Banco digital acelera expansão e testa fôlego do segmento

A criação de bancos digitais, movimento que começou há cerca de cinco anos no país, se tornou mais intensa em 2019. Os lançamentos de bancos “sem agência nem fila” não param. Como resultado, mensalmente são abertas entre 500 mil e 1 milhão de contas nessas plataformas, segundo estimativas da consultoria Boston Consulting Group (BCG), com base em dados públicos.

A iniciativa vem de bancos tradicionais, credenciadoras de cartões, grandes varejistas, “fintechs” e gigantes de tecnologia. E a tendência tem sido tão forte que levanta dúvidas sobre se os bancos digitais são as novas “paleterias” – dizem executivos do setor, em referência à moda de abertura de sorveterias no estilo mexicano há alguns anos, uma bolha que explodiu em pouco tempo.

“Estimamos 11 milhões de contas abertas no início de 2019 que, hoje, já devem ser 15 milhões, um crescimento impressionante”, diz Ricardo Tiezzi, diretor do BCG. No total, a consultoria identificou 56 empresas de serviços financeiros “nativas digitais”, entre bancos completos, contas e serviços, investimentos, pagamentos e cartões, além de empresas de crédito.

Um estudo do economista Roberto Luís Troster, ex-chefe da equipe econômica da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), mostra a diferença do ritmo de negócio dos grandes bancos frente ao restante do mercado – bancos médios, fintechs e digitais – entre 2014 e 2018. Os cinco maiores bancos (Banco do Brasil, Bradesco, Caixa, Itaú e Santander) tinham 72,3% dos clientes, mas passaram a 64,5% no período. Em número de operações, passaram de uma fatia de 77,3% para 69,9%.

“As duas políticas para aumentar a concentração bancária foram abandonadas: o viés de beneficiar grandes bancos no começo da década passada e o de favorecer os bancos estatais a partir de 2016”, diz Troster. “Além disso, com a tecnologia, a questão central passa a ser o modelo de negócio.”

Ancorados na tecnologia avançada e numa estrutura de custos comedida, os bancos digitais conseguem oferecer um modelo de serviços com isenção de tarifas hoje pagas pelos brasileiros nas instituições financeiras tradicionais. No geral, os novatos não cobram pela manutenção da conta, pela anuidade do cartão de crédito ou para fazer transferências.

“O esforço para escalar o negócio é menos intensivo em capital porque não preciso abrir agências. Mas temos de crescer com custos baixos, que vão se diluindo à medida que temos mais clientes”, diz Ray Chalub, diretor de conta digital e meios de pagamento do Banco Inter, criado em 1994 como financeira da construtora MRV e que, desde 2017, avançou no modelo digital, abrindo cerca de 2,5 milhões de contas.

Com fortes investimentos e isenção de tarifas, a maioria dos bancos digitais ainda opera no vermelho no país, enquanto aqueles que têm resultados apresentam números bem inferiores aos que costumam ser vistos nas instituições tradicionais – o Inter, por exemplo, teve lucro líquido de cerca de R$ 70 milhões no ano passado e o Agibank, de R$ 150 milhões.

“No processo de crescimento, o resultado não vem num primeiro momento. Agora, estamos preocupados em trazer o cliente para a plataforma”, diz Jeferson Honorato, diretor do Next, banco digital do Bradesco. Lançado há um ano e meio, o negócio avança rapidamente: a essa altura, o plano de negócios previa 600 mil clientes ativos e inativos – mas já são mais de 1 milhão ativos. Em dezembro, foram realizadas 400 mil operações por dia, que saltaram para 1,3 milhão em junho.

Como a conta em si dificilmente traz retorno aos bancos digitais, eles correm para adicionar produtos e serviços, inclusive não financeiros, para ter rentabilidade. Além disso, estão ampliando a carteira de crédito e de investimentos. O Inter quer lançar no segundo semestre um “superaplicativo”, com serviços como transporte, alimentação e turismo. Hoje, 70% da receita do banco vêm do crédito, mas a projeção é chegar a 50% no médio prazo, com o restante vindo de tarifas e serviços. Já o Next tem 400 parceiros que dão desconto em seu aplicativo ou “cashback” em aplicações, o que pode render até R$ 400 por mês ao cliente.

Como a conta em si dificilmente traz retorno aos bancos digitais, eles correm para adicionar produtos e serviços.

O próprio regulador colaborou para o crescimento dos bancos digitais. O Banco Central criou há cinco anos a figura da conta de pagamento, modelo mais simplificado de conta corrente, que não exige atendimento em agência física, não realiza empréstimos, mas pode oferecer cartões e fazer transferências. Embora os recursos dessa conta não sejam garantidos pelo Fundo Garantidor de Créditos (FGC), eles ficam depositados no BC ou em títulos do Tesouro.

Como essa nova modalidade de conta pode ser oferecida por instituições de pagamento, cooperativas e outras instituições financeiras além dos bancos, ela passou a ser lançada por “fintechs”, varejistas e até empresas de tecnologia que, apesar de usarem a expressão “banco digital”, não têm a licença de banco. Por isso, elas fazem parcerias com bancos, seguradoras e outras empresas para ampliar a oferta.

Na semana passada, o BC iniciou uma campanha nas mídias sociais para esclarecer o que são as contas de pagamento, devido ao “boom” do modelo com os bancos digitais. Questionado pela reportagem, o regulador afirmou que “cada vez mais essas contas ofertam serviços semelhantes ao de uma conta bancária tradicional, assim, cidadãos podem ter dificuldade de diferenciar as duas modalidades”.

O Nubank é um exemplo claro desse modelo: apesar de ter banco no nome, é uma instituição de pagamento aliada a uma financeira. Em seu caso, a ideia não tem sido ampliar o leque de produtos, mas consolidar o cartão de crédito. “Nosso foco foi fazer poucos produtos e investir na experiência do cliente”, contou Bruno Magrani, diretor de políticas públicas da empresa, em recente evento promovido pela Fundação Getulio Vargas.

Segundo Magrani, com o avanço do “open banking”, a informação do cliente será compartilhada, permitindo a oferta de produtos e serviços mais padronizados aos brasileiros. Nesse contexto, o Nubank aposta que ganhará a corrida digital a empresa que tiver o melhor atendimento. Em seu caso, já são 9 milhões de clientes, entre cartões e conta de pagamento.

Já para as credenciadoras, empresas responsáveis por cadastrar varejistas para que possam usar as “maquininhas” de cartões, um banco digital ajuda a ampliar os produtos e serviços como maneira de fidelização e novas fontes de receita. No geral, elas estão de olho nos 9 milhões de microempreendedores individuais e 11 milhões de pequenas empresas espalhadas pelo país. “A credenciadora quer manter o cliente dentro do seu ecossistema, devido à concorrência no setor, mas o serviço que ainda gera mais valor é o credenciamento em si”, diz Fabrício Winter, líder de projetos da consultoria Boanerges & Cia., especialista em pagamentos.

A lógica de reter o cliente também é usada pelas gigantes de tecnologia, embora focadas mais em pessoas físicas. Um exemplo recente é o Facebook, que anunciou a criação da carteira digital Calibra. “Nem todo o ‘business’ desse gigante precisa dar dinheiro. O importante é preservar a relação com o cliente, porque quanto mais ele sabe do cliente, mais pode fazer ‘advertising’ e ofertas”, diz Tiezzi.

O perfil do consumidor brasileiro também é um motivo para a ampliação dos bancos digitais. Dados da Deloitte mostram que 53% dos brasileiros se mostram satisfeitos completamente com seus bancos, contra 63% da média mundial. Além disso, 51% dos brasileiros foram identificados como “aventureiros digitais”, usuários ávidos de canais digitais, contra a média global de 28%.

O foco de alguns bancos digitais tem sido as classes mais baixas. É o caso dos ligados a grandes redes varejistas, como o BanQI, criado pela Via Varejo, em parceria com a startup americana Airfox, para atender as classes C, D e E. O potencial desse público também chamou a atenção do Original. Controlado pela holding J&F, da família Batista, ele chegou ao mercado em 2016 com contas digitais para clientes com renda acima de R$ 7 mil, mas eliminou o piso neste ano. Com isso, espera elevar de 40 mil para 100 mil os novos processos de abertura de contas por mês e tirar a plataforma do “vermelho”.

Outro banco que foca nas classes mais baixas é o gaúcho Agibank que, diferentemente dos demais, tem apoio de 600 agências para atender em cidades com mais de 100 mil habitantes. “Transformamos o número de celular do cliente no número da conta dele”, diz Fernando Castro, diretor de marketing e inovação do Agibank. “O banco tem de entender para quem ele faz a diferença e preservar essa característica.”

FONTE: VALOR ECONOMICO