“Big techs ganharam bilhões de dólares sugando dados pessoais privados”, diz acadêmica

Segundo Shoshana Zuboff, professora da Harvard Business School, mudar esse cenário requer leis que permitam às pessoas decidir “o que, em primeiro lugar, se torna um dado, o que compartilhamos, com quem e qual a finalidade.

Shoshana Zuboff se diz frustrada com o que considera uma “fragmentação excessiva” dos esforços para reprimir as empresas de tecnologia — Foto: Michael D. Wilson

Os tempos são incertos para o Vale do Silício. As empresas de tecnologia estão demitindo funcionários que haviam contratado na pandemia. O Twitter, sob o comando de Elon Musk, tem afugentado anunciantes. A Apple, autoproclamada paladina da privacidade, quer reduzir o alcance do Google. É possível imaginar que o atual faroeste selvagem digital se tornará mais civilizado.

Ainda assim, os motivos de alívio para os críticos das gigantes tecnológicas são poucos. Shoshana Zuboff, professora emérita da Harvard Business School, publicou “A Era do Capitalismo de Vigilância” em 2019 — uma crítica explosiva sobre como as empresas de tecnologia ganharam bilhões de dólares sugando dados pessoais privados. “Pensávamos que estávamos fazendo buscas no Google, mas era o Google que estava fazendo buscas em nós”, resumiu.

Hoje ela se diz frustrada com o que considera uma fragmentação excessiva dos esforços para reprimir as empresas de tecnologia. “Temos estudiosos, pesquisadores e ativistas fantásticos cujo foco está na privacidade, outros cujo foco está na desinformação, outros na relação com a democracia”, diz. Essa “balcanização” reduz a capacidade de identificar a “fonte real do dano”: os dados pessoais dos usuários da internet são tratados como um recurso que não tem custo, assim como as florestas e outras partes da natureza eram considerados séculos atrás.

Zuboff cita números sobre os Estados Unidos, onde não há lei federal de privacidade e as pessoas têm sua localização exposta, em média, 747 vezes por dia. Na União Europeia, que ela diz ter a “melhor regulamentação”, são 376. “É melhor, mas nem de longe o suficiente”. Mark Zuckerberg prometeu certa vez que um modelo preditivo seria capaz de dizer às pessoas, ao chegarem em uma cidade pela primeira vez, a qual bar ir; e que um bartender já as estaria esperando com sua bebida favorita. Esse sonho desapareceu apenas por questões de praticidade, mas não no princípio.

Em artigo publicado em novembro, Zuboff argumenta que Apple e Google coagiram as autoridades de saúde europeias com a tecnologia de rastreamento da covid-19. “É possível ter capitalismo de vigilância e é possível ter democracia. Não é possível ter os dois”, escreveu. A Apple criou a ilusão de que agia como Robin Hood, quando apenas a supervisão democrática seria capaz de proteger os direitos individuais.

Ela vê a iniciativa da empresa contra o Google simplesmente como uma “expansão” do capitalismo de vigilância. As promessas de Tim Cook de proteger a privacidade podem ser suspensas a qualquer momento: “Os usuários não têm voz”.

A discussão sobre vigilância tecnológica é relevante, argumenta Zuboff, pois ela nos rouba a “intimidade que sustenta a vida”. Além disso, os indivíduos, por conta própria, não podem optar por escapar dessa vigilância de modo realista. O que precisamos é ter direito a um refúgio, onde não possamos ser alcançados.

Em 2022, Bruxelas criou a Lei de Serviços Digitais e a Lei de Mercados Digitais, sua regulamentação mais abrangente até o momento para o mundo da tecnologia. O Parlamento do Reino Unido debate atualmente um projeto de lei de segurança on-line. Zuboff quer que essas leis sirvam de pontos de partida.

A professora tem uma visão de longo prazo. Em 1988, publicou “In the Age of the Smart Machine” (Na era das máquinas inteligentes, em tradução simples), no qual argumentava que os computadores mudariam as empresas de uma forma que as tecnologias anteriores não haviam feito. Depois, dirigiu o Odyssey, um programa educacional da Harvard Business School para ajudar pessoas de sucesso a decidir como passar os últimos anos de suas vidas.

Sua obra sobre o capitalismo de vigilância foi seu sucesso na fase tardia da carreira. Foi publicado quando ela tinha 67 anos, depois de um raio ter queimado a casa da família no Estado do Maine e após a morte inesperada do marido e, algumas vezes, coautor, o empresário Jim Maxmin.

Zuboff argumenta que as firmas de tecnologia sabiam que o público nunca seria a favor da coleta de dados feita por elas. “Desde o início, entendia-se que eram coisas que precisavam ser secretas, camufladas, para não provocar resistência.” Ela cita um recente executivo do Google dizendo: “Não vai assustar as pessoas saber o quanto estamos prestando atenção?”

Hoje, as empresas de tecnologia “estão ficando muito mais relutantes em patentear suas descobertas porque não querem que o público saiba exatamente o que elas estão fazendo”. “Na maioria dos casos, eles não estão mais disponibilizando seus dados pessoais aos pesquisadores”.

Por isso, Zuboff vê a necessidade de uma expedição exploratória das autoridades de regulamentação para descobrir o que está acontecendo. As leis de tecnologia da UE criarão “novos quadros de pessoas, com novas combinações de habilidades, que irão para dentro das empresas”. “A missão delas será levantar o capô, para entender o que realmente está acontecendo. Um dos grandes problemas que temos é que a maioria das informações que sai das empresas é intencionalmente arquitetada para ser enganosa. Manipulação psicológica das informações é uma forma de arte retórica realmente praticada por essas empresas.”

Zuboff raramente dá respostas curtas ou usa terminologia simples. Ainda assim, é direta no que se refere à moderação de conteúdo – as tentativas das empresas para remover conteúdo nocivo –, que ela descreve como “areia movediça […] uma proposição totalmente perdida, projetada, na verdade, para nos manter ocupados o maior tempo possível, para que elas possam continuar a se safar do que realmente estão fazendo”.

Ela é mais otimista quanto à estruturação com base na idade, sob a qual as plataformas são projetadas para minimizar os danos às crianças e coletar menos dados delas. O Reino Unido foi pioneiro no design adequado à idade, mas após o Brexit perderá influência diante do “poder mais forte” de Bruxelas contra o capitalismo de vigilância, segundo Zuboff. Ela também vê “um movimento para enfraquecer e desnaturalizar o regime de proteção de dados existente, com um projeto de lei de proteção de dados que favorece as grandes empresas de tecnologia e perpetua a ideia equivocada de que a democracia precisa desimpedir o caminho [delas]”.

O problema para os defensores da privacidade é que a causa deles dá a impressão de oferecer poucas vantagens e muitas desvantagens. Para a maioria dos cidadãos europeus, o maior impacto da lei de privacidade são as irritantes janelas “pop-up” sobre cookies.

A regulamentação parece impraticável: o Reino Unido e a França queriam estabelecer limites de idade para sites pornográficos, mas até agora não conseguiram encontrar maneiras eficazes de fazê-lo.

De forma similar, Zuboff critica a Apple e o Google por terem assumido o controle do rastreamento da covid-19; mas e se for o caso de que o sistema delas simplesmente funcionar melhor do que os centralizados usados pelas autoridades de saúde europeias? Ela ri da sugestão. Admite, porém, que a regulamentação é deficiente, mas porque não se pode “entrar [nas empresas de tecnologia] para saber o que realmente está acontecendo”. “Estamos regulamentando com antolhos […] Não entendemos nosso adversário bem o suficiente.”

Zuboff reitera que seu ataque não é contra a tecnologia em si, mas contra a lógica econômica que a sustenta – “roubo”. Ela admite a possibilidade de que dados e previsões possam ser usados para o bem comum. O contra-argumento é que existem prós e contras básicos. Os serviços de tecnologia, seja para prever respostas de texto ou os caminhos mais rápidos para seu carro, só podem funcionar acumulando dados e reduzindo nossa privacidade.

Pergunto o que ela acha da compra do Twitter por Musk. “Temos políticos, parlamentares, autoridades eleitas, assim como toda a cidadania, com o foco direcionado a um homem e fazendo a pergunta: ‘o que ele fará?’ Nossa estabilidade política, nossa capacidade de saber o que é verdadeiro e o que é falso, nossa saúde e, até certo ponto, nossa sanidade mental, é afrontada diariamente, dependendo das decisões que Musk decide tomar. Considero isso fundamentalmente intolerável […] Esses espaços não podem existir apenas sob controle empresarial […] Entramos na era digital há 20 anos, mas nunca, enquanto democracias, fizemos um balanço do significado dessas tecnologias.”

Musk recolocou Donald Trump no Twitter. A suspensão do ex-presidente dos EUA do Facebook terminará “nas próximas semanas”, segundo a empresa controladora. Zuboff está horrorizada. “Não deveria ser uma decisão que pertença a indivíduos como Musk ou Zuckerberg ou qualquer outro.” As implicações para a democracia são muito grandes. “Numa civilização da informação, nossos espaços de informação têm que existir sob o direito público e ser regidos por instituições democráticas […] Com sorte e determinação, olharemos para os dias dos oligarcas da informação, como Musk e Zuckerberg, como os primeiros erros primitivos de uma nova civilização”.

Ela compara as gigantes tecnológicas do Ocidente ao Estado de vigilância da China. “Este é um mundo em que a privacidade foi extinta. A privacidade agora é uma categoria zumbi. Nenhum de nós tem privacidade, nem quando pensávamos nisso no ano 2000.”

A sensação dela de uma distopia é visceral. “Alguém acabou de inventar um tipo de tinta que você pode colocar no rosto e que confunde o reconhecimento facial. A garotada no Reddit está animadíssima com isso, o que é terrível, Henry!”

A abolição do capitalismo de vigilância requer novas leis que permitam às sociedades decidir “o que, em primeiro lugar, se torna um dado, o que compartilhamos, com quem e com que finalidade”.

Em vez disso, a tecnologia continua avançando, principalmente no campo da inteligência artificial (IA). “O ChatGPT nos deu uma sacudida. Chocou as pessoas, forçando-nos a reconhecer como a IA foi longe, praticamente sem lei e governança democrática para moldar ou restringir seu desenvolvimento e aplicações”. O desenvolvimento da IA tem se baseado no roubo de dados humanos, argumenta. Ela mostra esperanças ao falar da Lei de IA proposta pela UE – “a primeira lei a exercer governança democrática sobre a aplicação da IA”. Ainda assim, é difícil não sentir que, mesmo quando o Vale do Silício sofre algum tropeço, ainda está um passo à nossa frente.

FONTE: https://valor.globo.com/carreira/noticia/2023/02/01/big-techs-ganharam-bilhoes-de-dolares-sugando-dados-pessoais-privados-diz-academica.ghtml