Em busca do tempo perdido: programas sem gestão atrasam novas tecnologias na sala de aula

A conectividade no ambiente escolar possui muitas facetas e é preciso pensar além do simples fornecimento de internet.

Talvez você esteja lendo este artigo no smartphone enquanto vai para o trabalho dentro de um carro por aplicativo. Estar conectado, para você, pode ser um fato corriqueiro. Mas quando falamos em escolas públicas, seus alunos e professores, a história é outra. A conectividade no ambiente escolar possui muitas facetas e é preciso pensar além do simples fornecimento de internet.

Infraestrutura, recursos digitais de qualidade, profissionais capacitados para o manuseio e manutenção desses equipamentos, treinamento técnico do corpo docente, formação específica para professores e, claro, um processo eficiente e constante de avaliação de todos esses elementos são um bom ponto de partida quando o tema é conexão nas escolas.

O levantamento TIC Educação 2022 mostra que o acesso à internet está presente em 94% das escolas brasileiras que oferecem Ensino Fundamental e Médio, mas apenas 58% delas possuem computadores (notebook, desktop e tablet) e conectividade à rede para uso dos alunos.

Afinal, qual a real dimensão do problema?

Durante a última BETT Brasil, a maior feira de educação e tecnologia do País, realizada em maio na capital paulista, o Instituto Crescer aplicou um questionário para 461 profissionais da educação a fim de verificar as condições de conectividade nos locais de trabalho.

Para começar, muitas dessas escolas apresentam conexões precárias ou utilizam a internet apenas para fins administrativos.

Entre os respondentes, 54% afirmaram que seus locais de trabalho possuem equipamentos (computadores, tablets, etc) para uso em sala de aula. Em escolas públicas, essa porcentagem cai para 15,83%. Esses dados refletem as pesquisas nacionais e mostram como o País está atrasado na esfera digital.

O dado que mais chamou a atenção foi que quase uma em cada cinco escolas (18,9%) afirma possuir internet apenas para uso em espaços administrativos. Ou seja, alunos e professores não têm acesso em sala de aula ou em espaços compartilhados para atividades pedagógicas.

A disparidade de acesso à internet para fins pedagógicos pode afetar negativamente a qualidade da educação e restringir o desenvolvimento de habilidades digitais essenciais para os estudantes.

Com a pandemia e o consequente isolamento social, ficou claro que essa disparidade de acesso afetou fortemente a educação, mas foi além do aspecto pedagógico. A mecânica de inscrição e concessão do Auxílio Emergencial, recurso financeiro destinado pelo Governo Federal às famílias em necessidade, foi estruturada por meio de um aplicativo online. Isso

desnudou um Brasil sem internet, tablets ou computadores e até sem documentos básicos como certidão de nascimento.

Raras instituições de ensino, na maioria particulares, conseguiram se adaptar ao universo digital em poucos dias. A esmagadora maioria enfrentou dificuldades intransponíveis. E mesmo os educadores com acesso à internet não souberam usar a ferramenta para além de simular a engessada sala de aula tradicional.

Para transformar essa realidade, o Governo Federal instituiu um plano ambicioso que promete garantir conectividade para uso pedagógico nas quase 140 mil escolas públicas do Brasil. Elaborado pelos ministérios da Educação, das Comunicações e da Casa Civil, o programa receberá recursos do Leilão do 5G, BNDES e do FUST, o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações.

Instituído pela Lei 9.998/2000, o FUST teve sua finalidade reorientada ao estímulo à expansão, ao uso e melhoria da qualidade das redes e serviços de telecomunicações, à redução das desigualdades regionais e ao estímulo ao uso e desenvolvimento de novas tecnologias de conectividade.

E, recentemente, foi autorizado o investimento para que as ações previstas pelo FUST possam ser viabilizadas. No dia 27 de setembro foi publicado no Diário Oficial da União (DOU), o Decreto nº 11.713, de 26 de setembro de 2023, que institui a Estratégia Nacional de Escolas Conectadas (Enec). Ao todo, serão investidos R$ 8,8 bilhões para as ações relacionadas às Escolas Conectadas. Desse total, R$ 6,5 bilhões são do eixo “Inclusão Digital e Conectividade” do Novo PAC, que serão destinados para a implantação de conexão à internet e rede interna nas escolas.

Um projeto piloto também foi implementado previamente para fornecer conectividade a 177 instituições de ensino em 10 municípios, espalhados pelas cinco regiões do País. Ele já conectou mais de 94% das escolas selecionadas e todas deverão ser contempladas com infraestrutura completa.

Isso inclui acesso à banda larga de alta velocidade, disponibilização de rede Wi-Fi para distribuição da internet no ambiente escolar, bem como computadores para uso de alunos e professores.

Outro projeto ambicioso é o Programa de Inovação Educação Conectada, atual Política Pública de Inovação Conectada, lançado pelo MEC em 2017 com o objetivo de transformar a realidade das escolas públicas brasileiras por meio da universalização do acesso à internet em alta velocidade e fomento do uso pedagógico de tecnologias digitais na educação básica.

O programa passou por três fases distintas. Na fase de indução, entre 2017 e 2018, estabeleceu a meta de atingir 44,6% dos alunos da educação básica. Na fase de expansão, de 2019 a 2021, ampliou a meta para alcançar 85% dos alunos da educação básica e iniciou a avaliação dos resultados obtidos até então. Agora na fase de sustentabilidade, de 2022 a 2024, busca universalizar, ou seja, cobertura de 100%.

Se boas ideias e recursos financeiros não faltam, a inexistência de uma coordenação eficiente para gerir todos esses recursos e projetos acaba se tornando um dos principais obstáculos a

superar. Quem fiscaliza o quê? Quantos estudantes têm acesso a tablets em suas casas? A escola com conexão não pode ser uma ilha.

E de que adianta levar bons equipamentos se nas escolas não houver quem saiba operá-los? Quando existe alguma infraestrutura na escola, ela conversa com as novas tecnologias ofertadas?

O Brasil recentemente sancionou a Política Nacional de Educação Digital (Pned), assumindo a intenção de que as crianças e os jovens tenham acesso a uma formação que os prepare para um mundo cada vez mais tecnológico, mas o que reina é a falta de critério na área, vide o exemplo dos livros didáticos digitais em São Paulo.

A sobreposição de programas pode agravar a descoordenação e a desigualdade. Portanto, é imprescindível uma integração efetiva entre os recursos e os períodos de implementação. Isso envolve a instalação adequada dos equipamentos, o treinamento dos professores e a elaboração de uma política de uso e manutenção consistente, além das avaliações constantes para saber se estamos avançando.

As tristes cenas de escolas paupérrimas e isoladas que vão parar nos telejornais por terem recebido, no papel apenas, milhões de reais em investimento, precisam acabar. É preocupante notar que, apesar dos recursos disponíveis, pouco se fala na importância de uma governança que coordene todas as ações e promova uma estratégia de implementação abrangente. É necessário definir claramente as responsabilidades dos diferentes ministérios.

Somente via governança poderemos realmente colher resultados de tantos investimentos. Afinal, após a implantação da infraestrutura necessária, é preciso aprofundar a formação de docentes e criar materiais pedagógicos de qualidade.

Depois que tudo isso “der certo” começará o trabalho de transformação do ensino por meio da tecnologia. A sala de aula com alunos sentados em carteiras, recebendo informações passivamente, precisa chegar ao século 21 e conversar com Inteligência Artificial, Realidade Aumentada e Metaverso, ampliando os limites pedagógicos até o limite da criatividade.

Os professores precisam de capacitação para utilizar essas ferramentas em prol da aprendizagem e os alunos de familiaridade com as novidades tecnológicas, cuja carência pode ter reflexos na vida profissional mais tarde.

Mesmo no exterior, muitas escolas ainda enfrentam desafios na utilização adequada desses recursos.

Por aqui, falta uma mudança de mentalidade. Não cabe mais o momento “agora todo mundo offline para copiar a matéria da lousa”, relegando atividades online ao campo extracurricular. Como sociedade, precisamos explorar agora o potencial da tecnologia como ferramenta de apoio à educação, incorporar metodologias inovadoras e estratégias de ensino que maximizem os benefícios da conectividade. Não apenas quando – e se – chegar a banda larga na escola.

Luciana Allan é Doutora em Educação pela USP e diretora técnica do Instituto Crescer, onde há mais de 20 anos lidera projetos nacionais e internacionais na área de educação.

FONTE: https://exame.com/colunistas/crescer-em-rede/em-busca-do-tempo-perdido-programas-sem-gestao-atrasam-novas-tecnologias-na-sala-de-aula/