A startup de US$ 4 bi que jura reduzir o crime. E que pode ter violado a lei

A Flock tornou-se uma potência prometendo erradicar o crime com leitores de placas alimentados por IA. Mas, para autoridades de vários estados americanos, ela violou leis que garantem a segurança dos motoristas.

As câmeras de vigilância por IA de uma ponte na Flórida não duraram uma semana, ao serem consideradas uma violação das leis estaduais. Instaladas em fevereiro de 2023 pela startup de vigilância automóvel Flock Safety e pelo Departamento de Polícia de Treasure Island, elas foram colocadas lá sem a aprovação do Departamento de Transportes da Flórida, o FDOT.

O Departamento pediu a retirada, que não havia ocorrido até outubro, seis meses depois. “O FDOT não permite instalações em nossas estruturas, exceto em casos especiais”, informou um funcionário do Departamento à Flock. A câmera só foi retirada em novembro.

Para a Flock, uma empresa de US$ 4 bilhões (R$ 19,88 bilhões) com a missão de “reduzir a criminalidade nos Estados Unidos em 25%”, isso pode parecer só um erro com a documentação. Mas é um entre centenas de incidentes semelhantes. Comunicações da empresa com agências estaduais de transporte e entrevistas com ex-funcionários sugerem que a Flock violou a lei repetidamente em pelo menos cinco estados. Em dois deles, as agências estaduais proibiram os funcionários da Flock de instalar novas câmeras.

Essas violações são em grande parte resultado do hábito da startup em instalar seus dispositivos de vigilância nas vias públicas sem as permissões necessárias. Esses processos visam garantir que as câmeras estejam posicionadas com segurança, não comprometam o funcionamento de semáforos e de linhas telefônicas e de energia, além de garantir que não possam ser deslocadas por mau tempo ou acidentes. “As regras garantem que, se um carro bater em uma câmera a 130 quilômetros por hora, ela não vai atravessar o para-brisa.”

Josh Thomas, porta-voz da Flock, disse à Forbes que a empresa tem cerca de 50 pessoas dedicadas a permissões e “opera da melhor maneira possível dentro dos limites da lei”. Ele afirmou que, como os limites jurisdicionais nem sempre são claros e a Flock nem sempre sabia quando e onde deveria solicitar uma permissão. “Para milhares de permissões que solicitamos e para os milhares de locais que não exigem permissões, certamente não fomos perfeitos”, disse Thomas. “Mas tentamos responder e corrigir quaisquer problemas, ou fazemos o esforço para conseguir uma permissão retroativa, conforme o caso.”

Fundada em 2017, a Flock tem um sistema de vigilância que usa IA para diferenciar carros com base em marca, modelo e aparência, além das placas. Ela afirma operar em 4 mil cidades de 42 estados. Encontrou uma clientela nos departamentos de polícia municipais.

Seu argumento de venda é que o sistema custa menos que os da concorrência e é melhor para detectar veículos suspeitos. Um sistema de câmera padrão da Flock começa com um custo de US$ 3 mil (R$ 14,91 mil) por ano, consideravelmente menos que o sistema da concorrente Motorola Vigilant. Desde 2020, a Flock viu um aumento impressionante de 2.660% na receita, o que a colocou na lista Fast 500 da Deloitte em 2023. A Flock não divulgou faturamento.

Esse crescimento espetacular deixou investidores empolgados: a Flock conseguiu US$ 100 milhões (R$ 496,90 milhões) por uma captação de recursos em julho de 2023, liderada pela Andreessen Horowitz, avaliando-a em mais de US$ 4 bilhões (R$ 19,88 bilhões). No entanto, o crescimento foi impulsionado por implementações não autorizadas.

A Flock implantou centenas de câmeras não aprovadas na Flórida, Illinois e Carolina do Sul, onde é crime instalar dispositivos sem a aprovação do Departamento de Transportes. E a empresa enfrentou problemas com reguladores no Texas e em Washington devido a questões de permissão.

Na Carolina do Sul, a Secretária de Transportes do Estado, Christy Hall, disse à Forbes que desde a primavera de 2022 sua equipe encontrou mais de 200 câmeras da Flock, sem permissão de monitoramento de vias públicas. Em julho de 2023, a agência suspendeu novas instalações e ordenou uma revisão de segurança e conformidade de todas as câmeras da Flock.

“Não está claro para nós se esses dispositivos têm autorização para estar locais sob responsabilidade do estado”, disse Hall. “Não houve uma política pública estabelecida pela câmara da Carolina do Sul em relação ao uso desses dispositivos, [ou] preocupações com a privacidade referentes à coleta, manipulação e disponibilização dos dados que eles coletam.”

Thomas, da Flock, confirmou que a empresa interrompeu a instalação na Carolina do Sul e espera “ver este processo de permissão ser reaberto”.

Em janeiro de 2023, o deputado da Carolina do Sul, Todd Rutherford, apresentou um projeto de lei na legislatura estadual que regulamenta como e quando os leitores de placas podem ser instalados. Rutherford, que afirmou não saber que a Flock estava implantando câmeras sem permissão, expressou preocupação com a expansão da Flock sem qualquer estrutura regulatória para controlá-la. “As pessoas não sabem o que está acontecendo com esses dados, quem está acessando, quem está mantendo. Tudo isso viola nossa liberdade pessoal sem o nosso conhecimento”, disse Rutherford. “Está chegando ao ponto em que uma empresa está disposta a burlar a lei para instalar essas câmeras.”

Na Carolina do Norte, em novembro de 2023, um juiz proibiu os funcionários da Flock de instalar novas câmeras depois que o Departamento de Segurança Pública do estado pediu uma liminar, argumentando que a empresa estava operando sem a licença necessária. A Flock contestou a reclamação, alegando que não precisava de qualquer tipo de autorização da North Carolina Alarm Systems Licensing Board porque “não está no negócio de sistemas de alarme” – a lei se aplica a qualquer dispositivo usado para detectar atividade ilegal. Thomas disse que a Flock já recebeu permissão para que terceiros instalem seus dispositivos.

Em 2021 a Flock teve problemas com o governo local no condado de Lake, na Flórida, depois de instalar 100 câmeras sem notificar as autoridades. “É uma violação de procedimento e da lei”, disse um comissário do condado de Lake. A Flock removeu os dispositivos. Thomas disse que a Flock acreditava ter instalado dispositivos com permissão no condado de Lake, e “ao descobrirmos o contrário, paramos ou removemos os dispositivos.”

Enquanto os funcionários estaduais resmungavam, os policiais elogiavam – e continuavam comprando. Tim Martin, ex-policial em Huntington Beach, Califórnia, foi um dos primeiros usuários das câmeras de vigilância da Flock e as descreveu como “uma das maiores evoluções tecnológicas” de sua carreira. “Mudou completamente como conduzíamos investigações”.

A história de origem da Flock não começa na aplicação da lei, mas sim nas lojas de aplicativos. Antes do lançamento da empresa em 2017, o CEO Garrett Langley era presidente da startup Moment, um aplicativo que permitia aos amigos comprar “café, almoço ou um agrado” um ao outro, com o objetivo de “tornar as pessoas mais amigáveis” – seu site pessoal lista ideias adicionais de startups, incluindo vinho não alcoólico e inovações não especificadas em torno de banheiros.

O CTO Matt Feury era o criador do Saucillator, um aplicativo de sintetizador digital. A dupla se encontrou na empresa de ingressos digitais e eventos Experience. Quando uma série de roubos atingiu o bairro de Langley em Atlanta, isso os inspirou a se unirem pela a vigilância de carros. Os executivos da Flock não concederam entrevistas.

Em um evento recente da Andreessen Horowitz, Langley disse que as câmeras da Flock agora cobrem quase 70% da população e são usadas para solucionar cerca de 2,2 mil crimes por dia. De acordo com dados obtidos por meio de uma solicitação de dados públicos, uma rede de 309 câmeras da Flock no Condado de Riverside, Califórnia, escaneou 27,5 milhões de carros em um único mês. O contrato do condado com a Flock vale US$ 4 milhões (R$ 19,88 milhões) e vai até junho de 2026.

Mas enquanto o negócio da lei da Flock se tornava um sucesso estrondoso, ela repetidamente enfrentava problemas semelhantes aos das Carolinas. “O que Garrett não entende é que ele também está administrando uma empresa de construção”, disse um ex-funcionário sobre os erros recorrentes de Langley e da Flock com as aprovações do departamento de transporte.

A divisão de permissões da empresa deveria trabalhando com agências estaduais de transporte para simplificar e acelerar as instalações de câmeras. Em alguns estados, como Kansas, Kentucky e Oklahoma, e-mails mostraram que as relações com os funcionários de transporte eram cordiais e eficientes. O advogado da equipe do Departamento de Transportes do Kansas, Harrison Baker, disse que a equipe de permissões “tem uma relação próxima com a equipe da Flock e geralmente os problemas são resolvidos antes de aparecerem”.

Mas em outras partes dos EUA, a Flock frequentemente atrapalhava oficiais do Departamento de Transportes. E-mails checados pela Forbes mostram que a equipe de permissões da Flock às vezes tinha dificuldades em compreender as regras e regulamentos estaduais, apresentando pedidos de permissão incorretos. Em Illinois, em junho de 2022, após descobrir que pelo menos 38 câmeras foram instaladas sem permissão, um funcionário do Departamento de Transportes notificou a Flock por apresentar “vários pedidos de permissão, todos com os mesmos problemas/erros” que não podiam ser aprovados.

“Se a Flock teve que remover as câmeras ou obter permissões retroativas, isso é uma boa evidência de que eles não cumpriram a lei de Illinois e/ou os procedimentos do Departamento de Transportes de Illinois”, disse Channing Blair Hesse, sócio do escritório de advocacia Grogan Hesse & Uditsky, com sede em Chicago.

Da mesma forma, em abril de 2023, um oficial do Texas reclamou que “a Flock gosta, às vezes, de burlar os canais adequados”, e o Departamento de Transportes negou a aprovação para um conjunto de 136 câmeras em todo o estado devido a locais inseguros – algumas seriam instaladas atrás de barreiras de proteção ou em semáforos.

Em julho passado, a Flock foi forçada a auditar todas as câmeras na Flórida para garantir conformidade com as novas leis de leitores automáticos de placas e, se necessário, solicitar novas permissões ou removê-las. Um e-mail de um gerente da Flock para o Departamento de Transportes do estado mostrou que até 842 câmeras precisavam ser revisadas.

“A nossa esperança é não ter que remover nenhuma câmera e trabalhar em direção a uma solução viável para atender a todos os padrões do Departamento de Transportes da Flórida, mantendo-as em serviço para os nossos parceiros na aplicação da lei”, escreveu um funcionário da Flock para o Departamento de Transportes. Não está claro se a Flock obteve as permissões corretas ou se alguma câmera foi removida.

Em junho de 2022, após ser repreendida por pedidos repetidos e cheios de erros em Illinois, um representante da empresa disse a um oficial do Departamento de Transportes que era do interesse deles acelerar o processo.

“Tenho me esforçado ao máximo para impedir que todos esses agentes da lei desçam até o seu escritório, porque todos estão extremamente chateados”, disse ele. “Cerca de 30 chefes de polícia. Pedimos a eles que, por favor, não passem pelo seu escritório.”

O representante alegou que era vital obter aprovação de permissões porque as câmeras da Flock ajudaram a capturar o suspeito de ser o atirador de um incidente em Highland Park, que deixou sete mortos. O Departamento de Polícia de Highland Park não comentou esse incidente, assim como a Flock.

O porta-voz da Flock, Thomas, disse que “devido à situação literalmente de vida ou morte que muitas cidades enfrentam com crimes violentos, estamos orgulhosos do fato de que nossas equipes de instalação se movem muito rapidamente. Somente no ano passado, enviamos milhares de pedidos de permissão e nos apresentamos diante de centenas de conselhos municipais em busca de aprovação.”

A Flock tentou resolver seus problemas demitindo seu diretor de permissões em março do ano passado. E ela encontrou uma nova maneira de expandir que também acalma os funcionários dos Departamento de Transportes que irritou anteriormente.

No Texas, onde a Flock tinha irritado tanto os funcionários do departamento de transporte que um deles ameaçou se a empresa “burlar os procedimentos novamente”, ela conseguiu resolver as coisas — e conquistar um novo cliente. Em setembro do ano passado, a agência concordou em lançar um programa piloto para usar as câmeras da Flock para análise de tráfego, que está prestes a começar assim que receber aprovação das aquisições estaduais.

FONTE: https://forbes.com.br/forbes-money/2024/03/a-startup-de-us-4-bi-que-jura-reduzir-o-crime-e-que-pode-ter-violado-a-lei/