Controvérsia no meio editorial: o uso da IA para finalizar romance mais rápido e ao “gosto do freguês”

Mundo literário começa a lidar com um número crescente de programas de inteligência artificial que participam do processo de criação de obras. Será esse o fim dos escritores humanos?

Programas de inteligência artificial adentram ao mundo da literatura (Foto: Unsplash)

Haruki Murakami, quando escreve um romance, acorda às quatro da manhã e trabalha por cinco a seis horas, rotina mantida todos os dias sem variação: “Escrever um longo romance é como um treinamento de sobrevivência. A força física é tão necessária quanto a sensibilidade artística”. Ernest Hemingway recomendava escrever até chegar a um ponto da narrativa em que o escritor sabe o que vai acontecer a seguir: “Quando você para, fica vazio e ao mesmo tempo cheio, como quando fez amor com alguém que ama. Nada pode machucá-lo, nada pode acontecer, nada significa nada até o dia seguinte, quando você fizer isso de novo”.

Khaled Hosseini não faz esboços, prefere permitir que a história encontre seu próprio caminho, mas gosta de reescrever: “Processo em que descubro significados, conexões e possibilidades ocultas que perdi na primeira vez. Ao reescrever, espero ver a história se aproximando de minhas esperanças originais” (The Daily Routines of 12 Famous Writers, James Clear). A magia da escrita está ameaçada: escritores estão usando inteligência artificial para finalizar seus romances mais rápido e ao “gosto do freguês”.

O site americano The Verge, fundado em 2011 e dedicado à notícias de tecnologia, conta que em meados de março último, Jenifer Lepp, pseudônimo de Leanne Leeds – autora de romances para jovens da plataforma de e-books Kindle Direct Publisching -, estava atrasada com a entrega da última parte de sua série sobre uma bruxa detetive (tinha escrito 80,41%). Se quisesse que o livro fosse editado, formatado, promovido, carregado no site da Amazon tinha que escrever 9.278 palavras em três dias; pressionada pelo prazo, Lepp recorreu ao programa de inteligência artificial Sudowrite. Com a “parceria” com o Sudwrite, a produção de Lepp aumentou 23,1% – chama a atenção a precisão estatística! (“The Great Fiction of AI: The strange world of high-speed semi-automated genre fiction”, Josh Dzieza).

A experiência gerou questionamentos em Lepp sobre seu próprio talento: as melhores frases, segundo seus leitores, foram produzidas pelo programa de inteligência artificial. O momento mais desconcertante para a autora, contudo, foi o comentário animado de seu marido à menção no texto do restaurante de sushi favorito do casal; só que a cena tinha sido escrita pelo programa de IA! “Não parecia mais meu. Foi muito desconfortável olhar para o que escrevi e não me sentir realmente conectada às palavras ou às ideias”, reflete Lepp.

O programa Sudowrite, projetado por Amit Gupta e James Yu, dois desenvolvedores de tecnologia que se tornaram autores de ficção científica, faz parte do conjunto de programas de escrita baseados no modelo de linguagem GPT-3 (Generative Pre-Training Transformer-3) da OpenAI. O GPT-3 é um potente sistema de processamento de linguagem natural (PNL) que tem no rol de tarefas a sumarização, a extração de tópicos específicos, o reconhecimento de entidades nomeadas, a pesquisa semântica, e a marcação automática em clusters. A avaliação da precisão dos resultados é subjetiva, não existem critérios objetivos para julgar a superioridade de um texto (ou resumo) comparativamente à um sistema equivalente.

O diferencial do Sudowrite é ter sido projetado especificamente para escritores de ficção: ”Os autores colam o que escreveram em uma interface suave da cor do pôr do sol, selecionam algumas palavras e fazem com que a IA as reescreva em um tom ameaçador, ou com mais conflito interno, ou proponha uma reviravolta na história ou gere descrições em todos os sentidos, além de metáforas”, explica Josh Dzieza editor do The Verge (e autor do citado artigo). Para criar o Sudowrite, Gupta e Yu coletaram e formaram um robusto banco de dados de contos e sinopses de romances, utilizado para treinar os algoritmos de IA. Como todo sistema de IA, o Sudowrite está longe de ser preciso, às vezes leva o roteiro para direções inesperadas, longe da intenção inicial do autor gerando desconfortos, como o da Jenifer Lepp.

Em meados de 2021, Joanna Penn, romancista independente e defensora da escrita com sistemas de inteligência artificial, organizou um curso online (US$ 199) visando familiarizar os escritores com o crescente conjunto de possibilidades disponíveis de inteligência artificial. Segundo o site, o curso é dirigido para quem é tecno-curioso e aberto às oportunidades da tecnologia, ou deseja ter uma visão dos recursos de IA sem detalhes técnicos, incluindo os benefícios e questões éticas.

Penn apresenta aos alunos os recursos de inteligência artificial para analisar a estrutura de um enredo e recomendar mudanças, editores de IA e outros serviços; a intenção de Penn é deixar seus alunos à vontade com, na perspectiva dela, uma mudança inevitável e iminente no que significa ser um autor. Para Penn, o uso de inteligência artificial na produção de livros já é realidade, independente da resistência de parte dos escritores; ela prevê um futuro em que os escritores serão mais parecidos com “diretores criativo”, dando instruções de alto nível à IA e refinando sua produção. “Escrever é possivelmente a última forma de arte a ser interrompida por ser tão tradicional”, profetiza Penn.

Orna Ross, fundadora, junto com seu marido Philip Lynch, em 2012, da Alliance of Independent Authors (ALLi) – organização sem fins lucrativos para apoiar a comunidade de autores no Reino Unido -, argumenta que usar a inteligência artificial é como ter um parceiro de escrita: “Um parceiro maluco que dá todo tipo de sugestões, nunca se cansa e está sempre presente”. Visando criar um código de conduta ética do uso da inteligência artificial pelos escritores, Penn e Ross optaram por listar uma série de diretrizes (e não regras rígidas), preservando aos humanos a responsabilidade de editar e fazer a curadoria de qualquer texto produzido pela IA, evitando discriminação e/ou difamação.

O ponto de partida de Ross para elaborar as diretrizes, práticas e éticas desse código de conduta foram duas perguntas dirigidas à autores: a) como a IA pode te ajudar a se tornar um escritor ou um editor melhor? e b) quais são os limites éticos para os autores? O pressuposto é que os sistemas de Processamento de Linguagem Natural (PNL) podem incrementar a produtividade da escrita ao gerar textos a partir de parâmetros pré-selecionados.

Não faltam opositores severos. Mark McGurl, crítico literário americano, no livro “Everything and Less” (2021), pondera sobre os impactos na literatura do “capitalismo de plataforma”: migração do relacionamento autor-leitor para relacionamento entre provedor de serviço-cliente. Para McGurl, a escrita contemporânea tem mais a ver com as possibilidades comerciais (ou seja, capacidade de distribuição) do que propriamente com conteúdo e criatividade, e classifica a Amazon, por exemplo, como um “experimento estético impulsionado por um algoritmo invisível que rivaliza nas profundezas de seus efeitos com históricas mudanças culturais”.

Em artigo de 2019 no The Guardian, Steven Poole, autor e jornalista britânico, diz que o grau de preocupação depende da ideia de cultura: “escrever não é produzir dados. É um meio de expressão, o que implica que o autor tem algo a expressar. Um programa de computador não senciente não tem nada a expressar, além do fato de que não tem experiência do mundo. Até que os robôs tenham uma vida interior rica e entendam o mundo ao seu redor, eles não serão capazes de contar suas próprias histórias”.

No ritmo de evolução da inteligência artificial, pode-se prever um futuro no qual a IA substituirá os escritores humanos ou será sempre um mero parceiro dos escritores humanos? Responder a essa pergunta não é trivial, envolve reflexões na pauta do universo da cultura e da arte.

FONTE: https://epocanegocios.globo.com/colunas/IAgora/noticia/2022/08/controversia-no-meio-editorial-o-uso-da-ia-para-finalizar-romance-mais-rapido-e-ao-gosto-do-fregues.html