Assimetrias regulatórias para o desenvolvimento de IoT

Análise da criação de assimetrias regulatórias no setor de telecomunicações para os serviços de Internet das Coisas

Em mais um artigo da série sobre direito e a Internet das Coisas (“internet of things” ou “IoT”), em parceria com o JOTA, abordaremos a criação de assimetrias regulatórias no setor de telecomunicações para os serviços de IoT, como estratégia para fomentar seu desenvolvimento no Brasil.

A discussão é resultado do estudo “Internet das Coisas: um plano de ação para o Brasil”, realizado pelo consórcio McKinsey / CPqD / Pereira Neto Macedo Advogados e coordenado pelo Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (“MCTIC”) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (“BNDES”).

Como concluído no estudo, o funcionamento de IoT depende de conectividade e, portanto, demanda a contratação ou a utilização de um serviço de telecomunicações como suporte.

No Brasil, o setor de telecomunicações foi desenhado tendo em vista o modelo tradicional de prestação de serviço, em que há uma relação direta entre aquele que presta o serviço (a prestadora) e aquele que o toma (o usuário). Por isso, há uma série de obrigações concebidas para regular essa relação que não necessariamente se adequam ao universo de IoT, que se desenvolve primordialmente sobre a comunicação entre máquinas, com pouca ou nenhuma interação humana. Mais do que incompatíveis com as relações de serviço de IoT, as obrigações e os encargos do setor podem impor custos que inviabilizariam a atividade na prática.

Assim, entendemos que o fomento de IoT no Brasil depende da adoção de medidas que criem assimetrias regulatórias – isto é, que criem um tratamento diferenciado que permita a adequação das obrigações e dos encargos existentes a fim de permitir o desenvolvimento de tal atividade (sem prejuízo, é claro, de reflexões mais profundas acerca de óbices de caráter regulatório para o desenvolvimento das telecomunicações como um todo). Diante disso, discutimos neste artigo algumas dessas medidas, partindo do estado atual da regulação setorial.

Definição para fins de assimetria regulatória

O primeiro passo para estabelecer uma política de assimetria regulatória para fomentar IoT é definir cuidadosamente o que será alvo do regime diferenciado.

Em um setor com tantas obrigações e encargos, é razoável imaginar que as prestadoras tentarão, a todo custo, se fazer valer de um regime mais simplificado e menos oneroso. Por isso, uma válvula de escape muito ampla pode permitir uma evasão generalizada das obrigações regulatórias, para situações que vão além da IoT, gerando distorções no setor. De outro lado, uma definição muito restrita pode não cumprir com seu propósito, deixando de fora aplicações relevantes para a IoT.

Hoje, a legislação já prevê uma assimetria ao estipular a desoneração das taxas do FISTEL para os sistemas de comunicação máquina a máquina (“M2M”). O Decreto nº 8.234/2014 criou, para esse fim, uma definição para os sistemas de comunicação M2M que exclui qualquer interação humana. Como já destacamos em outras oportunidades, trata-se de um conceito bastante restrito e que seria mais adequado se compreendesse uma interação humana mínima ou uma comunicação predominantemente automatizada (cf. “Qual o conceito de M2M e por que isso importa para o desenvolvimento de IoT?”). .

Ainda em trâmite, o Projeto de Lei nº 7.656/2017 pretende delegar para a Agência Nacional de Telecomunicações (“Anatel”) a competência para definir o que seriam os sistemas de comunicação M2M. Se aprovado, o projeto permitirá que a definição seja mais flexível, podendo ser alterada pelo ente regulador quando este julgar pertinente.

No âmbito do Estudo sobre Internet das Coisas, definimos alguns outros aspectos regulatórios que entendemos que poderiam ser alterados para prever assimetrias regulatórias a favor do desenvolvimento de IoT. Além disso, recentemente a Anatel tratou dessa discussão na Consulta Pública nº 31/2018 (“CP nº 31/2018”), por meio da qual, recebeu subsídios para a elaboração de Análise de Impacto Regulatório (“AIR”) referente à reavaliação de sua regulamentação, com o objetivo de diminuir barreiras regulatórias à expansão das aplicações de internet das coisas.

Desoneração dos encargos setoriais

Como já tivemos a oportunidade de sustentar, a desoneração dos encargos setoriais (mais especificamente, a Taxa de Fiscalização de Instalação – TFI e a Taxa de Fiscalização de Funcionamento – TFF) para as estações que compõem os sistemas de IoT é medida que se impõe, devido à baixa receita proveniente de cada dispositivo e ao grande número de equipamentos necessários para o funcionamento da rede. A Superintendência de Planejamento e Regulamentação da própria Anatel já reconheceu a inviabilidade da incidência de todas as taxas sobre essas estações (Informe nº 57/2017), e o debate no Legislativo caminha para a desoneração, seja por meio da redução a zero do valor de incidência dessas taxas, seja por meio da exclusão da obrigação de licenciamento das estações dos sistemas de IoT (Projeto de Lei nº 7.656/2017).

Sobre esse ponto, no texto da CP nº 31/2018, a Anatel demonstrou duas preocupações acerca do licenciamento e da tributação das estações de IoT. A primeira delas é, exatamente, que a incidência dos encargos setoriais inviabilize modelos de negócio de Internet das Coisas. A segunda é que, com a ampliação e o desenvolvimento desse negócio, o número de estações de telecomunicações aumente severamente em razão dos dispositivos de IoT, impactando o processo de licenciamento. A partir disso, a Agência definiu como objetivo a viabilização de modelos de negócio de IoT, de modo que a questão tributária não seja um obstáculo e sem sobrecarregar o processo de licenciamento de estações, bem como apresentou alternativas para atingir esse fim.

Assim, apresentou alternativas no sentido de: (i) isentar ou alterar o valor da taxa para zero para as taxas inerentes ao licenciamento de terminais máquina a máquina; (ii) dispensar o licenciamento desses terminais; (iii) alterar o cálculo de incidência dos tributos, a fim de que considerem o percentual da receita e não mais cada um dos dispositivos; (iv) propor a exclusão dos serviços de IoT da incidência do Imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (“ICMS”); e (v) sensibilizar os Estados e o Distrito Federal a respeito da importância de reduzir a alíquota do ICMS sobre os serviços de telecomunicações, especialmente em relação às aplicações de IoT.

Flexibilização das obrigações de qualidade

Quando os dispositivos de IoT são disponibilizados por prestadoras de serviços de telecomunicação, existem diversas obrigações de qualidade do serviço e requisitos da legislação de proteção do consumidor que devem ser cumpridos. Essas obrigações, em tese, visam a proteger o usuário desses serviços, mas nem sempre são adequadas quando se trata de um sistema de comunicação máquina a máquina – notadamente pelo efeito de padronização da oferta.

Nesse contexto, a regulação atual impõe metas de qualidade que são relativas a qualquer tipo de conexão e devem ser cumpridas por todas as prestadoras, exceto por aquelas de pequeno porte. Essa prática restringe a liberdade de empresas que prestam serviços apenas para dispositivos de IoT e impõe a elas custos desnecessários, o que se caracteriza como mais uma barreira regulatória.

Desse ponto de vista, é necessário um tratamento diferenciado para prestadoras que oferecem planos para aplicações IoT, que flexibilize o cumprimento das obrigações de qualidade e permita a oferta de planos mais adequados para esse mercado, como uma forma de redução de custos.

Em linha com esse diagnóstico, na CP nº 31/2018, a Anatel apresentou como alternativas para a problemática a criação de regras específicas para os serviços relacionados às aplicações de IoT e a exclusão das obrigações de qualidade nesses casos, permitindo que estas sejam reguladas contratualmente pelas partes.

Outros pontos relevantes

Ainda no tema de assimetrias regulatórias, vale mencionar outras barreiras impostas ao desenvolvimento de IoT decorrentes dos regimes de prestação de serviços de telecomunicações que poderiam ser solucionadas por medidas assimétricas, conforme o texto da CP nº 31/2018.

Propôs-se, nesse sentido, a adaptação das modalidades de serviços de telecomunicações hoje existentes para os casos voltados para IoT, uma vez que o quadro atual poderia inviabilizar modelos de negócio. Alguns exemplos das alternativas que estão sendo consideradas pela Anatel são a possibilidade de prestação de Serviço Limitado Privado (“SLP”) a um grupo de usuários, com definição mais ampla nos casos de utilização de dispositivos de IoT, e a revisão do regime do Serviço de Comunicação Multimídia (“SCM”), a fim de permitir mobilidade de dispositivos de IoT.

Além disso, a Anatel planeja facilitar arranjos de roaming internacional permanente, a partir da flexibilização da regulação atual para a oferta de serviços IoT baseados em conectividade global e a permissão da oferta de serviços com conectividade global sem exigência de autorização para a prestação do serviço específica.

A CP nº 31/2018 foi encerrada em 12 de outubro deste ano, mas não identificamos a análise da Agência sobre os subsídios recebidos. Ao nosso ver, estimular a IoT no Brasil passa pela adoção de medidas de assimetria regulatória que possibilite adequar as obrigações e os encargos existentes às características particulares dessa atividade – embora o fomento ao universo de IoT possa ser atingido, algumas vezes, com a desoneração de obrigações para o setor em geral, sem necessidade da criação de assimetrias. Apenas uma análise casuística sobre a obrigação regulatória, o seu propósito e as particularidades envolvidas na IoT pode oferecer a resposta de quando é necessário ou relevante criar assimetrias e quando uma desoneração geral poderá solucionar os entraves, sem causar distorções ao setor.

FONTE: JOTA