Grandes empresas do agronegócio se reinventam com startups

 O resultado desta colheita de ideias é um mercado que deverá criar 240 bilhões de dólares em novos negócios até 2050

O espaço foi alugado num contrato que prevê aumentar ou diminuir a estrutura conforme a demanda da empresa. Um dos locais prediletos para reuniões de trabalho são as poltronas aconchegantes de uma cafeteria localizada logo na entrada do prédio. Ali, Alexander Turnbull, diretor global de exportações da Fonterra, explica o conceito: “O ambiente foi pensado para inspirar novas ideias”. A mudança já trouxe alguns resultados.

Desde que foi para lá, a Fonterra promove desafios de inovação relacionados com seus negócios — são os chamados hackathons, para usar o jargão dos jovens que sonham em enriquecer com ideias disruptivas. Pelas regras do concurso, os vencedores ganham verbas para tirar o projeto do papel. Das 110 propostas apresentadas, duas já saíram do estágio inicial: uma parceria com a varejista online Alibaba para a venda de leite fresco pela internet para a China e uma plataforma de relacionamento com consumidores chineses. Juntas, elas devem faturar 40 milhões de dólares já em 2018.

É pouco diante dos 13 bilhões de dólares que a Fonterra movimenta anualmente em mais de 100 países, mas é um alento em relação à dureza que tem sido vender leite ultimamente: devido ao excesso de oferta, a cotação global da matéria-prima, responsável por boa parte das receitas da Fonterra, caiu no ano passado ao nível em que estava logo após a crise mundial de 2008. O mergulho da tecnologia tem sido o caminho da sobrevivência para a Fonterra, gigante criada em 2001 com a fusão de cooperativas cuja fundação remonta ao século 19. “Nosso futuro é ser uma empresa de tecnologia para o agronegócio”, diz Turnbull.

Laboratório da americana Alltech: em busca de startups | Divulgação

A mudança na Fonterra é exemplar da era de inovação radical que cadeias inteiras de produção estão vivenciando — e que tem provocado mudanças profundas no agronegócio. Empresas tradicionais do campo estão investindo cada vez mais para ficar com uma cara de startup. O que leva grandes companhias do setor a fazer isso? O motivo principal é básico: o receio de se tornarem as próximas gigantes a morrer porque seus negócios ficaram obsoletos com o avanço digital, a exemplo da rede de videolocadoras Blockbuster e da pioneira da fotografia Kodak. Segundo um levantamento da consultoria de gestão EY, de 2014 a 2016, as maiores empresas e fundos do agronegócio do mundo investiram 10 bilhões de dólares em startups — quase a metade disso no ano passado. Quando considerado só o ano de 2017, outra estimativa, da AgFunder, empresa americana de análise de fusões e aquisições no agronegócio, mostra que o volume investido em startups do setor deve bater os 9 bilhões de dólares — em 2016 foram 6 bilhões.

Competição acirrada

Por trás da corrida por novas ideias no campo está o potencial de ganho de produtividade com as tecnologias agrícolas. Drones, satélites, tratores mecanizados e softwares de inteligência artificial podem identificar, em questão de segundos, uma porção de eventos imponderáveis que rondavam a lavoura até recentemente e que faziam a colheita render menos. Com essas tecnologias, é possível saber, por exemplo, se o fertilizante foi aplicado de maneira uniforme ou qual a melhor data para o plantio, itens que dependiam até então exclusivamente da experiência de quem produzia.

De acordo com uma estimativa do banco Goldman Sachs, se devidamente aplicadas nas fazendas, as inovações poderão agregar valor: serão 2 trilhões de dólares em produção de alimentos no mundo todo em 2050, 80% mais do que neste ano. Considerando que a produtividade nas terras aráveis do mundo precisará crescer 70% para atender ao aumento da população global até 2050, quando o planeta deverá ter 10 bilhões de habitantes, o mercado potencial para os fornecedores dessas tecnologias será de 240 bilhões de dólares. “A possibilidade de ganho ao longo da cadeia vai fazer com que no futuro o agronegócio abra mais espaço para as empresas de tecnologia”, diz o economista Jerry Revich, vice-presidente do Goldman Sachs em Nova York.

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Para sobreviver num mundo digital e mais competitivo, empresas tradicionais do agronegócio estão tentando adotar tecnologias criadas por startups, num movimento puxado pelos mercados onde há maior pujança agrícola. Felizmente, o Brasil está na lista. No início do ano, a montadora americana de tratores John Deere inaugurou em Campinas, no interior de São Paulo, um dos quatro centros de inovação da empresa no mundo para pesquisar o protótipo de trator autônomo operado por sensores. Quando estiver pronto, o veículo deverá gerar dados de produtividade na lavoura e no consumo de fertilizantes capazes de auxiliar o fazendeiro na própria gestão financeira da propriedade — essa é tida como uma das maiores transformações em 180 anos de empresa no mundo.

No escritório da John Deere, volta e meia os 100 pesquisadores participam de maratonas com gente que trabalha em startups do interior paulista, região que vem se destacando como celeiro de criatividade do agro. Mais recentemente, em agosto, a sucroalcooleira Raízen abriu um escritório semelhante, o Pulse, em Piracicaba, nos arredores da Esalq, a faculdade de ciências agrárias da Universidade de São Paulo. Ali, 13 desenvolvedoras de tecnologias em inteligência artificial, sensores e outras novidades têm a oportunidade de ver de perto os problemas da Raízen — e de resolvê-los. “Veio dali a tecnologia para automatizar boa parte dos 1 000 controles das nossas usinas, como os de pressão e temperatura dos fornos”, diz Fábio Mota, diretor de tecnologia da Raízen.

Fazenda da Fonterra na Nova Zelândia: a maior produtora mundial de laticínios quer ser uma empresa de tecnologia | William WEST/AFP Photo

Lá fora, onde a estratégia de grandes empresas do agro de aproximar-se de negócios disruptivos vem desde o começo da década, há casos consolidados de ganhos. Um bom exemplo disso é a expansão acelerada da fabricante americana de nutrição animal Alltech. Visitada pela reportagem de EXAME, a empresa foi criada há 37 anos em Lexington, cidade do estado de Kentucky rodeada de campos verdes e ranchos de cavalos. Em 2010, o negócio faturava 500 milhões de dólares. Hoje, as receitas estão em 2 bilhões de dólares, valor que deve dobrar até 2020 com a expansão da empresa, que tem operações em mais de 120 países. A receita da Alltech: adquirir startups que agreguem valor a seus produtos centrais, como um farelo para completar a ração bovina.

Uma das 14 aquisições já realizadas é a da irlandesa -Keenan, desenvolvedora de uma tecnologia de pequenos tratores para reposição de ração no comedouro dos animais. Equipados com câmeras e sensores capazes de detectar o que se passa durante a ruminação da boiada que atravessa seu caminho, os veículos enviam dados em tempo real sobre deficiências nutricionais a uma central da Keenan na cidade de Kilkenny, na Irlanda. A finalidade? Montar rações de acordo com a demanda do rebanho. “No futuro, as empresas do agronegócio vão ganhar dinheiro agregando serviços aos produtos”, disse Robert Walker, presidente da Keenan, num evento da Alltech.

Além disso, desde o ano passado a Alltech tem aberto os laboratórios a uma rede de startups de países como Austrália, Inglaterra e Indonésia. Tem, também, convidado essas empresas a expor suas soluções numa conferência que reúne 4 000 clientes e fornecedores em Lexington. “Proporcionamos acesso a mercados globais para manter por perto startups que ofereçam oportunidades conectadas com os nossos negócios”, diz -Mark Lyons, vice-presidente da Alltech.

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Para algumas grandes empresas, apenas a colaboração de startups, sem uma finalidade direta de compra e venda entre as partes, já basta para estimular o espírito inovador — o famoso “pensar fora da caixa”, que costuma ser sufocado pela proliferação de procedimentos internos numa corporação complexa. A operação brasileira da indústria química alemã Bayer começou a inovar depois de ouvir pedidos de fornecedores, muitos de pequeno porte, para uma intermediação comercial com os proprietários rurais, público-alvo dos insumos produzidos pela multinacional.

Desde 2015, a Bayer mantém no ar o AgroServices, uma espécie de portal de vendas diretas entre as partes, voltado apenas para o agronegócio. Nele é possível encontrar um rol de 200 produtos ou serviços úteis para a lida na roça, como seguros para o plantio ou consultorias de escoamento da safra. Cada compra rende pontos num programa de milhagens válido para os parceiros da ferramenta. O resultado: mais de 100.000 produtores rurais já utilizam o AgroServices regularmente e já movimentaram 170 milhões de reais em transações feitas por ali. É um negócio que, indiretamente, deu um impulso às vendas da Bayer.

Após dois anos de entrada no ar do site, a proporção de fazendeiros que compram insumos da empresa por mais de três safras seguidas, um indicador da fidelidade à marca, passou de 50% para 80%. O volume de vendas também melhorou. “O tíquete médio dos nossos clientes que fazem uso regular da ferramenta é o triplo do gasto pelos que estão fora dela”, diz Ivan Moreno, diretor de acesso ao mercado da Bayer no Brasil, que deve exportar a ferramenta para a América Latina.

Drones em campo: as novas tecnologias levam lavouras a render mais | Xinhua News Agency / Eyevine/Glow Images

A nova safra de ideias nas líderes do agronegócio é, em boa medida, resultado de investimentos públicos que, ao longo de décadas, garantiram parte do avanço tecnológico no setor. Na Nova Zelândia, o gigantismo da Fonterra se deve à alta produtividade conseguida pelos mais de 10 000 fazendeiros cooperados — em média, uma vaca neozelandesa produz 4 000 litros de leite por ano, duas vezes mais que as brasileiras. Por trás dos bons resultados está uma política pública arrojada de financiamento à inovação privada.

Dependendo do projeto, o desembolso a fundo perdido pode chegar a 40% do custo. Mesmo negócios estabelecidos, como a Fonterra, podem se candidatar aos recursos — recentemente a cooperativa obteve capital para pesquisas em novos ingredientes à base de laticínios. Os empréstimos são coordenados pelo Callaghan Institute, uma agência reguladora comandada por um conselho de representantes da iniciativa privada, do governo neozelandês e de uma dezena de centros de pesquisa criados oficialmente para conduzir as pesquisas pedidas pelas empresas — e que frequentemente são celeiros de hackathons e de startups. “Os pesquisadores de lá são incentivados a ajudar as empresas contratantes a encontrar clientes para as inovações agrícolas que criam”, diz o economista Murray Sherwin, que desenvolveu o sistema quando foi secretário executivo da Agricultura, de 2001 a 2010, e hoje está à frente de uma agência nacional de fomento à produtividade.

No Brasil, é longa a lista de problemas dos mecanismos governamentais à inovação, a começar pela falta de incentivos para que as universidades públicas colaborem com as empresas. Mas, mesmo assim, iniciativas têm despontado aqui e ali no sentido de apoiar o pensamento inovador no setor privado. Talvez o melhor exemplo seja o da Embrapa, com toda a sua história de técnicas desenvolvidas para o campo. Desde o ano passado, a estatal também vem promovendo hackathons para solucionar empecilhos tecnológicos de algumas culturas.

O maior desses eventos é o Ideas for Milk, competição apoiada por empresas de tecnologia, como a operadora de telefonia TIM, e que já recebeu quase 200 ideias. A reta final do concurso em 2017 está marcada para o início de dezembro. A expectativa é que 140 universitários de instituições como Insper, USP e Unicamp acampem por três dias na unidade da Embrapa na mineira Juiz de Fora, centro de uma tradicional bacia leiteira, em busca de ideias disruptivas. “Queremos fazer um enorme ‘vacathon’”, diz Paulo Martins, chefe-geral da Embrapa em Juiz de Fora.

Espaço da Raízen, em Piracicaba (SP): aprendizado com as startups | Divulgação

Em meio à empolgação com a disrupção que vem agitando o agronegócio no mundo, apenas uma ameaça pode estragar a colheita de novas ideias que estão sendo semeadas: a falta de conectividade no campo, problema que pode atrasar ou mesmo travar o desenvolvimento comercial das invenções. Nesse quesito, o Brasil fica mal colocado não só em comparação com outros polos da economia criativa da lavoura, como Estados Unidos e Nova Zelândia, como também perde de outros mercados emergentes — nos quais, em geral, os fazendeiros têm menos recursos tecnológicos à disposição do que no Brasil. Na ponta, perde-se a chance de gerar riqueza no país inteiro.

Estudo exclusivo da consultoria Bain&Company, com dados de 31 países emergentes, mostra que, se a velocidade da internet banda larga permitisse uma adoção plena das tecnologias com potencial de gerar negócios disruptivos no campo — como sensores, drones e inteligência artificial —, o PIB agrícola desses mercados dobraria em 15 anos. No Brasil, onde o sinal de banda larga chega a menos da meta-de dos domicílios rurais, o potencial de ganho é ainda maior: 130%. “Seria o suficiente para fazer a riqueza da atividade agrícola brasileira passar do atual 1,4 trilhão para 3,1 trilhões de reais até 2032”, diz José de Sá, sócio da Bain. Desde fevereiro, integrantes do BNDES e do governo federal estudam políticas públicas para ampliar a conectividade na lavoura. Os ganhos da inovação no campo, como as grandes empresas do agronegócio mundo afora já estão percebendo, são enormes.

FONTE: REVISTA EXAME