Criador do metaverso fala sobre o futuro da realidade virtual

Escritor de ficção científica Neal Stephenson previu várias inovações digitais, como assistentes de voz e criptomoedas.

Neal Stephenson, em seu livro “Nevasca”, de 1992, descreve um mundo virtual chamado Metaverso — Foto: Divulgação

O escritor de ficção científica Neal Stephenson previu (e inspirou) inovações que vão desde as criptomoedas até a Alexa. Seu romance inovador “Nevasca”, de 1992, descreve um futuro distópico de cidades-Estado empresariais, no qual uma subclasse de hackers se esconde da realidade em um mundo virtual conhecido como Metaverso. Muitos dos conceitos do livro – como avatares, óculos de realidade virtual, jogos on-line para vários jogadores e vírus de computador destrutivos – agora fazem parte de nossa experiência cotidiana.

De 1999 a 2006, Stephenson foi um dos primeiros funcionários da Blue Origin, empresa de foguetes de Jeff Bezos, e depois de juntou à Magic Leap, uma startup de realidade virtual que levantou quase US$ 4 bilhões. Ele nega ser Satoshi Nakamoto, o pseudônimo do criador do bitcoin.

Em 2022, Stephenson e o pioneiro da criptografia Peter Vessenes cofundaram a Lamina1, uma empresa que usa a tecnologia blockchain para construir um metaverso “aberto e expansivo”, nas linhas imaginadas pelo escritor 30 anos antes. Esta conversa com o correspondente de tecnologia global do “Financial Times”, Tim Bradshaw, foi editada para fins de clareza e adequação do tamanho.

Muitas pessoas estão tentando reivindicar o conceito inventado por você. Qual é a sua definição atual preferida do metaverso?

Há muitas pessoas nele. Você pode interagir com elas em tempo real, não importa onde estejam. Elas são representadas por corpos audiovisuais chamados avatares e compartilham experiências de natureza ficcional. Elas estão em espaços fictícios, fazendo coisas fictícias.

Não se trata de um único jardim murado, unificado. Existem diferentes partes dele que são criadas e mantidas por diferentes pessoas e a metáfora central para ir de uma dessas experiências para outra é o deslocamento através de um espaço virtual. Portanto, há um mapa e as experiências têm localizações fixas nesse mapa. Você pode se teletransportar, pode se deslocar a uma grande velocidade, mas sempre há uma sensação de que você está em um local específico acordado, em um universo maior.

Se essa é a definição, eu diria que não há um metaverso agora.

Quando se fala em concepção original [do metaverso], estamos nos remetendo ao fim dos anos 1980. Foi anterior ao “Doom” [o inovador jogo de tiros em 3D], lançado um ano após a publicação de “Nevasca” (1992). “Doom” alcançou coisas que eu não teria imaginado possíveis por mais dez anos. Foi a faísca que acendeu toda uma indústria. Então, onde estamos 30 anos depois, [é em um ponto em que] a indústria de jogos é o motor econômico e o motor tecnológico que obviamente será a base de qualquer futuro metaverso.

As pessoas sabem que quando jogam um videogame estão entrando no metaverso na ponta dos pés?

Eu acho que a maioria está apenas jogando o jogo. Acho que as pessoas que passam muito tempo jogando, especialmente jogos on-line para vários jogadores, estão se acostumando à ideia de se movimentarem em espaços tridimensionais compartilhados. O que é claramente a ideia mais básica do metaverso.

Você recentemente cofundou uma startup chamada Lamina1, que usa a tecnologia blockchain para construir uma espécie de camada de alicerce para o metaverso. O que te fez querer ir além de escrever sobre e de definir esse conceito para realmente construir um?

Não tenho um grande plano mestre para minha vida. Costumo absorver as coisas à medida que elas vêm. Em 2020, saí da Magic Leap. Aprendi muito sobre “motores de jogos”. Fiz trabalhos adicionais no campo da produção virtual: como usar a tecnologia dos motores de jogos para levar histórias para o entretenimento linear. Então, os ingredientes estavam lá. No fim de 2021, todo esse assunto do metaverso explodiu e surgiu uma oportunidade à minha frente, de criar parte do maquinário subjacente para ajudar os construtores do metaverso a fazer seu trabalho, de uma forma que considero coerente com a visão de meu livro.

A Epic Games criou o “Fortnite” e agora está expandindo sua plataforma de metaverso Unreal Engine. Por que construir a plataforma primeiro?

Não importa o que eu construa, mesmo que seja incrivelmente bem-sucedido, será uma pequena parte de um metaverso maior, e isso talvez possa não ser bem-sucedido. Portanto, apostar na possibilidade de criar uma experiência em um período de tempo razoável seria a maneira errada de fazer isso. Uma abordagem mais inteligente é criar uma infraestrutura subjacente, que, na minha opinião, precisa ser criada de qualquer maneira, e que isso capacite muitas pessoas a tentar construir coisas.

Uma vez que a plataforma esteja funcionando, então há valor. Para usar seu exemplo da Epic, o valor do “Fortnite” para a Epic é mais do que apenas a receita que o jogo traz. É também uma forma de eles usarem a tecnologia como “comida de cachorro” [as startups de tecnologia chamam testar seus próprios produtos de “comer sua própria comida de cachorro”] e mostrar às pessoas do que a tecnologia é capaz, de uma forma que não seria possível se eles estivessem fazendo tudo por meio de relacionamentos distantes e de terceiros.

Você está usando esse alicerce para determinar as normas do metaverso? Ou se trata do princípio da descentralização, em que simplesmente se deixa todo mundo cuidar disso?

Acho que a camada de alicerce é mais uma questão de capacitar e tornar as coisas disponíveis do que decidir como as coisas deveriam ser. As pessoas podem aparecer depois e fazer isso. Há várias capacidades básicas que, acredito eu, o metaverso precisa ter no nível da engenharia e que têm um ótimo encaixe com o que a blockchain é capaz de fazer. Então, uma experiência típica de metaverso incluirá estar em um espaço virtual, incluirá avatares. Os avatares terão cabelo, roupas, acessórios. Eles estarão em um espaço iluminado, texturizado, sombreado e ocupado por árvores, móveis, edifícios, o que quer que seja.

É possível fazer tudo isso de forma totalmente centralizada, onde um designer cria cada detalhe dessa experiência e é mais ou menos isso que temos nos jogos. Mas acho que para construir um metaverso, teremos uma situação em que as pessoas ficarão se deslocando livremente de um ambiente para outro, então tudo vai ficar misturado. Minhas roupas, minha espada mágica e o que quer que você tenha viajarão comigo de um ambiente a outro. Então, de repente, meu código, meu IP – que em última análise foi criado por um monte de diferentes designers e criadores de conteúdo que nem se conhecem – tudo isso estará viajando comigo para vários ambientes. Para mim, tudo isso cheira a um tipo descentralizado de rede de interações e transações financeiras que me traz à mente o blockchain e outros tipos de construções “DeFi” [as chamadas finanças descentralizadas].

Com que velocidade você prevê que esse metaverso passe a ser algo que todos nós visitemos no dia a dia?

Não haverá um metaverso que seja usado por milhões de pessoas até que contenha experiências que milhões de pessoas considerem que vale a pena ter, e fazer essas experiências é bem difícil. O jogo que mais joguei no ano passado foi o “Valheim”, que começou com um grupo incrivelmente pequeno. No entanto, eles sintetizaram um mundo: todos os tipos de elementos intangíveis foram agregados de uma forma que funcionou.

O que você gosta em “Valheim”?

Muito é a direção de arte. É um belo jogo. Tem ótima música, ótimos efeitos sonoros, uma pitada de senso de humor. O aspecto que me atrai é que você está completamente sozinho nesse mundo. Toda vez que você inicia um novo jogo, ele gera, algoritmicamente, um mundo inteiramente novo, gerado aleatoriamente, que é enorme. A menos que você convide alguém para entrar, você é livre para explorar esse mundo o quanto quiser e nunca terá que interagir com outro ser humano.

Precisamos de óculos de realidade virtual para experimentar o metaverso?

A realidade é que milhões experimentam mundos 3D em telas planas o tempo todo, então, é claro que isso será uma grande parte disso, assim como deveria ser. Dito isso, não tenho nenhuma reclamação sobre os “headsets” [de realidade virtual]. Vai ser das duas formas.

A badalação quanto ao metaverso no Vale do Silício está atualmente em segundo plano em relação à inteligência artificial (IA).

É bom deixar a IA ter seu momento ao sol, porque ela leva tempo. O ciclo da badalação anda rápido, mas a engenharia, não. A engenharia leva tempo. Se você está tentando fazer engenharia no mesmo ritmo do ciclo de badalação, não vai funcionar. Eu vejo a IA em termos de oferta e demanda. Já temos um suprimento abundante de imagens: todos os sites estão repletos delas. Portanto, a capacidade de todos criarem centenas de novas imagens e colocá-las em suas publicações em redes de relacionamento social on-line não é interessante para mim. A escassez impulsiona a qualidade e a arte da IA carece de escassez, portanto, tende a carecer de qualidade.

Então, você não pensa em usar o ChatGPT como copiloto para escrever seu próximo romance?

Minha teoria é que quando experimentamos a arte – seja um jogo eletrônico, uma pintura de Da Vinci ou um filme – estamos absorvendo um grande número de microdecisões tomadas pelos artistas por motivos particulares. Dessa forma, estamos nos comunicando com esses artistas, e isso é muito importante. Algo gerado por IA pode parecer comparável a algo produzido por um ser humano, e é por isso que as pessoas estão tão empolgadas. Mas você não está tendo essa percepção de se comunicar com o criador. Tire isso e fica vazio e desinteressante.

FONTE: https://valor.globo.com/carreira/noticia/2023/03/03/criador-do-metaverso-fala-sobre-o-futuro-da-realidade-virtual.ghtml