Digitalização favorece surgimento de fintechs além do eixo Rio-SP

Região ainda concentra 71,4% das startups financeiras do país, mas trabalho remoto e empreendedorismo vêm transformando cenário.

Silvestre, da Trocados: “Nosso foco nos próximos dois anos é crescer no Norte e Nordeste, que ainda carecem de tecnologia” — Foto: Michael Dantas/Valor

O Estado de São Paulo sozinho concentra 56,6% das 1.481 fintechs ativas do Brasil. Na região Sudeste como um todo, essa fatia sobe para 71,4%. Mas aos poucos esse cenário tem mudado. Mais startups e ecossistemas de inovação têm surgido em outras regiões do país.

Ainda há dificuldades para quem decide entrar nesse mercado longe dos grandes centros financeiros. Porém, com a digitalização do trabalho, tem sido mais fácil contratar funcionários e muitas não têm planos de se mudar para o eixo Rio-São Paulo. A pandemia mostrou que muitas reuniões podem ser virtuais, afirma Eduardo Fuentes, chefe de pesquisa da plataforma de inovação Distrito.

Isso não quer dizer que executivos das fintechs Brasil afora não tenham de vir ao Sudeste com alguma frequência, já que a região concentra os fundos de venture capital. Segundo Fuentes, receber um aporte de um fundo é como um casamento. “Estar perto acaba ajudando no relacionamento, especialmente no começo, na abertura de portas. Mas não é obrigatório mudar a startup para São Paulo”, diz.

Segundo o relatório anual Startup Ecosystem Report 2022, da plataforma StartupBlink, o Brasil tem 26 cidades no ranking das mil mais atraentes do mundo para startups. As mais bem colocadas são São Paulo (16 ª), Curitiba (141ª), Rio (180ª), Belo Horizonte (215ª) e Porto Alegre (240ª). “O Brasil pode se beneficiar de um desenvolvimento ainda maior dos ecossistemas de startups em mais cidades em todo o país para fomentar a inovação fora dos grandes polos”, diz o relatório.

De acordo com o estudo, o país pode melhorar o ambiente ao reduzir juros, simplificar impostos, melhorar o nível de inglês da população e facilitar o acesso de investidores estrangeiros. “O Brasil ainda tem um ‘mato alto’ para cortar e melhorar bastante o ambiente para startups.”

A região Norte é que a conta com menos fintechs, mas algumas delas têm conseguido se destacar. A Trocados nasceu em Manaus (AM), em 2017, após um dos fundadores, Silvestre Paiva, perceber a dificuldade de comerciantes de obter troco. Inicialmente a startup conectava varejistas e clientes, possibilitando o troco por um aplicativo no celular, em uma região onde o dinheiro físico ainda tem grande participação no dia a dia. Depois acabou expandindo a oferta de produtos e serviços, acrescentando soluções de fidelização, promoções, saques e depósitos no varejo, recarga de celular, entre outras.

 Estar perto ajuda no relacionamento, especialmente para abrir portas”
— Eduardo Fuentes

Hoje, a Trocados já tem mais de 300 mil usuários, mas diferentemente da maioria das outras fintechs, não tem planos tão imediatos de nacionalização. “Nosso foco nos próximos dois anos é crescer no Norte e Nordeste, que ainda carecem de muita tecnologia, e somos daqui, entendemos as dores da população local”, diz Paiva, cofundador e vice-presidente de marketing, ao lado de Amaike Keric. Ele relata que já sofreu preconceito por estar distante de um grande centro.

“Infelizmente, o pessoal do Sudeste acha que o Brasil gira só em torno deles. Se estivéssemos em São Paulo ou no Rio, tenho certeza de que já estaríamos em outro nível, dadas as possibilidades de conexões, a maturidade do ecossistema, as oportunidades de escalar o negócio, conseguir um parceiro estratégico. Temos de correr por fora”, afirma Paiva.

A iCred, do Nordeste, foi fundada por Túlio Matos e seus três irmãos. O pai era correspondente bancário e desde cedo o filho tinha a ambição de se tornar banqueiro. A família passou pela Bahia, mas a fintech acabou sendo fundada em Aracaju (SE). Especializada em antecipação de saque de FGTS, a iCred já emprestou R$ 600 milhões e entrou recentemente em crédito consignado. “Em praticamente um ano e meio, chegamos a 1 milhão de clientes. Agora estamos em processo de contratar uma auditoria externa para tangibilizar os avanços na governança”, diz.

Matos afirma que está em processo de negociação para comprar uma sociedade de crédito direto (SCD) da região, o que na prática concretizaria o sonho de ser banqueiro. “Há uns dez anos a gente recebeu uma premiação [na outra empresa que a família ainda mantém, de correspondentes bancários] e eu dei uma caneta para o meu pai e falei: ‘guarda que um dia você vai assinar um documento muito importante com ela’. Acho que esse momento está próximo.”

Ele diz que no início sentiu certa resistência de investidores do Sudeste, mas não acha que era preconceito. “Quando fomos levantar o FIDC [fundo de direitos creditórios, ferramenta que viabiliza as operações da fintech] passamos por mecanismos de diligência bastante rígidos, mas acho que é uma desconfiança natural. À medida que fomos construindo um ‘track-record’ [histórico], mostrando nosso nível de competência, as coisas começaram a fluir melhor”, afirma.

No Centro-Oeste, a brasiliense Zapay tem um perfil diferente. Nasceu como forma de tentar facilitar pagamentos no varejo, mas pouco tempo depois o fundador e CEO, Callebe Mendes, viu um chamamento do Detran-DF solicitando parceiros que ajudassem a parcelar débitos veiculares no cartão de crédito. Percebeu que os pagamentos em órgãos públicos eram uma dor gigante e mudou o modelo de negócios da fintech, tornando-a um ecossistema de soluções para os proprietários de veículos. A companhia acaba de lançar uma ferramenta gratuita que permite que o usuário seja avisado por e-mail quando receber alguma multa de trânsito.

Após oito meses trabalhando para se plugar ao Detran, a Zapay começou a utilizar um modelo totalmente on-line, mas acabou tendo enfrentando fraudes. “Tivemos um problema pesado com chargeback [contestação] e quase quebramos. Depois criamos pontos físicos de atendimento, desenvolvemos canais B2B2C de distribuição e nos adaptamos, demos a volta por cima”, afirma o fundador. Em um ano e meio, a fintech se expandiu do DF e chegou a 13 Detrans. Hoje tem uma base potencial de 12 milhões de usuários e um volume de pagamentos (TPV) de R$ 120 milhões.

Mendes quer ver a Zapay se tornar o primeiro “unicórnio do cerrado”, ou seja, atingir um “valuation” de US$ 1 bilhão, até 2024. Apesar de trabalhar com órgãos públicos, a startup não é uma “govtech”, já que sua receita vem dos clientes finais, não do Detran. Mesmo Brasília não sendo exatamente um centro financeiro, a fintech está perto do Banco Central e também tem acesso a mão de obra qualificada.

No Sul a situação já é um pouco diferente, com polos de inovação relevantes em Curitiba, Porto Alegre e mesmo cidades do interior de Santa Catarina. Uma das fintechs de destaque da região é a Asaas, sediada em Joinville. Diego Contezini, um dos fundadores, conta que começou a programar com seis anos e com 22 criou uma empresa de software. Foi aí que percebeu que muitas companhias tinham dificuldades enormes com pagamentos e a Asaas nasceu como um spin-off da empresa original.

Para Contezini, viver fora do eixo Rio-SP é um desafio a mais. “Nos negócios grandes, as pessoas gostam de apertar a mão do outro, olhar no olho. Como você faz isso se não participa dos ambientes naturais onde essas pessoas estão?”, diz. Ele vai com frequência à capital paulista, mas afirma que a pandemia ajudou a conquistar clientes de forma digital. “Tenho clientes que faturam dezenas de milhares de reais comigo e nunca encontrei pessoalmente.”

Mudar para o Sudeste não está nos planos, diz Contezini e, segundo ele, a Asaas é muita ativa no ecossistema de startups da região. “É uma forma de retribuir para a comunidade”, afirma.

FONTE: https://valor.globo.com/financas/noticia/2023/05/25/digitalizacao-favorece-surgimento-de-fintechs-alem-do-eixo-rio-sp.ghtml