Agfintechs transformam o acesso a crédito agrícola no Brasil

Ao unir dois mercados gigantes e importantes, agronegócio e fintech, a probabilidade de sucesso é grande. É nessa direção que caminham as agfintechs. O segmento vem ganhando força com a digitalização do campo acelerada pela pandemia e há quem diga que se desenha uma revolução parecida com a promovida por outras startups financeiras, como Nubank e C6 Bank, anos atrás. O resultado desses movimentos é a expansão do acesso ao crédito agrícola, o que beneficia desde os menores produtores até os vendedores de insumo.

“A SP Ventures está super empolgada com o setor porque achamos que ele está hoje onde as fintechs de consumer estavam há três a cinco anos. O mercado está um pouquinho atrasado por uma série de motivos, mas vemos um potencial parecido em termos de tamanho da revolução e transformação que está acontecendo. Então, eu acho que o timing está muito bom pra entrar”, afirma o Managing Partner da firma de Venture Capital especializada no agronegócio, Francisco Jardim.

A SP Ventures já participou de rodadas de quatro agfintechs “puras”: Bart Digital, Agrolend, Traive e A de Agro. Além disso, a firma investiu na startup de score de crédito agrícola Brain Ag, adquirida pelo Serasa, e em empresas de software, como JetBov, que estão experimentando com a oferta de crédito. O portfólio demonstra o tamanho do interesse do VC no segmento. A firma possui uma tese baseada em quatro pilares principais:

  • Tamanho de mercado: O cálculo de David Telio, professor da pós-graduação do Instituto Brasileiro de Direito do Agronegócio (IBDA) e Diretor de Novas Estruturas Financeira da TerraMagna, é de que o agro tenha demandado na última safra 2020/21 R$ 745 bilhões em crédito. Já de acordo com dados governamentais, apenas nos três primeiros meses de operação do Plano Safra 2021/2022, produtores rurais, cooperativas e agroindústria contrataram R$ 97,75 bilhões para financiar a atividade agropecuária, florestal, aquícola e pesqueira. As quantias movimentadas no segmento são gigantescas. A SP Ventures acredita que o crédito digitalizado vai tomar um market share relevante desse mercado e expandir o acesso ao empréstimo, aumentando os valores contratados.
  • Mudanças regulatórias: enquanto novas regras e inovações como Open Finance e Pix revolucionam o mercado financeiro como um todo, o segmento agrícola também é beneficiado pela digitalização promovida por regulações recentes. Um exemplo é a Lei 13.986/20, que passou a obrigar o registro das Cédulas de Produto Rural (CPR) emitidas com valor igual ou superior a R$ 1 milhão em entidade autorizada pelo Banco Central.
  • Digitalização: a digitalização barateia as etapas do crédito agrícola (originação do produtor, score de crédito e risco do produtor; esteira, formalização e emissão do título; e monitoramento e collection pós-concessão do crédito). Com isso, o processo fica mais acessível. Além disso, o produtor passou a ter mais acesso a conectividade e ao mobile.
  • Menor presença dos bancos públicos: Jardim pontua que existe a percepção de que o subsídio agrícola e a presença dos grandes bancos públicos no setor agro vão cair muito dado o aumento da relação Dívida Líquida/PIB com a pandemia. Com os recursos empregados em outros setores, é aberta uma lacuna para a entrada de crédito privado e das agfintechs no setor.

Outros investidores também têm reconhecido a potência do setor. No último mês, dois deals de agfintechs chamaram atenção. Um deles foi o primeiro cheque do SoftBank para agricultura, cujo valor de US$ 40 milhões foi destinado para a TerraMagna. O outro é o aporte de R$ 80 milhões na rodada Série A da Agrolend. Outro investimento recente de relevância foi o Seed de US$ 11,8 milhões da Nagro. As três empresas são as únicas fintechs do agro listadas no Top 10 das maiores rodadas de agtechs brasileiras, um ranking produzido pela Agfundernews.

Citando os dois deals de janeiro, o Agfundernews ressalta que rodadas de valor na casa de oito dígitos são uma raridade entre as startups brasileiras do agronegócio. Portanto, a visão é que a área de agfintech passa por uma explosão de atividade de investimento, especialmente entre as companhias digitais voltadas para solucionar o problema de liquidez vivido por muitos pequenos e médios produtores nacionais.

“Existem sinais que o panorama brasileiro de investimentos em agtech está aquecendo. A emergência de um ecossistema local de Venture Capital, somada ao interesse crescente de investidores norte-americanos e europeus, está ajudando a alimentar a tendência. Além disso, diversas startups atingiram um nível de escala e maturidade que as permite garantir grandes quantias de capital ao levantar investimentos”, pontua a análise do Agfundernews.

Digitalização do ecossistema

O segmento de agfintechs representa uma pequena fatia do ecossistema nacional de agtechs. Segundo o Radar Agtech Brasil 2020/2021, o país possui 1.574 startups do agro, das quais 43 atuam com crédito, permuta, seguro, créditos de carbono e análise fiduciária. Se somadas ao grupo as empresas que têm as atividades financeiras como atuação secundária, o número sobe para 53.

O papel da digitalização no setor é tamanha que a Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs) possui um grupo de trabalho focado no agronegócio. “Entre 2020 e 2021, surgiram muitas agfintechs novas, que começaram com um trabalho de suprir demandas de crédito que até então não estavam sendo atendidas pelas instituições financeiras, como quando o produtor rural precisa de um crédito muito rápido. Agora, entre o final de 2021 e começo de 2022, temos visto captações de recursos muito expressivas. Com isso, as startups vão começar a atuar em mercados que já são atendidos mas podem ter um melhor atendimento. Elas vão ser uma uma opção adicional para o produtor que já tem uma linha pré-aprovada com instituições ou fornecedores tradicionais”, avalia a CEO e cofundadora da startup Bart Digital e diretora da ABFintechs, Mariana Bonora.

A visão de empreendedores e investidores é que o mercado ainda está atrasado em comparação com outros segmentos, mas tem evoluído. Francisco Jardim calcula que esse atraso fez com que as soluções dessas startups só ganhassem força nos últimos 18 meses. Tanto o Managing Partner da SP Ventures quanto Mariana Bonora apontam que o segmento de agfintechs demorou para engatar pela barreira de digitalizar a atividade agrícola.

Em uma retrospectiva do setor, o relatório de impacto do Google for Startups ressalta que, em 2016, a inovação na indústria acontecia apenas “da porteira para dentro”. Isso significa que, apesar de haver investimento e modernização de maquinário, as etapas de financiamento e escoamento e comercialização da produção continuavam offline. O relatório indica que um impulso no caminho da digitalização só ocorreu em 2020.

“As agtechs vieram para mudar esse quadro, injetando tecnologia também nas fases de comercialização e na oferta de crédito, além de atuar na otimização de dados para dar suporte às tomadas de decisão dos agricultores”, analisa a Big Tech no report.

Fundada em 2016, a Bart Digital viu de perto a evolução do segmento, sendo responsável pela 1ª CPR assinada digitalmente no Brasil. “Estávamos falando em digitalizar totalmente uma operação e fazê-la totalmente automática dentro de uma plataforma tecnológica, mas nem a primeira parte do produto era digital porque nem o produtor rural e nem as empresas assinavam documentos digitalmente em 2016. A gente começou com essa ideia de utilizar Blockchain para automatizar todas as operações, mas viu que a dor era um pouco mais embaixo. Então, criamos o Ativus, uma plataforma para que esses contratos do agronegócio pudessem realmente ser emitidos e formalizados em formato digital”, afirma Bonora.

As soluções digitais também esbarravam na barreira de conectividade, penetração de mobile e baixo alfabetismo digital dos produtores. Cenário que também mudou com mais intensidade com a pandemia. Jardim ressalta que o mercado de crédito agrícola ainda é muito ancorado nos fornecedores de insumos. A operação de Barter é um exemplo dessa realidade: a modalidade consiste na troca de insumos pela produção, com o distribuidor liberando os insumos e permitindo que o produtor pague a compra a prazo com parte da produção.

“Em 2018 e 2019, já era possível observar um flerte com fintechzação e a ida para o digital, mas era algo devagar. Após março de 2020, tudo isso foi catalisado e a tendência ganhou um sopro a favor. Todos os eventos agrícolas foram cancelados. Existem muitos agentes nessa cadeia, como as revendas e os bancos, mas todo esse processo precisou ir, simultaneamente, com uma força para digital”, comenta Jardim, que ressalta que o período de juros baixos também impulsionou a oferta de crédito.

Players

Com a indústria de crédito agrícola ainda dominada por bancos e revendedores de insumos, a entrada das startups é benéfica para os produtores, especialmente os menores, que nem sempre têm acesso a financiamento da forma tradicional. As soluções das agfintechs são múltiplas, em nichos de atuação que vão da mensuração de risco até a oferta de crédito.

A TerraMagna oferece crédito para produtores e distribuidores. No primeiro caso, é feito o financiamento da compra de insumos diretamente com os revendedores desses produtos. No segundo, a startup permite que os distribuidores recebam à vista ao conectar CPRs, duplicatas e outros títulos do agro com o mercado de capitais, onde os investidores “compram” esses documentos.

Segundo o CEO da TerraMagna, Bernardo Fabiani, a solução foi desenhada com base na compreensão de que a dificuldade dos distribuidores não era dar crédito, mas serem obrigados a dar crédito para vender. Então, a startup passou a também oferecer crédito para os revendedores.

“O fato do produtor estar consumindo, mesmo que implicitamente, nosso crédito, faz com que ele possa comprar mais em um mesmo local, por ter um limite de crédito maior. Isso acontece porque existe uma transferência de risco para a gente. O produtor consegue comprar outros tipos de insumos, deixando de ter que comprar só o defensivo em uma revenda e tentar conseguir o crédito para o fertilizante em outro lugar. Existem dois cenários: ou a revenda tem uma margem maior para a operação, o que também é bom para as cadeia de insumos porque as revendas têm patologicamente uma margem baixa, ou ela pode repassar essa margem para o produtor, o que faz com que ele fique com uma margem maior porque comprou o produto por um custo menor”, explica Fabiani.

A Bart Digital tem outra abordagem. Com o objetivo de conectar o crédito agrícola à economia digital, a startup atua empregando tecnologia para digitalizar os processos de financiamento, em especial os relativos à formalização de CPR e outros títulos e garantias agrícolas. A solução reduz a burocracia e aumenta a eficiência do processo: o uso de títulos digitais já permitiu a redução do tempo necessário para formalização das garantias em mais de 75%.

A Inteligência Artificial também tem um papel nos processos de concessão de crédito digital. A agfintech Nagro desenvolveu a plataforma de análise de risco AgRisk, que usa algoritmos próprios, tecnologia de IA e Machine Learning com o objetivo de agilizar e diminuir o risco de inadimplência no processo de análise de crédito rural. Em 2021, a solução avaliou R$ 45 bilhões de endividamento na plataforma.

Já a Culte foca na agricultura familiar, um dos segmentos mais desatendidos no país. Com ferramentas como empréstimos, conta digital e marketplace, a startup tem como objetivo incluir digital e socialmente centenas de milhares de trabalhadores do campo.

“O mercado de agricultura familiar ainda é desatendido e as agfintechs estão trabalhando para criar soluções. Esse segmento é responsável por hortifrúti e gado leiteiro, os produtos que consumimos no dia a dia”, explica Mariana Bonora.

As soluções tem o poder de impactar diretamente a produção agrícola nacional, um setor que demanda altos investimentos de capital e, a depender do tamanho do produtor, tem dificuldades para acessar crédito. O CEO da TerraMagna ressalta que, em muitos casos, o problema é que o crédito disponível é muito caro. Mesmo com altas taxas de juros, o produtor acaba tomando esse financiamento.

“O agricultor toma esse tipo de crédito ao comprar insumo porque isso está dentro do pacote da compra dos produtos. Uma das oportunidades desse mercado é racionalizar esse processo, o que as agfintechs estão fazendo muito bem. É o fato de você ter muita margem ou muita taxa de juros escondido, que poderiam ser reduzidos. Essas ofertas [das startups] aumentam não só o contrato de capital volume mas também em qualidade porque é um dinheiro mais transparente. Esse produtor vai conseguir reinvestir na terra dele e produzir mais um pedaço de chão”, afirma Fabiani.

FONTE: https://theshift.info/hot/agfintechs-transformam-o-acesso-a-credito-agricola-no-brasil/