“Em Deus, nós confiamos. Todos os outros tragam dados”

A famosa frase do consultor americano W. Edwards Deming (1900-1993), um dos principais gurus de processos de qualidade do século passado, é o cerne de um mindset que deveria ser utilizado pelas empresas para sobreviver nos dias de hoje

A inteligência artificial (IA) tem sido vendida com muito hype e muitas vezes algumas empresas cometem equívocos de começar com um “moon shot”, projetos extremamente ambiciosos, minimizando ou até mesmo esquecendo a íngreme curva de aprendizado.

Isso acontece até com grandes empresas. Um exemplo emblemático pode ser lido no artigo “What Ever Happened to IBM’s Watson?”, em que a proposta de “curar o câncer” se mostrou ambiciosa demais. É um excelente estudo de caso.

Existem diversas aplicações bem mais modestas em que a IA pode trazer ganhos significativos, como usá-la para aumentar eficiência operacional. Antes de mais nada, é importante a empresa atuar com mentalidade “data-driven” pois sem medir, você não poderá saber se está operando ou não com eficiência.

Uma famosa frase do consultor americano W. Edwards Deming (1900-1993), um dos principais gurus de processos de qualidade, é o cerne desse mindset: “Em Deus, nós confiamos; todos os outros tragam dados”. Isso implica que a empresa deve organizar e gerenciar sua coleta de dados.

Muitas vezes encontramos dados dispersos em silos organizacionais, com acesso limitado aos próprios donos dos silos: marketing vê dados de marketing e finanças enxerga apenas dados de resultados financeiros e geração de lucro.

Uma das primeiras ações para se começar com IA é implementar uma política de governança de dados, que quebre os silos e garanta adequação às regulamentações existentes. Imagine o prejuízo à imagem (e até financeiro) da empresa, se determinado dado sensível for usado de firma indevida por uma aplicação criada em uma unidade de negócio?

Governança e transparência dos dados, portanto, são condições básicas para se pensar em projetos de IA fluindo pela empresa. Para enfatizar esse ponto, recomendo a leitura do artigo “The Data Problem Stalling AI”, publicado pela MIT Sloan Management Review, que mostra claramente que os projetos de IA podem falhar em sair do laboratório, se as organizações não gerenciarem cuidadosamente o acesso aos dados ao longo do seu ciclo de vida de desenvolvimento e produção.

Com dados disponíveis, você pode medir os resultados da empresa praticamente em tempo real e não esperar que as avaliações de negócios aconteçam a cada trimestre, semestre ou anualmente, muitas vezes com atraso de até 10 ou 15 dias para fechar os números.

Com dados disponíveis, você pode medir os resultados da empresa praticamente em tempo real e não esperar que as avaliações de negócios aconteçam a cada trimestre

Em um mundo cada vez mais digital e acelerado, tomar decisões com um mês de atraso pode ser altamente impactante. As cadências das reuniões de avaliação não precisam mais ser mensais ou trimestrais, podendo ser semanais ou quinzenais. Com ciclos de feedbacks e ajustes acelerados, podemos identificar os problemas e agir sobre eles muito mais rápido que sem sistemas de métricas automatizados.

Uma empresa equipada com sistemas de dados e métricas, movido por IA, que consegue continuamente acompanhar, medir e analisar transações de negócios, detectar anomalias e automatizar decisões rotineiras usando medidas extremamente detalhadas, de ponta a ponta, em tempo real, é o que se imagina ser uma “smart business”.

É uma empresa desenhada para operar no século 21, que indiscutivelmente é uma sociedade cada vez mais digital. Isso também transforma o modelo organizacional, pois um sistema de dados e métricas reduz sensivelmente a necessidade de supervisão física, ou sejam, camadas de gerências intermediárias, que atuam muitas vezes como um simples duto de passagem de informações entre as camadas da organização.

À medida que a cultura de orientação a dados se dissemina e se consolida, a empresa começa a ganhar tração para usar IA e dados de forma natural. O processo se acelera com o tempo, com algoritmos atuando o tempo todo no auxílio à tomada de decisões. O caso da Alibaba (Alibaba and the Future of Business) é emblemático e deve ser encarado como um estudo de caso.

Claro que empresas nativas digitais, como a Alibaba ou Amazon, têm a vantagem de nascerem online e prontas para a cultura de orientação a dados, e, portanto, sua transformação em negócios inteligentes é natural. Mas agora que elas provaram que o modelo funciona e estão transformando a velha economia industrial, é hora de todas as outras empresas entenderem e aplicarem essa nova lógica de negócios.

Isso pode parecer tecnologicamente intimidante, mas pode se tornar viável se a empresa adotar uma nova mentalidade de gestão.  Portanto, vemos que IA pode ser uma excelente ferramenta no apoio a decisões, correlacionando centenas de variáveis, quando antes trabalhávamos com meia dúzia. Pode ajudar assumindo decisões rotineiras, quando antes tínhamos uma extensa camada de gestão para fazer isso. O resultado? Mais eficiência.

Mas não se chega a esse estágio de um dia para o outro. A jornada é longa e tortuosa e começa com o primeiro passo. Uma recomendação que enfatizo, baseado no doloroso aprendizado profissional de erros e acertos (pelo menos mais acertos que erros!) em projetos de IA é começar escolhendo de um a dois projetos-pilotos de IA, em nível corporativo, que possam sair do protótipo e evoluir para gerar resultados palpáveis para a empresa.

Esses projetos, se bem-sucedidos, ajudarão a empresa a ganhar impulso e aprender o que é necessário para criar um produto de IA.

A lista é simples:

1. O projeto traz resultados rápidos? Escolha projetos que possam ser realizados rapidamente (de preferência em 6 a 12 meses) e que tenham uma grande chance de sucesso.

2. O projeto é muito trivial ou muito complexo e sofisticado (“moon shot”)? Não adote nenhum dos extremos, mas o projeto deve ser significativo o suficiente para que seu sucesso convença os líderes da empresa a investir em outros projetos de IA.

3. O projeto é específico para o setor principal de negócios da companhia? Ao escolher um projeto específico do setor de atuação da empresa, seus stakeholders podem avaliar melhor o valor da IA.

4. O projeto conta com parceiros confiáveis? Se você ainda está construindo sua equipe de IA, considere trabalhar com parceiros externos para incorporar mais rapidamente o conhecimento especializado em IA.

5. O projeto está criando valor? A maioria dos projetos de IA cria valor de IA de três maneiras: (a) reduzindo custos; (b) expandindo a atual linha de negócios com mais funcionalidades ou (c) lançando novas e inovadoras linhas de negócios. A IA permite novos projetos que não eram possíveis antes.

Cezar Taurion é VP de Inovação da CiaTécnica Consulting, e Partner/Head de Digital Transformation da Kick Corporate Ventures. Membro do conselho de inovação de diversas empresas e mentor e investidor em startups de IA. É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral, PUC-RJ e PUC-RS.

FONTE: https://neofeed.com.br/experts/em-deus-nos-confiamos-todos-os-outros-tragam-dados/