento regional.

O caso especial da estruturação do 4ºsetor

Um caso especial da economia das instituições-plataforma tem a ver com a estruturação do chamado “4º setor”. Se quisermos, configura-se uma espécie de quarto sector pós-capitalista que cresce e alastra na zona de interface entre a economia pública dos bens e serviços convencionais, a economia social e solidária das instituições particulares de assistência e solidariedade social na sua aceção mais ampla, mas, também, a economia das organizações não-governamentais ligadas ao desenvolvimento local, ao ambiente e à cooperação e desenvolvimento e, bem assim, a novel economia dos bens comuns colaborativos ligada aos novos ecossistemas inteligentes de comunicação e com modelos de negócio mais cooperativos e partilhados.

Nesta linha de argumentação, o “Universo CO” – colaborativo, contributivo, cooperativo, comunitário – contemplaria uma gama muito variada de bens e serviços comuns e partilhados como, por exemplo: os consumos colaborativos de recursos ociosos, a produção social pelos pares, os serviços partilhados pelas comunidades de utilizadores, o financiamento participativo, os espaços comuns de criação criativa, a aprendizagem e a formação colaborativas, as moedas criativas e complementares, entre muitos outros empreendimentos da chamada economia colaborativa. Para a estruturação deste extenso 4º setor seria necessário a promoção de infraestruturas de banda larga ou autoestradas da informação, uma cultura digital disseminada feita de startups e plataformas tecnológicas, redes sociais e sistemas de comunicação interativos, programação e software open source e modelos de negócio abertos a começar pelo open datada administração pública.

De forma caótica ou estruturada, estou convencido de que o 4º setor crescerá imparavelmente. Em particular, a desintermediação comercial e institucional, isto é, o setor terciário (o 3º setor), passará por um profundo emagrecimento e muitas das suas atividades mais convencionais transitarão diretamente para os clientes/utilizadores através de operações e procedimentos colaborativos e cooperativos de partilha. O mesmo se diga do grande setor da solidariedade social que poderá ser “adjudicado” por ONG com estatutos diversos, do setor do ambiente e da economia circular e, também, o setor da cooperação e desenvolvimento com países terceiros. A estes setores teremos, ainda, de juntar duas grandes áreas com marca cosmopolita muito impressiva, a saber, a educação e investigação científica e tecnológica e todo o setor criativo e cultural, já para não falar do trabalho de voluntariado que geralmente acompanha muitas destas atividades.

A este imenso conjunto de setores em trânsito paradigmático damos aqui a designação de “4º setor”.
Este 4º setor crescerá, numa primeira fase, em estado de emergência, nas margens do sistema instituído, sob a forma mitigada de responsabilidade social e ambiental, num segundo momento de forma mais organizada à medida que os nativos digitais e os empreendedores tecnológicos assumirem o controlo da situação nas suas próprias mãos, com muito menos economia de estado e muito mais economia partilhada em inúmeras aplicações.

No fundo, estamos a construir uma “economia de fusão e aprendizagem” em novas bases. Como todas estas mudanças substanciais estarão sustentadas direta ou indiretamente em sistemas de informação e comunicação, a comunidade nómada dos colaboradores digitais estará sempre presente e será o ator principal desta grande mudança de paradigma. Nesta comunidade nómada vamos encontrar uma variedade muito grande de “espécies participantes”: estudantes Erasmus, bolseiros de investigação e doutoramento, imigrantes económicos, membros de plataformas tecnológicas, homens de negócios, os trabalhadores intermitentes das artes do espetáculo, espetadores e agentes de grandes eventos, membros associados de espaços de coworkinge de tiers-lieuxfreelancers de todos os tipos, voluntários em campos de férias e trabalho, etc.

Nota Final: Uma estratégia para a valorização do interior

Em síntese, uma estratégia de valorização do interior no horizonte 2030 deveria considerar os seguintes elementos:

  • Em primeiro lugar, concluir a cobertura e a acessibilidade digitais (as autoestradas da informação),
  • Em segundo lugar, conceber uma nova geração de utilities oferecida por agrupamentos de municípios em resultado da smartificação das redes de cidades pequenas e médias do interior,
  • Em terceiro lugar, levar as instituições de ensino profissional, técnico e superior, a praticar uma política de portas abertas de modo a facilitar o melhor regime de empregabilidade e formação,
  • Em quarto lugar, implementar uma revisão do direito fiscal de modo a promover e facilitar o melhor regime de pluriatividade e plurirrendimento no quadro do trabalho intermitente e do trabalho independente do universo da economia colaborativa,
  • Em quinto lugar, criar um regime de incentivos à inovação social e estruturação do 4º setor, de modo a garantir um direito fundamental de proteção social para lá da mera condição laboral em cada momento,
  • Finalmente, investir a instituição universitária como meta-plataforma regional e principal incubadora de startup na sua região, se quisermos, uma espécie de “campo de cultura” onde se cultivarão os perfis profissionais do próximo futuro tendo em vista aumentar a empregabilidade de um trabalhador cada vez mais pluriactivo e intermitente e numa sociedade onde o individuo “se produz a si próprio”.

FONTE:  O OBSERVADOR