Fintechs: paranoia ou mistificação?

Há cem anos, em dezembro de 1917, o jornal O Estado de S.Paulo publicava um artigo de Monteiro Lobato criticando o movimento modernista – e principalmente a exposição de Anita Malfatti – chamado “Paranoia ou mistificação?”. Nele, Lobato dividia os artistas e suas obras em duas categorias: “os que veem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura”, e aqueles que “veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes”. Entre os seguidores dessas escolas, Lobato incluía Anita Malfatti. A “paranoia” usada no título vem da ideia de que esse tipo de arte só poderia ser sincera nos manicômios, fruto de um estado de psicose.” A “mistificação”, por sua vez, decorre do pressuposto de que, fora dos manicômios, quando esse tipo de arte é exposta, sua apreciação não é sincera, e só poderia ser fruto de alguma mistificação.

Monteiro Lobato não foi capaz de compreender o movimento modernista. A reação de adeptos do movimento tampouco foi justa (Mário de Andrade chegou a chamar Lobato de “passadista”). O que houve foram equívocos de ambos os lados: de Lobato, por ignorar as qualidades de um movimento importantíssimo para a arte nacional. De Mário e dos modernistas, por ignorarem a contribuição ao modernismo do próprio Lobato.

Esse episódio ilustra os equívocos que podem ser cometidos quando estamos diante de algo novo. Vale para a arte, e vale para as novas tecnologias também. A bola da vez são as “fintechs” – empresas que usam da tecnologia como vantagem competitiva no setor financeiro -, e tais equívocos serão mais recorrentes com o passar do tempo, conforme tais empresas ganhem mais relevância no país. Um exemplo concreto: é muito comum ouvirmos que usar os serviços dessas empresas é maluquice (“paranoia”), e que aqueles que os usam certamente estão sendo enganados (“mistificação”). Isso é um equívoco, e pode ser desmistificado tanto por aqueles que usam de tais serviços quanto por aqueles que trabalham nessas empresas com o objetivo de melhorar a vida financeira dos brasileiros.

Na raiz desses equívocos está o rótulo “fintech”. Esse rótulo é muito amplo, e abarca empresas com modelos de negócios bastante diferentes, que atuam em mercados diferentes, oferecem serviços e produtos diferentes, e têm níveis de disrupção diferentes.1 Levar esse tema a sério significa reconhecer as limitações que esse rótulo coloca, que certamente é útil para certas finalidades, mas do ponto de vista regulatório, por exemplo, não vai a fundo nas diferenças cruciais entre as empresas do setor.

Entre essas diferenças está uma questão bastante sensível: fintechs, em regra, constroem suas vantagens competitivas a partir da análise dos dados de seus usuários. Isso significa que, quanto mais dados elas coletarem, muito melhores serão suas análises? Não necessariamente. Como dissemos, o ecossistema de fintechs é bastante heterogêneo, e cada empresa coleta dados diferentes, de bases de dados diferentes, e os explora de maneiras diferentes. É possível fazer uma análise de crédito de excelência sem necessariamente saber a cor da roupa íntima de quem pede um empréstimo, por exemplo. Para um debate público bem informado é crucial saber as diferenças de modelos de negócios entre essas empresas – e premiar aquelas que consideramos bons exemplos a serem seguidos.

Outro mito comum é a ideia de que fintechs, em geral, querem automatizar absolutamente toda a análise de crédito. Isso não é verdade, nem representativo do que de fato é feito. Vamos automatizar as decisões que tem de ser automatizadas, mas seres humanos continuam tendo um papel crucial no modelo de negócios de muitas fintechs. Antes, quem fazia toda a análise de crédito era um ser humano, que cometia erros gravíssimos – e esses erros aumentavam a taxa de empréstimo, além de deixar pessoas que poderiam cumprir com os termos do empréstimo de fora. Com algoritmos, conseguimos diminuir esses erros, e o crédito mais barato no mercado de fintechs está aí para provar o nosso ponto.

Existe uma zona de penumbra, em que o algoritmo não é capaz de dar boas decisões. Algoritmos não pegam nuances, não empatizam, não dialogam. A análise humana é fundamental nesses casos. Muitas empresas, nessas zonas cinzentas, usam de outros recursos que não os algoritmos para lidar com essa situação: ligam para a pessoa, conversam pela plataforma, as convidam para visitar o escritório e bater um papo com a própria equipe. A inteligência artificial é só mais uma ferramenta a nosso dispor. Nosso objetivo é melhorar a vida financeira das pessoas, e é sempre com isso em mente que pautamos nossa atuação e determinamos as ferramentas que iremos utilizar.

Desmistificar as fintechs é uma tarefa árdua. É preciso ir além da crítica equivocada, limitada a lugares-comum e a rótulos que desconsideram diferenças cruciais entre as empresas e seus modelos. Por outro lado, as empresas também precisam ir além do “solucionismo tecnológico”2 (a ideia de que as tecnologias, sempre e em qualquer contexto, são a saída para todos os problemas), e mostrar à sociedade os benefícios reais das soluções que apontam. Nós do GuiaBolso assumimos esse compromisso.

FONTE: JOTA