Carne do ‘futuro’ pode ser produzida no Amazonas

Proteína produzida em laboratório é apresentada como solução para reduzir pressão de pastagem e caça ilegal de animais.

Diferencial da carne produzida em laboratório é ser feita a partir de um animal vivo e que não precisa ser abatido no processo (Foto: David Parry/Reuters e Shutterstock)

Imagine se alimentar de uma carne de tambaqui ou até de peixe-boi sem que o animal precise ser pescado e morto. Apesar de parecer impossível, essa é a proposta de um ‘novo’ produto ainda embrionário e que pode ter o Amazonas como um de seus principais exportadores no futuro.

Carne ‘celular’, ‘cultivada’ ou ‘de laboratório’: todos esses nomes se referem a um alimento que  pode ser gerado a partir da biópsia de um animal.

“É como se você aplicasse uma seringa para tirar sangue, mas não tira sangue e sim tecido. Depois, você multiplica e faz mais carne. Ela cresce fora do animal, num biorreator”, comenta o vice-presidente de Políticas Públicas do The Good Food Institute Brasil (GFI), Alexandre Cabral.

A organização filantrópica sem fins lucrativos atua em diferentes países, inclusive no Brasil, para transformar a maneira como alimentos são produzidos.

Em 2020, a GFI Brasil iniciou uma parceria com a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação do do Amazonas  (Sedecti) para criar o Programa Biomas de Incentivo à Pesquisa, voltado a fomentar estudos sobre produtos e ingredientes a partir de espécies da Amazônia e Cerrado.

Parceria

O projeto encerrou neste ano, mas na próxima semana já haverá reuniões com o novo titular da Sedecti, Serafim Corrêa, para renovar a parceria.

Dentre os temas, estará a possibilidade de apresentar em conjunto (GFI Brasil e governo estadual) uma proposta ao Centro de Bionegócios da Amazônia (CBA), ligado ao governo federal, para criar uma startup de produção de carne cultivada no estado.

“Vamos incluir isso na agenda do próximo acordo de cooperação [com a Sedecti] e a partir daí o GFI entra de braços dados com a Sedecti no CBA para discutir o projeto dessa startup. O GFI tem a capacidade de dar o suporte tecnológico, montar, encontrar parceiros e levar isso até Brasília”, pontua ele.

Conservação

Alexandre Cabral defende que a carne cultivada, se produzida em grande escala, poderia ser utilizada como uma alternativa para diminuir a necessidade de maior produção no setor pecuário e de piscicultura. Além disso, na visão dele, poderia ajudar a proteger espécies ameaçadas de extinção em razão da caça ilegal.

Em maio, Cabral e outros três cientistas publicaram o artigo ‘Carne cultivada de peixe-boi auxiliando na conservação da biodiversidade amazônica: discutindo uma proposta de modelo’ (título traduzido) na MDPI, uma editora de revistas científicas de acesso aberto.

Reversão

“Você pega a biópsia do animal, gera carne, vende e parte dessa venda volta para a preservação da espécie. Nessa lógica, já que você não matou nenhum animal, quanto mais carne comer, melhor, porque mais recurso será revertido para a preservação dele”, sugere Cabral.

O percentual não está definido, mas a ideia é que uma parte da venda poderia ser direcionada a fundos de preservação ambiental, entidades ou órgãos  que atuam na conservação de determinadas espécies, como o peixe-boi.

Alexandre ressalta que a primeira carne cultivada foi criada em 2013, na Holanda, e já começa a ganhar mais espaço no mundo.

“Não existe, hoje, uma empresa no Brasil fabricando esse produto. Há nos Estados Unidos, em Israel, em Singapura há um mercado, mas nada em escala”, explica ele.

Fragilidade

Apesar do otimismo com a carne cultivada, parte dos cientistas ouvidos para o estudo sobre a versão do produto com peixe-boi apontou fragilidades ainda existentes na ideia.

A principal é que, a depender da maneira como for feito, pode acabar incentivando atores a caçarem ilegalmente os animais e assim competir com a carne cultivada.

A respeito disso, o representante da GFI Brasil diz que uma possível solução seria criar novas receitas a partir da mesma carne de animal.

“É desenvolver alimentos que não conversem com a cultura alimentar do amazônida, como patês, carppacio ou outro alimento que gere interesse do consumidor, mesmo que seja brasileiro […] é fazer um alimento que não possa ser feito do animal vivo, esse é o desafio”, pontua.

Cientistas também destacaram que ainda não está claro como os royalties dessas vendas poderiam ser revertidos para a preservação das espécies. Além disso, que o problema da preservação não se resume ao aspecto financeiro.

Outro desafio é o de produzir a carne cultivada em uma escala e processo que torne o produto mais barato e, por consequência,  acessível à população.

Segundo parte dos cientistas entrevistados pela pesquisa, também não há evidências de que o consumo local de carne de peixe-boi poderia ser substituído para carne feita em laboratório, reduzindo a caça ilegal desta espécie.

‘Temos meios’

Um dos autores do estudo sobre carne cultivada de peixe-boi, o doutor em Biotecnologia (UEA/Ufam) João Paulo Ferreira Rufino, destaca que houve também posições favoráveis ao projeto.

“Identificamos atores com viés mais tecnológico-científico e com uma visão mercadológica que isso pode ser uma alternativa para diminuir essa supressão em cima do consumo desses animais. Ao invés de você dar abertura para a caça ilegal, terá um produto legalizado, competitivo e que em nada afeta o contingente populacional dessas espécies na floresta”, disse João Paulo.

Rufino também comentou sobre as potencialidades do Amazonas enquanto  futuro exportador desse produto.

“As nossas instituições de ensino e pesquisa do Amazonas são muito bem estruturadas e têm profissionais altamente qualificados. Claro que temos alguns problemas, assim como qualquer outro seio de pesquisa no Brasil, mas temos capacidade de desenvolver essa tecnologia aqui. Hoje, tudo está em um processo embrionário, porque temos, no país, centros de pesquisa que estão bem mais avançados nesse tema. Três locais são referências em termos de pesquisa, ensino e aproximação com a indústria. São eles: a Embrapa Biotecnologia, a Embrapa Suínos e Aves e a Universidade Federal do Paraná”, comenta.

Empresa

Criada no ano passado, a Cellva é considerada a primeira empresa do Brasil voltada para o desenvolvimento e produção de ingredientes de fonte animal via cultivo celular. A companhia atua na criação de gordura a partir de suínos e vende o produto para grandes indústrias.

“Você pode usar a gordura em todos os alimentos embutidos, em presunto, linguiça, salsicha. Pode aplicar em chocolates, biscoitos, assados ou até em produtos de beleza, tudo isso sem crueldade animal”, explica o CEO da empresa, Sérgio Pinto.

Embora seja diferente da carne cultivada, a gordura celular segue uma lógica similar em sua fabricação, iniciando a partir da biópsia de um animal. O empresário explica que a produção leva 21 dias.

“Essas células precisam de alimentos, então oferecemos aminoácidos, proteínas, açúcares e carboidratos. Depois selecionamos apenas as células adiposas, que são as de gordura, e oferecemos uma superfície de adesão a partir de vegetais. É aí que elas se juntam e formam aquela gordura com cara de banha e depois a gordura mais saturada”, explica.

Com experiência na área, Sérgio ressalta três desafios que ainda precisam ser vencidos no setor: o barateamento da produção, a regularização do cultivo de carne e a conscientização para o consumidor a respeito da existência deste novo produto.

“Pelo fato de estarmos no Brasil, o maior ecossistema de alimentos do mundo, entendemos que temos uma vantagem contra todo e qualquer player fora do país”, pontua.

FONTE:

https://www.acritica.com/amazonia/carne-do-futuro-pode-ser-produzida-no-amazonas-1.315191