Dispositivo instalado em pacientes consegue gerar sons de palavras

Dispositivo reutilizável converte movimentos da garganta em palavras. Nos experimentos iniciais, usuários conseguiram falar “ok” e “não”. Criadores apostam que a solução ajudará pacientes de câncer que perderam a laringe a se comunicarem

A médica Larissa Vilela ressalta que ‘a produção vocal depende de um bom funcionamento de áreas cerebrais que desencadeiam estímulos adequados para a orquestração desse conjunto e de uma boa audição’
(foto: Clínica Cotta/Reprodução)

A fala é um processo complexo, envolve tanto os movimentos da boca quanto as vibrações das cordas vocais. Se sofre alguma lesão em uma dessas áreas, uma pessoa pode perder a capacidade de falar. Tomando como base esse problema, pesquisadores da Universidade de Tsinghua, na China, desenvolveram um dispositivo que, preso ao corpo do usuário, pode transformar os movimentos da garganta em sons. Detalhes sobre a solução foram publicados nas revistas científicas ACS Nano e Nature Communication.

Há mais de 20 anos, os cientistas realizam pesquisas na área, mas só em 2015 começaram a pôr em prática a ideia. A inspiração para o desenvolvimento da tecnologia surgiu da vontade de ajudar pessoas que perdem a capacidade de falar em decorrência de um câncer na laringe. “Um grande número de pacientes precisa fazer a laringectomia completa. Eles se tornam mudos adquiridos. Então, começamos a pesquisa para ajudá-los a se comunicar melhor”, conta Tian-Ling Ren, um dos autores do estudo e vice-diretor do Centro de Tecnologia de Sensibilização Ambiental e de Saúde da Universidade de Tsinghua.

O dispositivo tem detectores que medem movimentos na garganta, como o pulso e o batimento cardíaco. A partir disso, ele é capaz de converter esses sinais em sons, traduzindo-os em palavras. Semelhante a uma tatuagem, a garganta artificial é colada temporariamente ao pescoço do usuário com ajuda de água. Por ser fina e flexível, adere muito bem à pele. Há ainda a possibilidade de ser reutilizada.
A tecnologia é feita de grafeno, um material com efeito termoacústico capaz de detectar e emitir som. “Esse material inovador é amplamente utilizado na produção de sensores de deformação flexíveis e vestíveis para monitoramento da saúde e dispositivos acústicos, como alto-falante e fone de ouvido”, diz Tian-Ling Ren.
Quando o usuário faz movimentos com a garganta, a tecnologia capta todos os sinais eletrônicos emitidos, que são transferidos para um microcomputador ligado ao dispositivo. O computador processa os sinais, os transforma em ondas sonoras e aciona a garganta artificial, que emite os sons. “É a primeira vez que se integra o sistema de detecção de som e o sistema de emissão com um dispositivo baseado em grafeno. Também é inédito um dispositivo que converte movimentos fracos da garganta em sons compreensíveis”, frisa o pesquisador.

Limitações

Naturalmente, a voz é produzida nas cordas vocais, que vibram sob a pressão do ar que sai dos pulmões. Dessa onda sonora, em razão do movimento dos lábios e da língua, se obtêm as letras, as palavras e, por fim, as frases pronunciadas. “Além da integração dos sistemas pulmonar, laríngeo e faríngeo, a produção vocal depende de um bom funcionamento de áreas cerebrais que desencadeiam estímulos adequados para a orquestração desse conjunto e de uma boa audição, que permite escutar e, assim, reproduzir os sons”, detalha Larissa Vilela, otorrinolaringologista do Hospital Anchieta e professora voluntária do Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB).
A especialista considera o dispositivo criado na universidade chinesa uma esperança para casos em que não há a possibilidade de reabilitação vocal. Apesar disso, aponta possíveis desvantagens. “A produção de fala por essa tecnologia, a princípio, é limitada a algumas palavras e dependente de algum movimento laríngeo, como tosse, pigarro, entre outros, para codificar a produção de uma palavra específica. Além disso, o som produzido apresenta um aspecto ‘robotizado’, não sendo igual à voz produzida naturalmente”, lista.
Até o momento, os testes foram feitos com voluntários que não haviam sofrido lesões nas cordas vocais. Nos experimentos, os participantes foram orientados a fazer movimentos da fala somente com a garganta, sem emitir som pela boca. Quando os voluntários imitaram silenciosamente os movimentos da fala, o instrumento conseguia converter com sucesso os sinais em sons. As primeiras palavras que o dispositivo detectou foram “ok” e “não”.
De acordo com Tian-Ling Ren, a tecnologia pode gerar qualquer som, dependendo do movimento da garganta. “Ela tem um grande potencial para aplicações práticas. Agora, estamos tentando encontrar algumas pessoas mudas para um estudo mais aprofundado”, diz. O cientista também frisa que a solução tecnológica não se restringe a pessoas que perderam a capacidade de falar. “Todos podem usar a garganta artificial para conversar de maneira muito conveniente, principalmente aqueles com dificuldade linguística.”
Andrey Ricardo da Silva, professor do Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisador na área de biomecânica da voz, chama a atenção para o fato de os experimentos terem sido feitos apenas com pessoas que têm a laringe. Para o especialista, é preciso esperar o resultado com voluntários submetidos à laringectomia. “Para esse tipo de paciente, não seria possível reconstruir a voz pelo movimento da garganta, pois o que causa esse movimento é a vibração das pregas vocais e da estrutura da laringe”, pondera. Dessa forma, para o professor, a tecnologia poderá ajudar pessoas com transtornos de fonação, a baixa potência de voz.
A equipe de cientistas aposta na aplicação do dispositivo em pacientes submetidos à cirurgia de retirada da laringe. Segundo eles, surdos serão treinados para gerar sinais com a garganta que serão traduzidos em fala. “Tentaremos integrar mais funções no dispositivo. Será um produto muito empolgante e ajudará as pessoas a terem uma vida maravilhosa”, aposta Tian-Ling Ren.
FONTE: CORREIO BRAZILIENSE