Como startups ucranianas fizeram para enfrentar o primeiro ano de guerra

As empresas tiveram de se adaptar ao novo cenário e buscar maneiras de se estabilizarem, enquanto protegiam seus funcionários e criavam formas de ajudar o país.

Donos de startups estão acostumados a lidar com o inesperado e o desconhecido, mas certamente nenhum deles está preparado para enfrentar uma guerra. Na Ucrânia, desde fevereiro do ano passado, quando começou a invasão promovida pela Rússiafundadores e CEOs tiveram de encontrar novas maneiras de estabilizarem seus negócios, protegerem suas equipes e até crescerem.

Para entender como tem sido este processo, o portal The Information conversou com seis executivas e excutivos de tecnologia cujas companhias estão sediadas no país. Eles fizeram uma reflexão sobre o ano que passou e relaram suas expectativas para os próximos meses.

Confira, em seis atos, do início da invasão até aqui, como esses fundadores e CEOS de startups estão fazendo para manterem seus negócios operando, enquanto buscam ajudar a Ucrânia na guerra, manter seus funcionários a salvo e até crescerem:

1. Primeiras semanas: “Ninguém acreditava que a guerra era possível”

A guerra na Ucrânia começou oficialmente no dia 24 de fevereiro de 2022 com o presidente russo Vladimir Putin anunciando a invasão de seu exército. Na sequência já foram realizados os primeiros ataques aéreos e terrestres nas principais cidades do país.

Nos primeiros dias, o instinto coletivo dos cidadãos ucranianos foi fugir, e os assuntos familiares tiveram preferência. Ainda assim, os profissionais mantiveram a comunicação via Slack e WhatsApp.

Yaroslav Azhnyuk, co-fundador da Petcube, startup de câmeras para animais de estimação, contou que antes do conflito começar já discutia possíveis cenários com seus colegas. “Estabelecemos que a primeira prioridade era salvar sua família; a segunda, ajudar a Ucrânia; a terceiro, fazer o seu trabalho. Na verdade, tivemos alguns membros da equipe que se juntaram imediatamente às forças ativas.”

Vlada Lotkina: "Primeira prioridade era salvar sua família" — Foto: Reprodução/Youtube

Vlada Lotkina: “Primeira prioridade era salvar sua família” — Foto: Reprodução/Youtube

Na época, a Petcube realizou uma pesquisa com os funcionários sobre seus planos de realocação. “Perguntamos a eles o que eles precisariam para se mudar, e essa pesquisa foi usada quando a guerra estourou”, relatou o executivo.

Vlada Lotkina, CEO e cofundadora do ClassTag, aplicativo de comunicação entre pais e professores, fez o mesmo com sua equipe. “Perguntamos se eles estariam abertos à mudança para a Polônia ou outros países próximos e nos oferecemos para apoiar o processo”, relatou. “Ninguém acreditava que a guerra era possível e todos queriam ficar na Ucrânia.”

A reportagem destaca que muito esforço foi dedicado para agilizar as informações e acalmar os trabalhadores. “Os primeiros dias foram loucos”, pontuou Valentine Hrytsenko, diretor de marketing da Ajax Systems, uma das maiores desenvolvedoras de sistemas de segurança da Europa. “Você está sentado, verificando alguns canais de notícias no Telegram; você é como um vegetal porque está sobrecarregado com todas as informações.”

2. Realocação das operações: “Não sabíamos o que fazer”

Para muitas startups ucranianas, a guerra significou não apenas a mudança de funcionários, mas também a realocação total das operações de fabricação. “Durante as primeiras semanas da guerra, realocamos mais de 800 funcionários junto com suas famílias para regiões seguras na Ucrânia e na Europa”, disse Hrytsenko.

O plano, segundo ele, envolveu uma logística complexa e significou a adoção de um modelo de trabalho de qualquer lugar. “Nosso RH e equipe de recrutamento trabalhavam como gerentes de viagens ininterruptos, reservando ônibus e procurando apartamentos ou hotéis.”

Valentine Hrytsenko: "Realocamos mais de 800 funcionários junto com suas famílias" — Foto: Reprodução/Redes sociais

Valentine Hrytsenko: “Realocamos mais de 800 funcionários junto com suas famílias” — Foto: Reprodução/Redes sociais

A empresa também transferiu todas as suas instalações da região de Kiev para um local mais seguro e não revelado na Ucrânia. “Foram utilizados 180 caminhões para o transporte dos equipamentos”, acrescentou.

No caso da Jollylook, pequena empresa que fabrica kits DIY de câmeras instantâneas, a guerra a princípio trouxe um caos total, sobretudo porque as cidades ondem ficavam seus escritório e fábrica foram bombardeadas. “Durante dois meses não sabíamos o que fazer. A equipe estava espalhada por toda a Europa e, embora nossos funcionários ainda fossem pagos, não havia receita”, recordou seu fundador Evgeniy Ivanov.

The Information destaca que as máquinas de corte a laser da empresa foram danificadas nos ataques de Bucha, mas, depois que as forças ucranianas libertaram a cidade no final de março, a equipe conseguiu resgatar alguns equipamentos e protótipos, transferindo-os para uma nova instalação em Zvolen, na Eslovênia. Em agosto, após um financiamento coletivo para uma nova câmera, a Jollylook conseguiu reiniciar a fabricação do zero.

Para as companhias que haviam adotado o home office desde o surgimento da covid-19, o processo foi um pouco menos complicado. “Sempre fomos uma empresa remota, especialmente após a pandemia”, afirmou Dima Shvets, CEO e fundador do Reface, aplicativo de troca de rosto. “Portanto, neste ano, nos tornamos mais ágeis, tendo parte de uma equipe totalmente remota, e tornamos nossa comunicação e processos assíncronos.”

3. Novo normal: “Não temos escolha a não ser continuar a viver e trabalhar”

“Você consegue imaginar sua vida diária sem eletricidade? Nem nós”, ponderou Shvets, que, junto com sua equipe, teve de se acostumar com interrupções intermitentes de energia e sirenes de ataque aéreo. “A lista de itens obrigatórios do empresário ucraniano agora parece um par de geradores portáteis e Starlinks.”Dima Shvets:“Você consegue imaginar sua vida diária sem eletricidade? Nem nós” — Foto: TechUkraine

Dima Shvets:“Você consegue imaginar sua vida diária sem eletricidade? Nem nós” — Foto: TechUkraine

Para amenizar o sofrimento dos funcionários, o Reface criou um “centro de inverno” designado para funcionários, com eletricidade, aquecimento, água e internet movidos a gerador, localizado no oeste da Ucrânia.

A reportagem observa que, ao tentar manter uma aparência de normalidade, uma sombra de pesar paira sobre a empresa: “Temos pessoas cujas famílias ainda estão nos territórios ocupados, perto do front. Não temos escolha a não ser continuar a viver e trabalhar enquanto nos preocupamos constantemente com irmãos, pais ou maridos”, desabafou Shvets.

O escritório do Reface no centro de Kiev agora funciona como um abrigo antiaéreo. Os profissionais da Ajax também têm um abrigo próximo ao escritório localizado em uma fábrica que não funciona mais. Ele é equipado com aquecedores e roteadores e está pronto para reuniões. “Nós o equipamos com algumas mesas, cadeiras e até água, café e chá”, disse Hrytsenko.

Para Azhnyuk, da Petcube, não importa o conforto, ainda é um enorme desafio se ajustar a uma realidade cotidiana de “pessoas sendo mortas, invasões, bombardeios”. Diante disso, os líderes tiveram que encontrar um equilíbrio delicado entre apoiar os funcionários e se intrometer em suas vidas.

“Foi preciso alguma liderança e comunicação especial para ajudar as pessoas a se concentrarem no trabalho”, disse ele. “Ao mesmo tempo, você não quer cruzar a linha e ‘cuidar’ de alguém psicologicamente em termos de tomar a decisão de sua vida por eles.”

Na ClassTag, Lotkina adicionou uma rede de suporte mais forte à sua rotina diária. “Agora, temos check-in diário para garantir que sabemos sobre a segurança de todos e compartilhar mensagens edificantes para elevar o moral e o espírito da equipe na Ucrânia.”

4. Vencer a guerra: “Orgulho do que fizemos”

Além de concentrarem em recuperar a estabilidade de seus negócios, as startups passaram a ajudar o esforço de guerra da maneira que podiam, desde doações até a criação de ferramentas e distrações divertidas para os ucranianos. Por exemplo, a Ajax Systems desenvolveu o aplicativo Air Alert, destinado a fornecer aos residentes um sistema de alerta de mísseis em seus smartphones.Sistema criado por startup ajuda nos alertas sobre a guerra para cidadãos ucranianos — Foto: Reprodução/Air Alert

Sistema criado por startup ajuda nos alertas sobre a guerra para cidadãos ucranianos — Foto: Reprodução/Air Alert

Steriletto, por sua vez, entregou seus dispositivos desinfetantes de superfície de forma gratuita a hospitais locais e ao exército ucraniano. Já a Reface fez parceria com organizações para campanhas informativas e de arrecadação de fundos e até lançou um recurso para a criação de memes sobre a guerra, o Memomet. De acordo com Shvets, CEO da empresa, isso ajuda a combater a ansiedade.

Startups com equipes internacionais têm realizado ações para incentivar a solidariedade com o staff local. Na ClassTag do ano passado, a equipe dos Estados Unidos uniu seus bônus em apoio à Ucrânia. Alguns doaram seus bônus para organizações sem fins lucrativos ucranianas específicas; outros doaram seu dinheiro para colegas em dificuldades.

Na Petcube, funcionários de alto escalão têm feito doações recorrentes para as Forças Armadas da Ucrânia. “O que mais me orgulha talvez seja o site que criamos”, disse Azhnyuk, referindo-se à Spend with Ukraine, uma organização sem fins lucrativos que agrega empresas ucranianas em uma plataforma de compras online.

5. Novos campos de batalha: em busca do essencial

Seja uma rodada de financiamento perdida ou uma entrada paralisada em um novo mercado, muitas startups ucranianas tiveram seus planos de crescimento descarrilados pela guerra, aponta o The Information. “Tínhamos planos para uma expansão maior. Mas claro, como não conseguimos interagir cara a cara com muitos clientes, basicamente não atingimos as metas. É difícil dizer que fomos super bem-sucedidos”, avaliou Diadyk.

Apesar disso, as empresas encontraram maneiras de prosperar. Em se tratando da Rewergy, o executivo afirmou que a guerra foi de fato o catalisador para o seu lançamento. “Eu entendi que gerar energia é crucial neste momento, pois a guerra vai demorar para acabar.” Para sua outra startup, Steriletto, Diadyk conseguiu ingressar remotamente em um acelerador nos EUA, obtendo uma taxa preferencial.

Petcube, segundo Azhnyuk, está perto de quebrar recordes financeiros. A Ajax também experimenta crescimento – as receitas de 2022 aumentaram 35% – e a empresa ainda inaugurou sua primeira fábrica internacional na Turquia. A Reface lançou novas tecnologias e ferramentas de IA generativa.

6. O que vem a seguir: “Esperamos notícias positivas”

“É triste dizer que as pessoas estão se acostumando com a guerra, mas na realidade é isso que está acontecendo”, ponderou Azhnyuk. “A guerra está causando sérios danos psicológicos às pessoas, mas fazer parte de um coletivo ajuda você a manter a sanidade e a se adaptar.”

Mas os medos persistem. “Além, é claro, da preocupação com a vida e a segurança da equipe, o principal temor é que este seja um conflito muito longo”, complementou Lotkina, da ClassTag. “Portanto, a equipe que permanecer na Ucrânia não poderá voltar à vida normal em um futuro próximo.”

Yaroslav Azhnyuk: “É triste dizer que as pessoas estão se acostumando com a guerra" — Foto: Reprodução/Redes sociais

Yaroslav Azhnyuk: “É triste dizer que as pessoas estão se acostumando com a guerra” — Foto: Reprodução/Redes sociais

Nesta nova realidade, segundo Hrytsenko, da Ajax Systems, há pelo menos uma fresta de esperança: a atenção global nas startups ucranianas nunca foi tão grande. “Para nós, é muito importante mostrar ao mundo a nova Ucrânia, mostrar que as pessoas podem se sentir confiantes conosco, mesmo nos piores momentos.”.

Shvets revelou que o ano passado aumentou seu senso de identidade nacional. “Ser ucraniano hoje é ser o mais corajoso. Não me lembro de nenhum outro caso em que tenha sentido tamanha responsabilidade tão claramente. Esperamos que 2023 traga não apenas desafios, mas também notícias positivas para os ucranianos. Todos nós temos um grande sonho e diariamente tentamos fazer pelo menos algo para alcançá-lo.”