China pode estar tomando dianteira na corrida global por novas tecnologias quânticas

Representação artística de uma partícula quântica. Foto: Shutterstock

Quando uma equipe de cientistas chineses transmitiu fótons emaranhados a partir do satélite Micius do país para conduzir a primeira videochamada segura por criptografia quântica em 2017, os especialistas declararam que a China alcançou assumiu a liderança na corrida pela comunicação quântica. Novas pesquisas sugerem que essa liderança também se estende à computação quântica.

Três artigos postados no arXiv.org no mês passado por físicos da Universidade de Ciência e Tecnologia da China (USTC) relataram importantes avanços tanto na comunicação quanto na computação quântica. Em um dos estudos, os pesquisadores usaram semicondutores em escala nanométrica, os pontos quânticos, para transmitir fótons únicos – um recurso essencial para qualquer rede quântica – por mais de 300 km de fibra,  uma distância 100 vezes superior à de experimentos anteriores.

Já os cientistas de outro estudo aprimoraram seu computador quântico  fotônico para trabalhar com a detecção de 113 fótons, em vez de apenas 76, uma atualização impressionante de sua “superioridade quântica”, ou seja, a diferença da velocidade com que a máquina realiza uma tarefa específica, em comparação a computadores clássicos. E o terceiro artigo apresentou o Zuchongzhi, um computador quântico dotado de 66 qubits que completou uma operação usando 56 qubits –  valor próximo dos 53 qubits usados ​​no computador quântico Sycamore do Google, que estabeleceu um recorde de desempenho em 2019.

“É um acontecimento empolgante. Eu não sabia que eles estavam lançando não um, mas dois desses [resultados da computação quântica na mesma semana ”, disse Scott Aaronson, um cientista da computação da Universidade do Texas em Austin. “Isso é incrível.”

Todas as três conquistas são recordes mundiais em suas respectivas áreas, mas o Zuchongzhi, em particular, é o que mais causa discussão entre os especialistas, pois é a primeira corroboração do resultado marcante do Google em 2019. “Estou muito satisfeito que alguém tenha reproduzido o experimento e mostrado que ele funciona de fato”, disse John Martinis, um ex-pesquisador do Google que liderou o trabalho para construir o Sycamore. “Isso é muito bom. Os qubits são uma base estável onde essas máquinas podem ser realmente construídas.”

Computadores quânticos e a comunicação quântica são tecnologias que ainda estão emergindo. Provavelmente, nenhuma dessas pesquisas terá uso prático ainda por muitos anos. Mas a geopolítica da tecnologia quântica está em jogo: redes quânticas completas podem fornecer canais de comunicação indevassáveis, e um computador quântico poderoso pode teoricamente quebrar grande parte da criptografia usada atualmente para proteger e-mails e transações na Internet.

As tensões entre os EUA e a China estão atualmente em seu ponto mais alto das últimas décadas, com os países entrando em confrontos sobre comércio, questões de direitos humanos, preocupações com espionagem, COVID e Taiwan. Após a demonstração do satélite Micius na China em 2017, os políticos americanos responderam investindo centenas de milhões de dólares na ciência da informação quântica por meio da National Quantum Initiative. Foi um estranho déjà-vu. Cerca de 60 anos antes, os EUA foram estimulados da mesma forma a financiar outra iniciativa incrível – a exploração espacial – por causa do alarmismo causado pelo pequeno satélite soviético Sputnik.

Porém, essa luta pela vantagem quântica não precisa ser uma reprodução da corrida espacial. Zuoyue Wang, historiador da ciência na California State Polytechnic University, observa que a China e os EUA estão intimamente ligados em muitas áreas – a ciência entre elas – que poderia impedir que ocorra uma competição hostil no reino quântico. Hoje, centenas de milhares de estudantes viajam da China para estudar nos EUA, e cientistas de ambos os países colaboram em pesquisas que vão da agricultura à zoologia. Apesar das crescentes tensões geopolíticas entre os dois países, “eles são os maiores parceiros de colaborações internacionais um do outro”, disse Wang.

QUBIT POR QUBIT

Quarenta anos atrás, o físico Richard Feynman fez uma afirmação bastante clara e direta.  Os computadores clássicos que tentam simular uma realidade fundamentalmente quântica podem ser superados por um computador que, assim como a realidade, seja realmente quântico. Em 2019, uma equipe do Google liderada por Martinis percebeu essa chamada vantagem quântica ao demonstrar que o sistema Sycamore da empresa realmente podia executar uma tarefa específica mais rapidamente do que  mesmo poderosos supercomputadores clássicos  (embora uma equipe concorrente da IBM tenha contestado que a façanha  do Google representasse uma verdadeira vantagem quântica). Um ano depois, pesquisadores do USTC realizaram um experimento semelhante com um computador quântico feito de fótons.

Mas por que os computadores quânticos rudimentares podem superar supercomputadores clássicos na realização de tarefas específicas? A explicação mais comum é que, ao contrário de bits clássicos que são 0 ou 1, um computador quântico usa qubits, cujo estado está entre 0 e 1 – a chamada superposição quântica. Para trabalharem juntos em um computador, os qubits também devem estar emaranhados, ou quanticamente correlacionado um com o outro.

Pode ser mais intuitivo pensar na tarefa realizada por Zuchongzhi e Sycamore . “É extremamente esimples”, disse Aaronson. “É tudo uma sequência aleatória de operações quânticas.” Este conjunto caótico de instruções emaranha todos os qubits em um estado confuso. Descrever esse estado é mais fácil para qubits do que para bits. Descrever dois qubits emaranhados requer quatro bits clássicos. (Existem quatro resultados possíveis: 00, 01, 10 ou 11.) A complexidade do estado aumenta exponencialmente, então o que leva 50 qubits requer 250, ou cerca de um quatrilhão de bits para ser descrito. Os computadores quânticos fotônicos criam um estado confuso e emaranhado, mas com os fótons agindo como qubits.

É por isso que mesmo um pequeno computador quântico de 50 qubit pode vencer um supercomputador clássico imenso. “Se você olhar para o Ocidente – os EUA, a Europa – não tem tido muitas conversas sobre repetir a experiência [de 2019 do Google]”, disse Martinis. “Eu admiro que, na China, eles queiram fazer isso”

Com 56 qubits e detecção de 113 fótons, os sistemas USTC detalhados em dois dos novos artigos são agora, tecnicamente, os computadores quânticos mais poderosos do mundo – com duas grandes ressalvas. Primeiro, nenhum dos computadores quânticos pode fazer algo útil. (A computação quântica fotônica não é uma plataforma de computador universal, portanto, mesmo ampliada, não seria um computador programável convencional.) Em segundo lugar, não está claro exatamente quanta vantagem quântica eles realmente têm em relação aos computadores clássicos. Nos últimos meses, vários estudos reivindicaram a capacidade de estimar esse estado confuso e emaranhado, especialmente para computadores quânticos fotônicos.

Apesar das dificuldades de trabalhar com computadores quânticos fotônicos, os pesquisadores da USTC têm um bom incentivo para dominar a plataforma, pois os fótons são a base da rede quântica chinesa. Milhares de quilômetros de cabos de fibra óptica já criaram uma ligação quântica entre Pequim e Xangai.  Porém, esta não é uma conexão quântica completa: ela apresenta divisões porque os fótons só podem ir até certo ponto sem sucumbir a ruídos na fibra. Uma rede quântica autêntica pode ter uma variedade de aplicações, mas as duas principais são a sincronização precisa e comunicações impossíveis de serem hackeadas.

Para conseguir isso, as redes quânticas precisam – entre outras coisas –  de fótons únicos emaranhados ​​para a distribuição de chaves quânticas e a realização de outras operações que requerem emaranhamento. Os pontos quânticos são considerados fontes ideais para fótons individuais. Até agora, os pontos quânticos nunca haviam enviado fótons isolados por mais de um quilômetro de fibra. (Normalmente, quanto mais longa a fibra, maior o ruído.) Mas a equipe da USTC conseguiu aumentar a distância de transmissão e, ao mesmo tempo, diminuir o ruído. Seu sucesso é resultado de medidas extenuantes, como estabilização da temperatura da fibra de 300 Km em 0,1ºC.

CORRIDA NO REINO QUÂNTICO

A China está à frente dos EUA em tecnologia da informação quântica? A resposta depende de como você analisa essa corrida quântica. Embora as estimativas variem, ambos os países parecem financiar pesquisas com mais de US $ 100 milhões por ano. A China tem mais patentes totais em todo o espectro da tecnologia quântica. Mas as empresas dos EUA têm uma liderança dramática em patentes de computação quântica. E, claro, a China possui uma rede quântica mais sofisticada e, agora, os dois principais computadores quânticos.

“É um problema muito novo para os EUA ”, disse Mitch Ambrose, analista de política científica do Instituto Americano de Física. “O país esteva à frente por tanto tempo, e em tantas áreas, que realmente não jamais pensou muito sobre o que significa estar atrás.”

Em termos gerais, a pesquisa quântica na China é quase inteiramente conduzida pelo Estado – concentrada em algumas universidades e empresas. A pesquisa nos EUA, em comparação, é muito mais heterogênea – espalhada por dezenas de agências de financiamento, universidades e empresas privadas.

“O governo chinês está bastante focado na tecnologia da ciência, provavelmente mais do que o governo dos Estados Unidos”, disse Wang. “Ninguém mais vai conseguir alcaná-los.”

Atualmente, o governo dos EUA está determinando maneiras de financiar a ciência da informação quântica em projetos de lei, como o Ato de Inovação e Competição de 2021, que forneceria $ 1,5 bilhão de dólares para pesquisas em comunicação, incluindo tecnologia quântica. Em resposta às preocupações sobre a segurança contra a China, o projeto de lei também prioriza a fabricação de semicondutores e inclui uma cláusula que restringe a cooperação com a China em energia nuclear e armamento. Esta não é a primeira restrição à colaboração científica entre os dois países. Desde 2011, a Nasa está sob o domínio da Emenda Wolf, que proíbe qualquer cooperação com a agência espacial da China. Por outro lado, a China e os EUA também passaram mais de quatro décadas cooperando oficialmente em questões científicas, por causa do Acordo EUA-China sobre Cooperação em Ciência e Tecnologia de 1979.

À medida que as tensões entre as duas nações continuam a crescer, a pesquisa quântica ocupa um lugar estranho: embora continue sendo uma pesquisa básica com aplicações atualmente limitadas, seu futuro potencial estratégico  é imenso. “Quais são as regras para o intercâmbio científico em qualquer campo, quanto mais no quântico?” Ambrose pergunta. O financiamento da tecnologia quântica pode inflamar ainda mais relações entre países. Mas também pode estimular mais cooperação e transparência entre concorrentes que buscam provar suas proezas quânticas.

Durante a Guerra Fria, os EUA e a União Soviética procuraram demonstrar serem iguais, senão superiores, em relação a seus níveis de armamento nuclear, vôo espacial e outras atividades técnicas estrategicamente importantes. Olga Krasnyak, especialista em diplomacia científica da Escola Superior de Economia da National Research University, em Moscou, argumenta que os intercâmbios científicos entre os Estados Unidos e a União Soviética ajudaram a acabar com a Guerra Fria. “A diplomacia científica tem essa vantagem – ela usa a ciência, que é universal”, disse Krasnyak. E usa algo tão importanto quanto: os cientistas. Eles historicamente aproveitam de sua humanidade e busca por conhecimento que têm em comum para superar a tensão de quaisquer diferenças ideológicas. A computação e comunicações quânticas podem realmente ter o poder de remodelar o mundo. Mas, Krasnyak diz: “Eu também acredito no poder da comunicação humana”.

FONTE: https://sciam.com.br/china-pode-estar-tomando-dianteira-na-corrida-global-por-novas-tecnologias-quanticas/?fbclid=IwAR18gBTKnZwWwyWEGo3tMHieH085-4KQu3hcmxYFlHOV5BMBkBD6lvEfppo